sexta-feira, 30 de março de 2018

O Evangelho dominical - Páscoa - 01.04.2018


MISTÉRIO DA ESPERANÇA
Acreditar no Ressuscitado é resistir a aceitar que a nossa vida é só um pequeno parêntesis entre dois imensos vazios. Apoiando-nos em Jesus ressuscitado por Deus intuímos, desejamos e acreditamos que Deus está conduzindo para a sua verdadeira plenitude o anseio da vida, de justiça e de paz que se encerra no coração da humanidade e em toda a criação.
Acreditar no Ressuscitado é rebelar-nos com todas as nossas forças a que essa imensa maioria de homens, mulheres e crianças que só conheceram nesta vida miséria, humilhação e sofrimento fiquem esquecidos para sempre. Acreditar no Ressuscitado é confiar numa vida onde já não haverá pobreza nem dor, ninguém estará triste, ninguém terá de chorar. Por fim poderemos ver aos que vêm em barcaças chegar à sua verdadeira pátria.
Acreditar no Ressuscitado é aproximar-nos com esperança de tantas pessoas sem saúde, doentes crônicos, incapacitados físicos e psíquicos, pessoas afundadas na depressão, cansadas de viver e de lutar. Um dia conhecerão o que é viver com paz e saúde total. Escutarão as palavras do Pai: “Entra para sempre na alegria do teu Senhor”.
Acreditar no Ressuscitado é não nos resignarmos a que Deus seja para sempre um Deus oculto de que não possamos conhecer o Seu olhar, a Sua ternura e os Seus abraços. Iremos encontrá-Lo encarnado para sempre gloriosamente em Jesus. Acreditar no Ressuscitado é confiar que os nossos esforços por um mundo mais humano e ditoso não se perderão no vazio. Um dia feliz, os últimos serão os primeiros e as prostitutas nos precederão no reino.
Acreditar no Ressuscitado é saber que tudo o que aqui ficou a meio, o que não pode ser, o que temos estragado com a nossa ignorância ou o nosso pecado, tudo alcançará em Deus a sua plenitude. Nada se perderá do que vivemos com amor ou ao que renunciamos por amor.
Acreditar no Ressuscitado é esperar que as horas alegres e as experiências amargas, as marcas que temos deixado nas pessoas e nas coisas, o que temos construído ou temos desfrutado generosamente, ficará transfigurado. Já não conheceremos a amizade que termina, a festa que se acaba nem a despedida que entristece. Deus será tudo em todos.
Acreditar no Ressuscitado é acreditar que um dia escutaremos estas incríveis palavras que o livro do Apocalipse coloca na boca de Deus: “Eu sou a origem e o final de tudo. O que tenha sede Eu lhe darei grátis do manancial de água da vida. Já não haverá morte nem haverá choro, não haverá gritos nem fadigas, porque tudo isso terá passado”.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

ANO B – TRÍDUO PASCAL: PÁSCOA DE JESUS – 01.04.2018


“Eu creio num mundo novo, pois Cristo ressuscitou!”
Chegamos à festa que preparamos com tanto empenho nas últimas seis semanas. Trazemos em nós a memória agradecida da aliança realizada na última ceia e nas muitas e solidárias ceias penúltimas. Trazemos nos olhos o sinal luminoso das mãos perfuradas e dos braços abertos em forma de cruz, prontos a abraçar a humanidade inteira. Partilhamos com Madalena o vazio de uma ausência querida. Trazemos na mente e no ventre o trabalho das mulheres e homens, comunidades e movimentos que, no escuro da noite, prepararam tecidos e perfumes para não permitir que morram os sutis fios da vida.
A Páscoa celebra o reconhecimento de Jesus – o profeta perseguido e assassinado, o irmão e servidor da humanidade – como Filho de Deus. Proclama que nele Deus vence todas as formas de morte, desde a morte física até a morte progressiva e massiva, resultado das estruturas iníquas e dos poderes despóticos. Anuncia que Jesus, considerado uma pedra sem utilidade e problemática na manutenção do mundo velho, foi considerado por Deus como pedra fundamental da construção de um mundo novo. Afirma que, mesmo que nossa esperança dance na corda bamba, é teimosa e tem futuro.
A Páscoa de Jesus de Nazaré e dos cristãos celebra as milhares de possibilidades escondidas na vida de cada pessoa e na história da humanidade. Afirma que a última palavra não será sempre do discurso frio daqueles que impõem sua injusta ordem e mandam calar os profetas. Proclama que a ação realmente eficaz e grávida de futuro é aquela que estabelece a absoluta superioridade do outro necessitado. Evidencia que a direção certa e o sentido da vida está na atitude permanente de irmandade e serviço, no fazer-se semente de uma outra vida, tão possível quanto urgente.
E essa ressurreição não é algo que se manifesta apenas depois da morte. Paulo nos surpreende afirmando que os cristãos já foram ressuscitados! Ele se refere ao dinamismo pascal do nosso batismo, que possibilita e pede a passagem de uma vida individualista para uma vida plena e solidária. “Procurem as coisas do alto”, exorta Paulo. E isso significa assumir um estilo de vida centrado no amor, no serviço e na partilha, na busca de uma segurança que tenha a justiça como mãe, na superação de todas as formas de violência mediante uma fraternidade lúcida e profunda.  O pecado ainda não perdeu totalmente sua influência, mas está mortalmente ferido, e não domina mais sobre nós.
A ressurreição de Jesus não é algo que se impõe com força de evidência, e não vem acompanhada de manifestações potentes. O dia já havia amanhecido, mas na cabeça de Maria Madalena e dos apóstolos a experiência do fracasso pairava como escuridão. Só muito lentamente eles foram percebendo que os lençóis estendidos não estavam lá para cobrir um morto mas para acolher as núpcias de uma nova aliança de Deus com a humanidade. O sudário sim, depois de cobrir a cabeça de Jesus, agora estava à parte e envolvia totalmente o templo, lugar onde a morte fora tramada e decidida.
Lembremos que a Páscoa de Jesus de Nazaré inaugura uma Nova Criação. Ressuscitando e trazendo no corpo as marcas dos pregos e da lança, ele é o Homem Novo, o Novo Adão, o Irmão primogênito e solidário de todos os homens e mulheres. Os discípulos e discípulas se reúnem em torno da sua memória e organizam comunidades que continuam seu sonho e seu caminho. E as pessoas acolhidas nestas comunidades estabelecem vínculos que formam um Novo Povo de Deus, a comunhão dos grupos e movimentos de servidores, de gente que luta por vida abundante para todos.
Na entusiasmada catequese que desenvolve na casa do pagão Cornélio, Pedro sublinha que Jesus andou por toda parte fazendo o bem e agindo sem medo, apesar da violência que havia levado João Batista à morte. Enfatiza que Deus estava com ele, inclusive no vazio e escuro da cruz, quando parecia havê-lo abandonado. Ensina que Deus o ressuscitou dos mortos, e transformou em juiz aquele que fora réu de morte. E lembra que os discípulos e discípulas, apesar da dificuldade de acreditar nele e da permanente tentação de abandoná-lo, são constituídos testemunhas e pregadores dessa Boa Notícia.
Jesus de Nazaré, filho amado de Deus, irmão querido da humanidade! Aqui estamos reunidos para festejar contigo, para celebrar a festa dos pequenos. É uma festa que não serve os bens roubados aos fracos e não ostenta a indiferença de quem esqueceu que a luta continua. É com alegria que descobrimos que o mistério da vida ressuscitada não é uma mentira, e se dissemina em tantas pessoas e grupos, inclusive naqueles que não te reconhecem explicitamente. Por isso, celebramos nossa páscoa na tua páscoa, e saímos apressados para testemunhar que a vida é mais forte que a morte e que o amor é imortal. Assim seja! Amém!
 Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 10,34-43 * Salmo 117 (118) Carta aos Colossenses 3,1-4 * Evangelho de João 20,1-19)

ANO B – TRÍDUO PASCAL: VIGÍLIA DA RESSURREIÇÃO – 31.03.2018


A pedra rejeitada tornou-se princípio e fundamento!
Como quando falece uma pessoa querida, reunimo-nos hoje em vigília, marcados pela dor da perda, recapitulando a história da salvação, regando as frágeis sementes de esperança que restam. Acompanham-nos tantas testemunhas que nos antecederam nessa travessia. Mas a vigília sempre nos possibilita também assumir a herança espiritual de quem partiu, levantar o olhar, contemplar o horizonte e encontrar forças para continuar a caminhada. Aqui estamos, como Elis Regina, acariciando o pequeno fio de esperança: “Eu sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente. A esperança dança na corda bamba, de sombrinha, e, em cada passo dessa linha, pode se machucar...”
É uma ilusão inocente ou uma ideia maldosa imaginar que a vida muda num golpe de mágica. A ação criadora de Deus é sempre lenta, e avança numa luta sem tréguas contra o vazio, o caos e o abismo. Como os hebreus fugindo do Egito, quem luta se vê frequentemente encurralado, com o mar intransponível à frente e as tropas ameaçadoras atrás. Nossa experiência ainda hoje é de que existem pessoas lutadoras e iniciativas promissoras, mas são frágeis e estão muito dispersas, como o povo de Israel no cativeiro da Babilônia. Como identificar os sinais e caminhos de páscoa em tal situação?
O vazio da sepultura não é prova da ressurreição, mas um convite a perceber que as marcas dos pregos e o corpo torturado de Jesus não são a última palavra de Deus sobre a história. Na tumba vazia, anjos e mulheres ensinam que o caos do lixo pode dar lugar a uma criação harmoniosa, que o mar ameaçador pode ser atravessado a pé enxuto, que os grupos dispersos podem ser reunidos, que os crucificados caminham à nossa frente e vislumbram novidades em gestação. Precisamos abrirmo-nos às novas possibilidades escondidas no segredo do átomo, no íntimo das pessoas e nos caminhos da história!
Aquelas mulheres madrugadoras, as poucas conhecidas e as muitas anônimas, nos ensinam que os sinais palpáveis da ressurreição só podem ser tocados na periferia – “Ele vai para a Galileia na frente de vocês, lá vocês o verão” – ou na missão – “Agora vocês devem ir e dizer aos discípulos dele e a Pedro...” É neste caminho de saída que as três mulheres reconhecem o Ressuscitado que vem ao encontro delas, pedindo que se alegrem, que não tenham medo. O lugar onde ele estava deixa de ser importante, pois doravante o que importa agora é ir para onde ele está, para a Galileia daqueles que ‘não contam’.
Como cristãos, completamos em nossos corpos os sofrimentos de Jesus Cristo, ostentamos as marcas de quem vive para servir. A ressurreição se multiplica como semente no testemunho e nas iniciativas de discípulos e discípulas, comunidades e Igrejas, grupos e movimentos. Como na ressurreição de Jesus, os sinais são pequenos, quase desprezíveis, mas igualmente reais e promissores. O batismo, recordado e celebrado comunitariamente na vigília pascal, expressa este dinamismo e esta promessa na vida de cada um de nós e da comunidade eclesial. Morreu o velho homem, nasceu uma nova criatura!
Já vivemos e sofremos o bastante para sabermos que esta passagem não é nem automática, nem evidente. Trata-se de um projeto de vida que, para ser realizado, exige disciplina e empenho sem tréguas. Porque não se trata apenas de lutar contra inimigos externos, mas de vigiar sobre nós mesmos e nossas instituições, sobre a permanente tentação de ser sempre o primeiro, o superior, o mais digno, o merecedor. Mas esta não é uma luta inglória, pois Jesus, nosso irmão maior, já venceu a batalha, removeu muitas pedras, derramou sobre nós seu Espírito e nos tornou capazes de lutar e vencer com ele.
Os primeiros cristãos resgataram uma imagem preciosa para falar da ressurreição de Jesus: Ele é como uma pedra que os construtores jogaram no lixo e que Deus transformou em pedra de ângulo, pedra que sustenta todo o teto em forma de abóbada. Por isso, a páscoa pede que abramos os olhos e as portas às pessoas e grupos sociais que são descartados como desnecessários ou eliminados como incômodos. Se não os tivermos no coração das nossas preocupações e projetos eclesiais, nossa fé poderá ser como casa construída sobre a areia, e nossa utopia pode se deteriorar em simples ideologia.
Senhoras da madrugada, mulheres-coragem: humildemente lhes pedimos ajuda para caminhar na noite que nos envolve, para ver com nossos próprios olhos que o Mestre de vocês e nosso nos precede na fronteira, na periferia e no deserto. Segurem nossas mãos cansadas e firmem nossos passos inseguros. Emprestem-nos um pouco do perfume que vocês souberam conservar, a fim de não chegarmos de mãos vazias ao encontro com Aquele que vive para sempre. E então anunciaremos de mil modos que a carne amada e amante de Jesus vivifica todos os sonhos e esperanças que habitam nossa humanidade. Assim seja! Amém!
 Itacir Brassiani msf
(Gn 1,26-31 * Gn * 22,1-18 * Ex 14,15-15,1 * IS 54,5-14 * Is 55,1-11* Ez 36,16-28* Rm 6,3-11 * Mc 16,1-7)

quarta-feira, 28 de março de 2018

ANO B – TRÍDUO PASCAL: PAIXÃO DE JESUS CRISTO – 30.03.2018


“Não há maior amor que dar a vida pelo irmão!”
O comércio não sabe o que fazer com esta sexta-feira, e um clima estranho envolve pessoas e cidades. Até mesmo as pessoas religiosamente mais indiferentes intuem que algo inexplicável aconteceu e acontece nesse dia. Uma multidão se reúne nos templos. É gente experimentada na dor, gente que percebe que neste dia se revela o que há de mais profundo no ser humano, o que há de mais violento e perigoso no seio da sociedade e que há de mais belo no coração de Deus. O mistério do mal atinge sua força mais terrível. A humanização de Deus atinge seu ponto mais luminoso. A entrega do ser humano a Deus se expressa em seu grau máximo.
Como todos os escravos e servos, excluídos e marginalizados, Jesus não tem aparência e beleza que possa atrair os olhares. Ele é como uma raiz em terra seca, como um indivíduo do qual escondemos o rosto. “Não parecia gente, tinha perdido a aparência humana.” Mas sua vida é semente, tem futuro! O Servo fiel não perde a vida, pois a doa livremente e, por isso, prolonga sua existência. Ele carrega nas costas a exclusão e o desprezo de muitos, e, por isso, a luz brilha em seu rosto e em todo seu corpo de servo. Ele confia seu destino nas mãos daquele que é o segredo da vida e assim vive naqueles que servem.
Nós conhecemos muito bem as tramas e traições que levaram à prisão e condenação de Jesus. São opções e atitudes que revelam o mistério da iniquidade e sua força nas pessoas e nas estruturas sociais. É um mal nada abstrato, que se expressa nos costumes, nas leis, nos medos, em todas as formas de ambição. Um mal que assume feições de cinismo, como quando as autoridades religiosas, tendo decidido matar Jesus, não entram no palácio do governador para não se tornarem impuras...  É este inexplicável mistério da iniquidade e violência que se multiplica e ameaça que faz com que seja noite às três horas da tarde...
Jesus não parece disposto a defender-se. Tem consciência de que nasceu e veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para tornar palpável e digno de crédito o amor fiel de Deus pelas pessoas negadas em sua dignidade. Pilatos manda torturá-lo e, depois, o apresenta ao povo: “Eis o homem!” Fixemos o olhar neste personagem que realiza em grau pleno a vocação de todo ser humano. Nele descobrimos que a pessoa humana atinge sua plenitude quando não recua no propósito de dar a vida e de servir, quando não abre mão da solidariedade com as pessoas negadas em sua dignidade.
O ser humano maduro e liberto não é o ‘amigo de César’, a pessoa age sem autonomia, nem a autoridade religiosa, que ordena por medo, mas Aquele que transcende os interesses individuais e se põe a serviço de Deus e do seu projeto. Por isso, do alto da cruz, Jesus diz que, no seu corpo feito dom, a criação chega ao seu ápice: “Tudo está consumado.” Nele Deus chega ao máximo de si mesmo e se supera no esvaziamento. Nele o ser humano vence todos os limites e se faz dom e semente fecunda nas mãos de Deus. Nada há de mais amável e desejável que isso! Bendito seja Deus!
“O que é que vocês estão procurando?”, perguntou Jesus aos primeiros discípulos (Jo 1,38). E hoje, nesta sexta-feira da paixão, o que buscamos nós? Aqui só é licito buscar forças para caminhar na fé e perseverar no seguimento de Jesus, o amigo e servidor da humanidade. Do alto da cruz ele se dirige a Maria e lhe confia João: “Mulher, eis aí teu filho!” E, dirigindo-se ao discípulo, diz: “Eis aí tua mãe!” Assim, aos pés da cruz nasce uma nova família, não mais restrita aos laços de sangue ou de interesses mesquinhos, mas servidora de todos os humanos seres que querem viver e promover a vida.
É por isso que nesta santa sexta-feira nossa oração se abre numa universalidade que não deveria estar ausente de nenhuma celebração: rezamos pela Igreja, pelo papa e todos os ministros, mas também pela união das diferentes Igrejas cristãs, pelos judeus e pelos não cristãos, pelos que não acreditam em nada e ninguém, pelas autoridades e pela humanidade sofredora. Diante do crucificado, filho da humanidade e filho de Deus, aprendemos que os muros e fronteiras religiosas, políticas, econômicas e culturais não fazem o menor sentido e virarão ruínas. Pertencemos à humanidade, temos um destino comum.
Diante de ti, Jesus, Irmão da humanidade sofredora e servidora, prostramo-nos agradecidos e comprometidos. Nossas chagas e culpas pesam sobre teus ombros, mas o dom do teu amor sem fronteiras nos regenera. Tua Mãe e teu Amigo nos acolhem numa comunidade-semente de um mundo novo, e a água que brota do teu lado aberto nos livra de todos os medos. Beijamos enternecidos tuas chagas, pedindo que teu Espírito impeça que este beijo seja de traição. E assim seremos capazes de beijar, abraçar e acompanhar a imensa caravana dos sofredores e servidores que só podem esperar em ti. Assim seja! Amém!
 Itacir Brassiani msf
(Profecia de Isaías 52,13-53,12 * Salmo 30 (31) * Carta de Paulo aos Hebreus 4,14-16; 5,7-9 * Evangelho de São João 18,1-19,42)

ANO B – TRÍDUO PASCAL: CEIA DE JESUS – 29.03.2018


“Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado!”
Reunimo-nos para celebrar a Aliança nova, terna e eterna de Deus conosco, filhas e filhos queridos, família na qual seu Filho se faz irmão. A mesa está pronta, a toalha está linda, há flores coloridas e o alimento é simples e abundante. E há lugar para todos, inclusive para pecadores, como nós. O próprio Jesus de Nazaré nos diz que preparou e desejou ardentemente celebrar este momento conosco (cf. Lc 22,15). E não recusamos o convite porque intuímos que não temos outra honra senão trazer em nossos sonhos, projetos, ações e relacionamentos as marcas da cruz de Cristo, do seu amor sem fronteiras.
Na mesa que reúne as pessoas que desejam ardentemente viver uma fraternidade sem fronteiras, fazemos memória, recordamos. Esta celebração é um memorial dos êxodos e travessias que somos convidados a empreender: travessias de um eu fechado em si mesmo para uma comunidade aberta e solidária; de uma mesa grande e vazia para uma mesa farta e partilhada; de projetos estreitos e ancorados no sucesso pessoal para utopias coletivas; de lutas empreendidas contando apenas conosco mesmos para alianças muito mais que estratégicas.
A ceia eucarística é a memória de Jesus e dos discípulos que, tendo atrás as memoráveis experiências das refeições partilhadas com toda sorte de pecadores, e, à frente, a ameaça dos poderes que não toleram mudanças, compartilham suor e sangue, vinho e pão. A eucaristia é o alimento de quem ainda e sempre está na estrada. Celebramos esta ceia e aceitamos a aliança que Deus nos oferece ainda “na terra do Egito”. Celebramos esta refeição prontos para as travessias que urgem: com cintos que diminuem os embaraços; com sandálias que agilizam os passos; com cajados que nos sustentam na fraqueza.
No centro da ceia não está um cordeiro, mas um corpo feito inteiramente dom. Jesus Cristo nos oferece a totalidade concreta da sua vida como dom e partilha. É sua vida inteira que ele nos dá sem reservas e sem impor condições. E o faz numa ceia ordinária, numa refeição marcada pelo afeto fraterno, num contexto de ameaça de morte, pedindo insistentemente que façamos o mesmo para manter viva sua memória. “Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado...” A eucaristia faz da Igreja uma comunidade aberta em dom àqueles que estão fora ou estão “longe”, uma Igreja em saída, missionária.
Jesus ilustra o sentido da sua vida feita aliança no gesto de lavar os pés. Ele havia dito e repetido que viera para servir e não para ser servido, como Servo e não como Senhor. Demonstrara isso numa dedicação sem cansaço aos últimos. Pois agora, depois de repartir pão e vinho, deixa a mesa e assume o serviço próprio de mulheres e crianças, lavando os pés daqueles que estavam à mesa. É o próprio Deus que se inclina diante da humanidade e, de joelhos, lava nossos pés. E não o faz para demonstrar humildade, mas para negar e desfazer todas as hierarquias e afirmar a absoluta igualdade de todos. Admitir e reivindicar superioridades significa negar o próprio Deus, que rejeita tais hierarquias!
Pedro reage diante dessa provocativa e ousada lição de Jesus. Não lhe parece bem mudar as coisas assim tão radicalmente. Para ele, senhores e superiores devem ser honrados; servos e inferiores devem ser desfrutados; esta é a ordem e nada deve ser mudado. A Pedro parece-lhe difícil aceitar que esta não seja a ordem querida por Deus, que participar da eucaristia implica em fazer-se memória viva da vida de Jesus Servo. Como custa à Igreja e a cada um de nós assimilar esta lição: Deus não se identifica com o soberano, mas com o servo; somente quem hipoteca sua vida pelos outros a ganha verdadeiramente.
A lição é difícil e nada óbvia. É por isso que, depois de comer e de lavar os pés dos discípulos, Jesus nos interroga: “Vocês compreenderam o que eu acabei de fazer?” E para não deixar dúvidas, explica: “Eu lhes dei um exemplo... E vocês serão felizes se o puserem em prática...” Precisamos passar da memória e do gesto teatral à vida concreta: “fazei isso...”; “se puserem em prática...” É preciso dar conteúdo e concretude à eucaristia no dom cotidiano pelos outros, no serviço despojado a todos, mesmo àqueles que aparentemente não o merecem. “Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado...”
Jesus, Filho de Deus e da Humanidade, peregrino nas estradas de um mundo desigual, arauto de um tempo novo e promissor. Ajuda-nos a não deixar no interior do templo o avental que nos dás como hábito e identidade. Abre nossa mente e nossas mãos para que o serviço aos irmãos e irmãs não se limite à intenção, mas se realize nas estradas e esquinas do mundo. Faz com que superemos os ritos e transformemos teu gesto em prática cotidiana. Guia e sustenta a Igreja no caminho do esvaziamento que a faz livre e capaz de servir, sem outra parcialidade senão a preferência pelos últimos. Amém! Assim seja!
 Itacir Brassiani msf
(Livro do Êxodo 12,1-14 * Salmo 115 (116) Carta ade Paulo os Coríntios 12,23-26 * Evangelho de São João 13,1-15)

quinta-feira, 22 de março de 2018

O Evangelho dominical - 25.03.2018 (Domingo de Ramos)


IDENTIFICANDO-SE COM AS VÍTIMAS
Nem o poder de Roma nem as autoridades do Templo puderam suportar a novidade de Jesus. A Sua forma de entender e de viver Deus era perigosa. Jesus não defendia o Império de Tibério e chamava a todos para procurar o reino de Deus e a Sua justiça. Não lhe importava quebrar a lei do sábado nem as tradições religiosas. Só lhe preocupava aliviar o sofrimento das pessoas doentes e desnutridas da Galileia.
Não o perdoaram por isso! Ele identificava-se demasiado com as vítimas inocentes do Império e com os esquecidos pela religião do Templo. Executado sem piedade numa cruz, Nele agora se nos revela Deus, identificado para sempre com todas as vítimas inocentes da história. Ao grito de todos eles se une agora o grito de dor do próprio Deus.
Nesse rosto desfigurado do Crucificado revela-se um Deus surpreendente, que quebra as nossas imagens convencionais de Deus e coloca em questão toda a prática religiosa que pretenda dar-lhe culto esquecendo o drama de um mundo onde se continua a crucificar os mais débeis e indefesos.
Se Deus morreu identificado com as vítimas, a Sua crucificação converte-se num desafio inquietante para os seguidores de Jesus. Não podemos separar Deus do sofrimento dos inocentes. Não podemos adorar o Crucificado e, ao mesmo tempo, viver de costas ao sofrimento de tantos seres humanos destruídos pela fome, pelas guerras ou pela miséria.
Deus continua a interpelar-nos desde os crucificados dos nossos dias. Ele não nos autoriza continuar vivendo como espectadores desse sofrimento imenso alimentando uma ingênua ilusão de inocência. Temos de rebelar-nos contra essa cultura do esquecimento que nos permite isolar-nos dos crucificados, deslocando o sofrimento injusto que há no mundo para um «afastamento» onde desaparece todo o clamor, gemido ou choro.
Não podemos encerrar-nos na nossa «sociedade de bem-estar», ignorando essa outra «sociedade do mal-estar» em que milhões de seres humanos nascem só para desaparecer em poucos anos de uma vida que só foi de sofrimento. Não é humano nem cristão instalar-nos na segurança, esquecidos de quem só conhece uma vida insegura e ameaçada.
Quando os cristãos levantamos os nossos olhos até ao rosto do Crucificado, contemplamos o amor insondável de Deus, entregue até à morte para a nossa salvação. Se olhamos mais detidamente, depressa descobrimos nesse rosto o rosto de tantos outros crucificados que, longe ou perto de nós, estão reclamando o nosso amor solidário e compassivo
José Antonio Pagola
Tradução de Antonio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 21 de março de 2018

ANO B - DOMINGO DE RAMOS - 25.03.2018

Jesus, irmão e servo, é exemplo e caminho para a Igreja!
Depois de cinco semanas de preparação, abrem-se as portas de uma semana que vale uma vida. Com ramos, flores e cânticos, caminhamos pelas ruas e reunimo-nos nos templos, não para gritar que “bandido bom é bandido morto” ou para pedir a volta da ditadura militar, mas para aclamar nosso líder manso e humilde. “Bendito aquele que vem em nome do Senhor!” Sabemos que só alguém infinitamente grande é capaz de fazer-se tão pequeno e tão próximo. Nesta santa semana, recordamos mais uma vez que Jesus Cristo, para sublinhar que somos todos irmãos, nos oferece generosamente sua vida desdobrada em serviço, bebe o cálice do martírio num só golpe e realiza plenamente a vontade do Pai.
Para entender a entrada de Jesus em Jerusalém precisamos abandonar as imagens e fantasias de poder que nos habitam. Não há nada de triunfal. Jesus vem da Galileia e entra na capital do seu país montado num jumento. Nada de cortejos de honra, de generais e de cavalos vistosos. Jesus chega a Jerusalém como sempre foi: um servidor, um simples homem, esvaziado de interesses escusos e submisso às necessidades dos outros. A aclamação do povo da periferia, que o considera filho e herdeiro de Davi, contrasta com a fria acolhida por parte do povo da capital e com o medo dos próprios discípulos. A escolha do jumento é uma provocação aos líderes militares, passados ou esperados.
O povo que acompanha Jesus na sua entrada em Jerusalém aclama entusiasmado o despontar do reino messiânico inspirado em Davi e a chegada do líder enviado por Deus. Jesus, porém, não realiza as ações poderosas que eles esperavam: depois de entrar na cidade, chega ao templo, olha tudo e se retira em Betânia sem fazer nada.  Ele é o ouvinte da Palavra do qual fala o profeta Isaías, e dessa escuta o que brota é uma palavra que desperta os adormecidos e encoraja os acorrentados pela doença e pelo medo.
O entusiasmo suscitado naquele pequeno grupo de gente que vinha do interior não se sustentará por muito tempo. Os gritos de ‘hosana’ – Deus, socorre-nos! – logo serão substituídos pelo insolente pedido ‘crucifica-o’, fruto da frustração das esperanças populares manipuladas interesseiramente pelas autoridades. Os próprios discípulos, que haviam acompanhado Jesus e ouvido suas lições, sentem-se irremediavelmente desorientados e defraudados em suas expectativas. Mas nem a divisão que se cria entre os discípulos, nem a real possibilidade da traição fazem Jesus mudar seu plano.
É verdade que Jesus sente-se abatido e chega a perguntar-se sobre o rumo que deve seguir. No momento crucial, depois da festa de acolhida e da ceia de despedida, ele enfrenta um discernimento difícil. Pede aos discípulos que fiquem com ele e vigiem. “Tudo é possível para ti. Afasta de mim este cálice!” Essa experiência permanece como um alerta para os discípulos e discípulas que aderem a ele esperando facilidades e sucesso. “Vigiem e rezem para não caírem em tentação.” Para Jesus, oração é o momento de confronto profundo com a vontade do Pai, com a missão escrita em caracteres confusos e exigentes.
Os discípulos não entendem nada e tem medo, Pilatos escolhe o caminho mais fácil: lavar as mãos, fazer a vontade da maioria e, assim, receber o apoio popular que faltava ao seu poder despótico. É o fácil caminho da indiferença diante da dor dos outros, da rápida incriminação dos lutadores, da alegre bajulação dos poderosos, da arrogante pretensão de ser o único artífice do próprio bem-estar. Aquele que o povo simples havia saudado na entrada da cidade como quem vinha e agia em nome de Deus, permanece fiel e acaba preso, abandonado pelos próprios discípulos, condenado e pregado na cruz.
A cruz era considerada um lugar terrivelmente vazio da presença de Deus, a negação mais absoluta de qualquer forma de liderança, sinônimo de horror, de fracasso, de culpa, de impotência, de abandono. Tanto para os fiéis judeus como para os soldados romanos, mas até para os discípulos, a crucifixão representava a completa negação do ser humano, a mais radical falta de sentido. Por isso, a provocação dos soldados faz sentido: “O Messias, o rei de Israel... Desça agora da cruz para que vejamos e acreditemos”. Jesus não desce, porque não veio para ser servido e bajulado, mas para servir...
Deus Pai e Mãe, compassivo e misericordioso! Nós te louvamos e agradecemos pelo dom da vida, da filiação e da fraternidade. Em sua misericórdia, teu filho se fez irmão de todos, servidor dos empobrecidos e sofredores, e despertou neles a esperança de vida plena e exuberante. Envia-nos teu Espírito. Que ele guie a tua Igreja e a converta, a fim de que ela seja sempre mais ouvinte e comunicadora da tua Palavra, missionária e servidora do mundo. E não se furte de lutar para que sejamos um país civilizado e fraterno, uma nação na qual todos os cidadãos sejam reconhecidos em sua dignidade. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Profecia de Isaías * Salmo 21 (22) * Carta de Paulo aos Filipenses 2,6-11 * Evangelho de São Marcos 11,1-10)

sábado, 17 de março de 2018

A sagrada terra da missão (4)


Voltando ao Jardim da Infância
Desde minha chegada a Moçambique, fiquei somente alguns dias na casa da missão, pois logo em seguida vim para Nampula, onde estou fazendo o curso de inculturação e de língua macúa. Esse é um grande desafio! Nunca imaginei estudar uma língua tendo que deixar um pouco de lado o que havia aprendido nos meus anos escolares. Não que a língua macúa não tenha uma estrutura semelhante ao português ou alguma das outras línguas que já estudei. A dificuldade, que é ao mesmo tempo a riqueza, está na novidade. Encontro algumas semelhanças estruturais tudo o mais é diferente. Sinto-me no jardim de infância, começando a dar os meus primeiros passo.
É difícil mas é muito bom recomeçar! É uma riqueza você começar a mergulhar numa nova cultura, ainda que teoricamente. Mas a prática vai acompanhando a teoria de muito perto. Nesse aprendizado, é muito importante descalçar-se e entrar respeitosamente na terra sagrada da cultura macúa, nos seus ritos, celebrações, filosofias e teologias de vida.
Na cultura macúa, tudo gira em torno da natureza, que, para essa cultura, não tem os mesmo ciclos que nós ocidentais ensinamos. Afirmando isso, não quero generalizar, pois sei que muitos dos nossos povos ameríndios também possuem formas distintas de encarar a vida. Para os macúas, cada passagem da vida, cada plantação e cada gesto tem o seu significado. Muitos desses significados encontram a sua gênese nos ciclos que a própria natureza traz consigo, principalmente as quatro estações.
O povo macúa é um povo aguerrido, que não desiste perante as incertezas da vida. Muitas vezes lhe falta o pão, a água e quase tudo, mas não lhe falta a vontade de se levantar ao raiar do sol e seguir na labuta. Para compreender isso, é necessário arrancar qualquer tipo de preconceito que possa estar enraizado no nosso modo de ver e de viver. Quem chega aqui e quer entender a cultura local precisa compreender que a noção de tempo é diferente.
O povo daqui segue o tempo do divino, o tempo da natureza, e isso é algo que preciso ainda assimilar no meu viver. Poder viver melhor, rezar melhor, estar mais disponível àqueles que me procuram, àqueles que convivem comigo! Parar e conversar! Sentar e escutar! Conviver e amar! Converta-me, mãe África, para que eu possa ser cada dia mais livre!
Fr. Ricardo Klock msf
28 de fevereiro de 2018

sexta-feira, 16 de março de 2018

ANO B – QUINTO DOMINGO DA QUARESMA – 18.03.2018


O cristão crê na força da semente: morrendo, produz vida!
Estamos entrando na última etapa da nossa caminhada de preparação para a grande festa da vitória da fraternidade sobre a violência, do serviço sobre a prepotência, do servo sobre o senhor. Como o grupo de gregos do evangelho deste domingo, nas quatro semanas que passaram ouvimos falar de Jesus, procuramos conhece-lo, e agora pedimos com insistência: “Queremos ver Jesus!” Estejamos pois muito atentos, sintonizemos bem nossos ouvidos e fixemos nosso olhar no mistério profundo que se desvelará progressivamente na semana santa. O segredo de Deus se assemelha ao mistério da semente...
Jesus recém havia realizado um sinal que impressionara a muitos, devolvendo a vida ao amigo Lázaro. Quando voltou a Betânia, Marta, Maria e o próprio Lázaro ofereceram-lhe um jantar de agradecimento, e Maria ungiu seus pés com um perfume precioso, sob o olhar reprovador de Judas e dos fariseus. Em seguida, Jesus foi a Jerusalém e entrou na cidade montado num jumento, acompanhado de uma multidão que o aclamava como Messias libertador. “Todo mundo vai atrás de Jesus”, constatavam contrariados os fariseus. De fato, as autoridades religiosas estavam preocupadas com a crescente fama de Jesus.
É nesse contexto que alguns crentes de origem pagã, excluídos da plena cidadania de Israel, chegando a Jerusalém para a festa da páscoa, tomam distância da religião do templo e manifestam a Filipe o desejo de ver Jesus. Filipe não se sente em condições de dizer “venham e vejam!” (cf. Jo 1,46), e procura André, que, como ele, era discípulo de Jesus. Juntos, Filipe e André comunicam a Jesus o desejo daquele grupo de estrangeiros. Enquanto as autoridades, que se consideravam os verdadeiros adoradores de Deus, procuram um jeito de prender Jesus (cf. Jo 11,57), os pagãos, tratados como crentes de segunda classe, manifestam o desejo de conhecê-lo, e o evangelista faz questão de ressaltar esse paradoxo.
É interessante notar a reação de Jesus frente ao pedido desses judeus de origem pagã. Ele poderia aproveitar a oportunidade para aumentar sua fama, colhe o momento para desenvolver uma catequese profunda e exigente sobre o seu messianismo. Jesus responde declarando que sua Hora está próxima e que logo mais sua Glória será plenamente conhecida. Essa Hora é a meta da sua vida, mas está envolta em mistério e provoca medo. A assinatura da nova aliança visualizada por Jeremias tem um custo que assusta o próprio Jesus. Sua Hora é a paixão por amor, sua Glória é a cruz.
A glória do Filho do Homem – assim como a glória dos filhos e filhas de Deus – está muito longe de se identificar com a fama e o sucesso. O brilho de Deus se assemelha ao mistério da semente. “Eu garanto a vocês: se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas se morre, produz muito fruto.” A conquista da fama e do poder de comandar e ordenar, em vez de ser portadora de glória, é caminho para a esterilidade e a solidão. Só o dinamismo de um amor que leva à doação radical de si mesmo a fundo perdido tem futuro e é digna de louvor. Mas este caminho nunca foi e não é fácil...
O que impressiona é que, no exato momento em que sua fama ultrapassa os estreitos limites do judaísmo, Jesus aceba para o mistério da semente, abre-nos seu coração e nos revela sua vulnerabilidade. “Agora estou muito perturbado. E o que vou dizer? Pai, livra-me desta hora? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim. Pai, manifesta a glória do teu nome.” A possibilidade do martírio desestabiliza o próprio Filho de Deus, mas esse é o testemunho inequívoco de amor e o ápice da vida cristã. Este é o caminho que nos conduz à verdadeira liberdade e a uma vida plena de sentido.
O Messias é vulnerável, e assumindo essa condição comum aos seres humanos, nos salva. A carta aos Hebreus diz sem titubeios: “Durante sua vida na terra, Cristo fez orações e súplicas a Deus em alta voz e com lágrimas ao Deus que o podia salvar da morte.” A assunção dessa condição humana encarna e exemplifica sua obediência e sua perfeição. E é assim que ele se torna fonte na qual também nós podemos beber liberdade, salvação e vida plena. Jesus Cristo é o Messias de Deus que, inspirado no mistério da semente, mergulha fundo na debilidade humana e a assume como caminho de humanização.
Jesus de Nazaré: também nós desejamos ver-te de perto, ouvir tua palavra, seguir teus passos. Tu és um profeta que se entrega sem reservas ao sonho de mudar o mundo e de revelar o rosto de um Deus que é pai e mãe. Por isso, assumes a vulnerabilidade e a conflitividade, desces ao fundo da condição humana e aceitas ser elevado na cruz, entre criminosos desprezados. Imprime tua força em nosso coração. Renova tua aliança conosco. Ajuda-nos a ser semente que aceita corajosamente a morte para frutificar abundantemente. Ensina-nos o que realmente significa obedecer ao Pai. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Profecia de Jeremias 31,31-34 * Salmo 50 (51) * Carta aos Hebreus 5,7-9 * Evangelho de São João 12,2033)

quinta-feira, 15 de março de 2018

A sagrada terra da missão (3)


“Vocês são todos irmãos e irmãs!”
Depois de uma semana nestas terras abençoadas por Deus, berço da vida humana, ainda tenho que me acostumar com duas coisas (não que as demais já estejam completamente assimiladas, mas estas duas são mais contundentes): o “calorzinho básico” e a língua desse povo.
Sou um amante do frio, e o calor me judia um pouco, mas nada que não seja superado com uma bela ducha fria. Nestes dias, estou hospedado no Centro de Formação de Anchilo, onde estou frequentando um curso de iniciação sobre a cultura e a língua do povo Macúa. Aqui não há chuveiro elétrico, e o banho é frio mesmo, o que é naturalmente bom!
Ainda a questão da língua
Preciso me acostumar com a língua falada pelo povo e aprender a compreender o que ele fala nas ruas. Tenho necessidade de entender o que falam os funcionários da casa que me hospeda, as pessoas que circulam pelo terreno rumo às suas machambras, as crianças a caminho da escola. Não consigo entende-los, pois já que todos falam o macúa, e a língua portuguesa é dominada apenas por quem foi escolarizado! Vivo algo como o que acontece comigo quando volto pra Linha Moraes, lá na minha terrinha de São Carlos: lá, todos falam o alemão, e quem não entende não faz a mínima ideia do que está se passando.
Vivi fortemente e na própria pele este desafio do idioma durante uma celebração eucarística da qual participei, numa das comunidades próximas da sede da missão. No final da missa fui apresentado como o novo missionário que havia chegado do Brasil. Naturalmente, eu era o alvo dos olhares curiosos de todos os presentes, mas isso não vem muito ao caso! Foi uma celebração quaresmal viva, cheia de fé e esperança.
A pequena capela estava lotada. Mulheres, homens, jovens e crianças apertavam-se para dentro da pequena igreja. A maioria dos homens se reunia num lado, as mulheres de outro; as crianças à frente, e os jovens do outro lado. Mesmo em grande número, as crianças se comportavam de modo irrepreensível e focavam sua atenção no que estava passando na celebração. Apenas dois jovens se ocupavam de organizar aquela pequena multidão, pois a cada momento chegava mais gente que precisava ser acomodadas.
A missa foi celebrada basicamente na língua macúa.  Adivinhem o quanto eu entendi! Mas nem por isso deixei de vivenciar a celebração com devoção e intensidade. Naquele dia experimentei um pouco aquilo que sempre ouvi nas aulas de história da Igreja sobre a celebração em latim: o povo não compreendia o que celebrava, não entendia o que o padre ensinava.
Foi uma celebração como tantas outras, mas duas meninas de mais ou menos 10 anos de idade roubaram a minha atenção na hora do Pai Nosso, cantado em macúa. Ambas de olhos fechados, mãos erguidas, cantavam com tanto fervor, que me parecia ver brilho no rosto delas. Elas sabiam o verdadeiro significado daquilo que estavam cantando! Não estavam imitando ninguém, pois ambas, como as demais crianças, estavam lado a lado em frente ao altar. Aquilo iluminou e revigorou o meu domingo!
A pessoa como transportadora de cargas
Aqui, tanto os homens como as mulheres andam nas ruas carregando cargas enormes, equilibradas sobre a cabeça. Quando vejo alguém carregando enormes feixes de madeira, mesas, cadeiras (até cama já vi um homem carregando!), fico imaginando como me viraria numa situação dessas... E logo percebo que fracassaria, já que nem consigo me equilibrar por muito tempo sobre uma perna. As crianças aprendem isso desde pequeninas, carregando sobre a cabeça seus chinelos, enxadas, foices ou até coisas menores, como sabonetes ou os próprios cadernos escolares.
Ao estrangeiro, parece que seria muito mais fácil carregar essas coisas com as mãos, mas eles não o fazem. As mãos ficam livres para outras atividades! Muitas mulheres, ao mesmo tempo em que levam uma boa carga sobre a cabeça, levam seus filhos pendurados às costas, ao lado ou à frente. Quando alguém não está habituado a presenciar estas situações, realmente fica impressionado. Mas o que eu sinto é admiração por estas pessoas, pela força e garra que demonstram. Não se deixam desanimar por qualquer coisinha...
Curiosidades e imprevistos
Caminhando nos arredores da sede missão, percebi que as plantações de mandioca tinham uma peculiaridade: o plantio é feito de forma diferente de como se faz no Brasil. Aqui corta-se uma pedaço da rama, enterra-se uma parte, como fazemos no Brasil para plantar um ramo de flor. O motivo para se plantar desse jeito são os cupins. Há muito cupim por aqui. Até as árvores precisam ter o tronco pintado para que os cupins não se instalem na árvore e a matem.
Como disse, estou passando um mês nas imediações da capital, Nampula. O Padre Celso trouxe-me de carro, e durante o caminho acabamos atolando na areia. Foi necessária a ajuda de 10 a 15 pessoas para tirar o carro da areia. O povo já sabe que muitos carros atolam, e já estão à espreita para ajudar, e assim ganhar alguns meticais (moeda local).
Formar a única família do Pai!
Um elemento da cultura macúa com o qual eu já me identificava muito antes de saber como eram as coisas por estas terras abençoadas é a questão da família alargada. Da família fazem parte não somente pais, mãe e filhos, mas todos os irmãos, primos, sobrinhos e cunhados. Àqueles que chamamos de primos de segundo o terceiro grau, este povo trata como se fossem irmãos. Há até o costume de chamar uns aos outros de “mano”, significando essa irmandade, mesmo sem nenhum laço sanguíneo que os ligue.
Eu sempre considerei parte da minha família pessoas que não possuem um laço de sangue conosco, sempre coloquei meus amigos como integrantes da minha família. São parte da minha família as pessoas às quais posso confidenciar meus segredos, chorar minhas penas e celebrar minhas vitórias. Depois de oito anos de caminha formativa e missionária, colecionei inúmeros “familiares” por todos os lugares onde passei, e os considero parte da minha família alargada.
Fr. Ricardo Klock msf
23 de fevereiro de 2018

O Evangelho dominical - 18.03.2018


CONFIANÇA ABSOLUTA
A nossa vida decorre, no geral, de forma bastante superficial. Poucas vezes nos atrevemos a entrar em nós mesmos. Produz-nos uma espécie de vertigem aproximar-nos da nossa interioridade. Quem é esse estranho que descubro dentro de mim, cheio de medos e interrogações, faminto de felicidade e farto de problemas, sempre em busca e sempre insatisfeito?
Que postura adoptar ao contemplar em nós essa mistura estranha de nobreza e miséria, de grandeza e pequenez, de finitude e infinitude? Entendermos o desconcerto de Santo Agostinho, que, questionado pela morte do seu melhor amigo, reflete sobre a sua vida: «Converti-me num grande enigma para mim mesmo».
Há uma primeira postura possível. Chama-se resignação, e consiste em nos contentarmos com o que somos. Instalar-nos na nossa pequena vida de cada dia e aceitar a nossa finitude. Naturalmente, para isso temos de abafar qualquer rumor de transcendência. Fechar os olhos a qualquer sinal que nos convide a olhar para o infinito. Permanecer surdos a todas os chamados provenientes do Mistério.
Há outra atitude possível ante a encruzilhada da vida. A confiança absoluta. Aceitar na nossa vida a presença salvadora do Mistério. Abrir-nos a ela do mais fundo do nosso ser. Acolher a Deus como raiz e destino do nosso ser. Acreditar na salvação que se nos oferece.
Só desde essa confiança plena em Deus Salvador se entendem essas desconcertantes palavras de Jesus: «Quem vive preocupado com a sua vida a perderá; pelo contrário, quem não se agarre excessivamente a ela a conservará para a vida eterna». O decisivo é abrir-nos confiadamente ao Mistério de um Deus que é Amor e Bondade insondáveis. Reconhecer e aceitar que somos seres «gravitando em torno a Deus, nosso Pai”. Como dizia Paul Tillich, «aceitar ser aceito por Ele».
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

terça-feira, 13 de março de 2018

A sagrada terra da missão (2)


“Ainda que eu falasse a língua dos anjos...”
Nesta segunda crônica, escrita ainda, literalmente, no calor da chegada, o Fr. Ricardo fala de um dos maiores desafios de quem aceita entrar na aventura missionária: o mundo da cultura e da língua, que é como a segunda natureza de uma pessoa e de um povo, um mistério que inicialmente se nos apresenta como misterioso e estranho, que se deixa entender apenas pela comparação e pela oposição.
Entrar na alma de um povo, na sua cultura e na sua língua, é tão difícil quanto necessário. Num outro contexto semântico e teológico, o apóstolo Paulo diz que, mesmo que falemos a língua dos homens e dos anjos, a comunhão e a comunicação são impossíveis se formos incapazes de amar. O amor é a língua universal. O reconhecimento e a afirmação da dignidade do Outro, do diferente, é o que faz a missão ser um empreendimento divino, e não uma conquista interesseira e deplorável.
O que você disse?
Ao chegar no aeroporto de Johannesburgo, vindo de São Paulo, todo meu português, espanhol, alemão e inglês (idiomas que domino razoavelmente) se mostraram obsoletos. Eu entendia muito pouco do que as pessoas falavam, e até mesmo dos anúncios nos alto-falantes do aeroporto. Por sorte, a escrita era a mesma do Brasil... Foi a minha salvação!
Mas a África é um continente muito plural, não só em termos de línguas oficiais, mas principalmente na questão dos dialetos e línguas tribais, que se espalham e diversificam por todo o continente, podendo haver mais de uma em determinadas regiões.
No distrito de Mecubúri, onde estou vivendo, o idioma falado é o macúa. Não entendo nada! Ao menos por enquanto, pois no dia 19/02 irei começar o curso básico de cultura e língua macúa. Se eu já havia tido dor de cabeça nos primeiros dias do meu ano de noviciado no Chile, consequência do esforço para entender alguma palavra, agora então, a dificuldade aumentou um pouquinho... Eis um primeiro e grande desafio: aprender a língua macúa!
Com licença, senhor!
Na sexta, 16 de fevereiro, participei da graduação de 19 jovens da Escola Familiar Rural. Eles participaram do curso de manejo e criação de aves de corte. Quanta formalidade! Em cada uma das falas era necessário, para não dizer obrigatório, pedir licença aos representantes do governo, presentes na mesa de honra. Quando o representante da administração do distrito se pronunciou, fez toda uma saudação, e em até certo ponto “puxou o saco” do atual presidente da república.
Cenas como essa me deixam muito constrangido e intrigado. Para mim, denotam a submissão das pessoas perante a outrem que possua um cargo superior a ela, independentemente de quem seja. As pessoas são muito prestativas, mas me pergunto até que ponto isso é gentileza ou uma cega e medrosa obediência, uma ferrenha estratificação social.
Outras cenas da mesma festa
Terminada a cerimônia de graduação, tivemos um almoço, no qual tive outro choque de realidade, e não somente em relação à comida (que não é muito diferente da comida do Brasil, apenas não é tão fortemente temperada, de modo que sente-se o gosto natural dos alimentos). Os jovens que se graduaram, que na sua maioria eram moças, fizeram os três meses de curso carregando seus filhos nas costas.
Sim, aqui as mulheres carregam os filhos nas costas, presos por um pano (capulana). Elas trouxeram os filhos para a cerimônia, e estes eram os únicos familiares presentes à celebração. O colégio não teria condições de oferecer almoço para todos os convidados... Aqui o habito é que, quando se estipula um determinado número, as pessoas acabam levando mais gente, o que torna inviável oferecer um almoço para todos.
Como esta é uma sociedade na qual ainda existe a separação de classes, para o almoço foram organizadas duas mesas: uma para as autoridades e outra para os graduandos. Antes do almoço ser servido uma dupla de rapazes passou com uma bacia de água e uma toalha para que todos lavassem as mãos. Muitos não utilizam talheres, ou usam apenas colheres. Para para dar de comer às crianças, as mães utilizam as mãos...
O que mais me surpreendeu foi a quantidade de comida que aquelas jovens serviram em seus pratos. Eram verdadeiras montanhas. O que ocorre é que a maioria delas não teria um rico almoço desses em suas casas. Percebia-se a alegria no olhar de cada uma delas, estavam satisfeitas.
Estrangeiro e estranho
Não é incomum sentir-se um estranho por essas terras. Ao andar pelas redondezas da missão, todos os olhares se voltam para mim, ou para quem estiver ao meu lado. Realmente, ser observado não é uma experiência que possa ser dita agradável. Mas sinto que não é por desdém ou por medo que eles me observam. É por pura curiosidade, como se dissessem: “Apareceu uma novidade no meio de nós!”
Enquanto eu esperava pelo início da cerimônia de graduação na Escola, um grupo de crianças que estudam na escola pública, ao lado da nossa missão, começaram a gritar e me cumprimentar, obviamente no idioma macúa. É claro que eu não entendia o que eles diziam, e até fiquei com vergonha. Até que um deles gritou “bom dia!”, e eu respondi com outro “bom dia” e um aceno de mão. E então o grupo saiu correndo, às gargalhadas. É imperativo aprender o idioma macúa!
Como no Brasil...
A política é, para variar, um dos grandes problemas deste belo país. A corrupção rola solta, a violência e o assassinato de políticos ou de pessoas que denunciam injustiças é bastante comum. Recentemente o prefeito da cidade de Nampula foi assassinado, segundo o que se diz, porque havia feito muitas denúncias contra a corrupção e estava trabalhando para o bem do povo. Quem deveria assumir sua função era o presidente da câmara, pois aqui não há a figura do vice-governador. Entretanto, ele não poderia assumir pois está condenado por corrupção, e novas eleições foram realizadas. O povo aguarda o segundo turno, que acontecerá no mês de março. Parece que os colonizadores portugueses deixam a política que é uma merda em todos os lados!
Uma diversa divisão do trabalho
Nossa moradia não está muito longe do centro do distrito. Na vila, os mercados são em sua maioria a céu aberto, e neles se vende de tudo, principalmente alimentos. As lojas são um pouco maiores, e grande parte pertence a indianos. Fomos comprar arroz, e o menor saco que eu vi era de 25 kg! A base da alimentação gira em torno do milho, do arroz e do feijão, mas aqui na missão temos uma maior diversificação de alimentos, graças à produção própria. Nestes dias carneamos um porquinho!
Pela primeira vez na minha vida, hoje utilizei a bomba manual de água, pois precisava lavar minha roupa. Eis mais uma coisa interessante por aqui: os trabalhos domésticos, tanto nas próprias casas como no emprego, são realizados pelos homens! As mulheres são responsáveis pelas machambras, os pedaços de terra que elas cultivam. A nossa missão é uma exceção: nossa cozinheira é a “mamá” Albertina. Mas o lavador de roupa e o cozinheiro da escola são jovens. E é preciso reconhecer eles tem uma ótima mão para a cozinha...
Ao lado de nossa casa passa a principal estrada de ligação com Nampula, a capital do estado. Durante o dia inteiro, pode-se ver circular mulheres com grandes feixes de lenha sobre a cabeça. Geralmente elas precisam caminhar muitos quilômetros com esses fardos na cabeça.
Reaprender é preciso!
Aqui estou tendo que reaprender a dormir! Não se trata mais de simplesmente vestir o pijama e se jogar na cama. Agora visto o pijama, ou não, por que a noites moçambicanas são bem quentes, e então arrumo o mosquiteiro. Por causa do risco de malária, toda precaução é pouca. E então, a qualquer momento, para um pequeno cochilo (e quem me conhece sabe que não são tão pequenos) ou para longas horas de sono, é preciso instalar o mosquiteiro.
Por estes dias tem escurecido um pouco mais tarde, pelas 18 horas. Daqui a alguns meses, já me informaram, que escurecerá lá pelas 17 horas! E o dia estará claro, com o sol raiando, já pelas 5:30h da manhã. Meu relógio biológico precisa se adaptar!
Não quero parecer saudoso, melancólico, ou reclamão, mas está sendo tudo diferente. Cada experiência é nova e rica. Mas podem ter certeza de que estou muito alegre e aprendendo muito.
Fr. Ricardo Klock msf
17 de fevereiro de 2018