quinta-feira, 28 de junho de 2018

18 anos de presença MSF no Alto Juruá (1)

O mundo volta sua atenção à Amazônia

Logo mais, no dia 11 de julho, o calendário marca 18 anos da presença dos Missionários da Sagrada Família na Prelazia de Tefé, mais precisamente, às margens do Rio Juruá, municípios de Carauari e Itamarati.  Esta pequena comunidade – nunca fomos mais que cinco! – é a forma que encontramos de “dar da nossa pobreza”, atendendo ao apelo que nos chega da Igreja amazônica.
A V Conferência Geral do Espiscopado Latino-Americano e do Caribe (Aparecida, Brasil, 2007) afirma: “A fé se fortalece quando é transmitida e é preciso que em nosso continente entremos em uma nova primavera da missão ad gentes. Somos Igrejas pobres, mas devemos dar de nossa pobreza e a partir da alegria de nossa fé, e isso sem descarregar sobre alguns poucos enviados o compromisso que é de toda a comunidade cristã” (Documento de Aparecida, 379).
E o grupo de bispos, padres, religiosos e agentes leigos da região Pan-Amazônica, reunidos no III Encontro Regional sobre a Amazônia (outubro/2009) escreveu: “É necessário reconhecer a Amazônia como um dom de Deus em sua criação. Este dom tem como particular característica a diversidade múltipla, tanto de climas, biomas, rios e recursos naturais como de tradições históricas, culturais, lingüísticas e territoriais dos povos aborígenes que a habitam. Esta característica inerente permite pensar a região como um verdadeiro arquipélago amazônico mais que uma só região uniforme.” 
De fato, a área chamada Pan-Amazônia abrange aproximadamente 7,5 milhões de km2, se estende por oito países sul-americanos e representa 43% da área da América do Sul. Nesta área quase continental predomina altaneiro o rio Amazonas, com seus mais de 1.100 afluentes, que tecem a rede fluvial mais extensa do mundo, com mais de 25.000 km navegáveis. A região amazônica concentra 20% da água doce não congelada do planeta; abriga 34% das florestas primárias e 30% da fauna e 50% da flora do mundo. Eis algumas das razões que fizeram com que esta região passasse a ser olhada como uma praça central do planeta e deixasse de ser considerada um quintal desprezível.
Mas a Amazônia não é feita somente de florestas e rios. Nela vivem mais de 40 milhões de pessoas. Deste contingente, 3 milhões são indígenas, distribuídos em mais de 400 povos que falam 250 diferentes línguas (agrupadas em 49 famílias linguísticas). Além disso, a Pan-Amazônia é habitada por milhares de comunidades afro-americanas e uma infinidade de comunidades ribeirinhas compostas de mestiços, caboclos, migrantes, agricultores e habitantes de cidades médias e grandes. As pesquisas arqueológicas comprovaram que a presença humana na região remonta a mais de 11.000 anos.
Mais que um descobrimento, a chegada dos europeus no século XVI representou uma espécie de encobrimento desta rica realidade e uma negação da dignidade dos povos aborígenes. Alguns historiadores afirmam que a invasão européia deu início a um dramático processo de esgotamento dos recursos naturais e de escravidão e extermínio dos povos povos nativos, provocando uma das maiores catástrofes demográficas da história recente: os cinco milhões de indígenas pertencentes a 900 grupos étnicos que existiam no ano 1500 se reduziram às poucas centenas de milhares de hoje. Infelizmente, a depredação dos recursos da Amazônia e a violência contra os povos indígenas e tradicionais continuam hoje com os novos ciclos extrativistas e, sobretudo, com os grandes projetos de desenvolvimento que estão sendo implantados em toda a região. (continua)
Itacir Brassiani msf

quarta-feira, 27 de junho de 2018

ANO B – DÉCIMO-TERCEIRO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 01.07.2018


A fé nos ilumina na busca de solução para os dramas humanos.
É triste constatar, mas vamos nos acostumando com os atos, atitudes e estruturas contrárias ao Evangelho de Jesus Cristo. A cultura funciona de modo semelhante ao nosso corpo: se começamos ingerindo pequenas doses de veneno letal e formos aumentando levemente a medida, as células, tecidos e aparelhos vão se habituando e acabam não reagindo mais. Assim também acontece com a injustiça e a mentira: às custas de doses diárias, ininterruptas e crescentes deste veneno, os cristãos assimilamos esse material venenoso e mortífero como natural e não conseguimos mais esboçar reações contrárias. Até as Igrejas são tentadas a obedecer mais à diplomacia e às exigências do status que ao Evangelho.
O mundo no qual Jesus se movimenta e atua não é a metafísica abstrata ou o mundo das teorias, mas a sociedade e a vida concreta. O que está em questão no evangelho proclamado hoje não é a morte biológica, mas a morte social, que denominamos marginalização. Jesus não se interessa prioritariamente por conceitos ou leis, pois está implicado com a vida e a dignidade concretas das pessoas. Sua preocupação não é com coisas que denominamos espirituais ou interiores, mas com aquilo que melhora ou dificulta o bem viver do seu povo.
As ações e palavras de Jesus estão referidas e um contexto sociocultural bem específico. Marcos coloca à nossa frente duas categorias de pessoas. Na primeira categoria entra Jairo, que tem nome, é chefe de uma sinagoga e chefe de uma família. Entra também sua filha que, estando doente, pode contar com a assistência própria da sua classe social. Jairo trata Jesus como alguém do seu nível, fazendo-lhe a reverência devida às pessoas consideradas dignas, mesmo que existam indícios de que a sua aparente polidez no tratamento esconde a falta de fé.
Na segunda categoria está uma mulher sem nome, uma criatura anônima e perdida no meio da multidão, encurvada sob o peso de uma hemorragia que a leva às mãos de exploradores duplicam sua condição de marginalizada: mulher, impura e pobre. Ela não tem nome, nem família, nem honra. Vive sob o manto da vergonha, esta sensibilidade pessoal diante do que os outros pensam de sua honra. Ninguém intercede em seu favor, e ela sabe que não pode se aproximar de Jesus como as pessoas honradas. Mas Jesus não respeita os costumes do código de honra que rege as relações sociais de Israel!
Jesus subverte a ordem estabelecida quando se trata de socorrer as pessoas em situação de vulnerabilidade. Neste caso, Jesus deixa em segundo plano o atendimento ao pedido de Jairo, uma pessoa com status e reconhecimento social, a se entretém com uma pessoa triplamente proscrita. E não quer nem saber se com isso coloca em risco a vida da filha de Jairo. Aquela mulher anônima e sem classe aproxima-se por trás e toca-lhe o manto, marcando-o com a impureza que lhe era atribuída, e este gesto desesperado de uma pessoa habituada ao sofrimento não passa incógnito a Jesus.
Mesmo sem ter pedido nada a Jesus, a mulher, vítima de uma sociedade patriarcal, de um sistema de pureza e de um sistema médico explorador tem prioridade sobre o pedido de Jairo. Somente depois de curada, a mulher cai aos pés de Jesus, conta o drama que vivera e que chegava ao fim, expõe a vergonha que carregava por ser vista e tratada como impura. O medo e a vergonha desaparecem e dão lugar à alegria quando ela escuta da boca de Jesus: “Filha, tua fé te salvou. Vai em paz e fica livre da tua doença.” Jesus vê seu gesto como demonstração de uma fé autêntica e fecunda, e não como sinal de desespero.
Depois desta cena, Jesus segue em direção à casa de Jairo, indiferente à notícia de que a menina morrera, como se não tivesse perdido nada. Pede apenas que Jairo siga o exemplo daquela mulher anônima, que creia e tenha fé. É com a ajuda da mudança de mentalidade de Jairo que a menina recupera a vida.  Assim, para que possa merecer respeito, uma ordem social e cultural precisa abrir-se à fé e aderir ao dinamismo do Reino de Deus, que é uma nova ordem, um outro mundo, no qual todas as pessoas gozam do mesmo status, de igual dignidade. Somente isso liberta os marginalizados e poupa os ‘honrados’.
Jesus de Nazaré, profeta do Reino de Deus, amigo e próximo das pessoas menosprezadas e excluídas: tua delicadeza para com a mulher anônima e mestra na fé nos comove e interpela, e a cura da filha de Jairo nos convoca a renovar nossas instituições subordinando-as à lógica do reino de Deus. Como comunidade de discípulos e discípulas te pedimos: ajuda-nos a tirar a máscara de amor e de fé com que muita gente encobre a discriminação das mulheres e a indiferença e ódio às pessoas e grupos marginalizados. Que nossa missão seja fazer com que os últimos sejam os primeiros. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf

(Livro da Sabedoria 1,13-15.2,23-24 * Salmo 29 (30) * 2ª. Carta aos Coríntios 8,7-15 * Evangelho de  São Marcos 5,21-43)

ANO B – SOLENIDADE DOS APÓSTOLOS SÃO PEDRO E SÃO PAULO– 01.07.2018


Nada e ninguém consegue algemar o Evangelho de Jesus Cristo!
Concluímos ontem um mês cheio de memórias de santos populares, mas ainda resta a solenidade de São Pedro e São Paulo. Escutemos e acolhamos com reverência o testemunho destes irmãos maiores, colunas que sustentam as comunidades cristãs. Mas, para chegar à vida real destes personagens é preciso escutar as Escrituras. Se é verdade que Pedro é o primeiro líder dos cristãos e Paulo é o apóstolo dos povos, também é certo que ambos, cada um a seu modo e a seu tempo, foram discípulos de Jesus e passaram por sucessivas crises e dificuldades, provaram a prisão e foram martirizados.
Esqueçamos por um instante a cena contada por Mateus e centremos nossa atenção no acontecimento narrado nos Atos dos Apóstolos. Pedro, o primeiro Papa foi presidiário! “Para que servem as chaves prometidas por Jesus Cristo se não ajudam a soltar as algemas que o prendem ou abrir a porta da prisão, mantida sob rigorosa vigilância?” Pedro estava imerso na penumbra desta e outras perguntas quando uma luz iluminou sua cela, uma mão tocou seu ombro e uma voz ordenou que se levantasse. As algemas caíram, os guardas não viram nada, e a porta que separava a cela da cidade se abriu sozinha...
Por sua vez, Paulo, depois de ter sido um fariseu zeloso e violento e de ter acumulado muitos méritos e honras por causa disso, fez a experiência de ser conquistado por Jesus Cristo e, diante do bem supremo desta acolhida gratuita e imerecida, considerou tudo o mais como lixo e déficit na contabilidade da vida (cf. Fil 3,1-14) e se lançou incansavelmente no anúncio desta boa notícia, especialmente às pessoas e comunidades de origem pagã. O zelo e o ardor que Paulo demonstrara pelo judaísmo se transformou em zelo pela fé em Jesus Cristo. Com isso, perdeu de vez a tranquilidade...
Sua complexa trajetória de vida atraiu contra Paulo a desconfiança dos próprios cristãos e o ódio dos seus irmãos judeus. Depois de sucessivos enfrentamentos e perseguições, ele também acabou na prisão. Sendo cidadão romano, exigiu o direito de ser julgado decentemente pelo imperador, e foi conduzido a Roma. Entretanto, ninguém conseguiu colocar sob algemas aquilo que o fazia livre: a Boa Notícia de Jesus Cristo. “Por ele, eu tenho sofrido até ser acorrentado como um malfeitor. Mas a Palavra de Deus não está acorrentada”, escreveu ele ao seu fiel amigo e companheiro Timóteo (2Tm 2,9).
Pedro e Paulo são filhos, irmãos e pais da fé numa Igreja que confirmou com a vida aquilo que anunciou com as palavras. De um lado, Pedro, Paulo e os demais cristãos detidos mantêm contato com as suas comunidades de base, inclusive através de cartas às suas principais lideranças; de outro, as comunidades não ficam indiferentes, apesar da crise de fé provocada por uma perseguição feita em nome de Deus e da religião, assim como pelos riscos políticos e sociais que estas relações implicam. O vínculo entre a comunidade dos discípulos e seus líderes presos se mostra de um modo singelo e comovente no relato dos Atos dos Apóstolos que a liturgia nos propõe hoje (cf. 12,1-11).
As escrituras dizem que “enquanto Pedro era mantido na prisão, a Igreja orava continuamente por ele.” É neste contexto que Pedro experimenta a presença fiel de Deus também na prisão. Logo que é libertado do cárcere, vai à casa da mãe de João Marcos, onde a comunidade está reunida em oração. Quando Rosa, a mãe de Marcos, abre a porta e vê que é Pedro, é tomada de tamanha alegria que o deixa plantado do lado de fora e vai às pressas anunciar a boa notícia à comunidade reunida, a qual pensa que Rosa está doida. Aberta a porta, Pedro entra, e conta entusiasmado o que havia acontecido.
O que sustenta as Igrejas e comunidades cristãs é o encontro com Deus em Jesus Cristo. O que o evangelho de hoje nos propõe é substancialmente isso. Num lugar marcado pelo domínio estrangeiro, Jesus interroga seus discípulos sobre o que pensam dele. E Pedro é o primeiro dentre todos os discípulos a reconhecê-lo e proclamá-lo Messias. Só quem está aberto e sintonizado com a lógica de Deus pode reconhecer sua presença nas ações e palavras deste filho da humanidade, no irmão de todos os seres humanos. Esta é a base sólida sobre a qual Jesus Cristo constrói a comunidade cristã.
Queridos Pedro e Paulo, apóstolos e irmãos na fé! Com vocês aprendemos que crer, confiar, partilhar e anunciar são os verbos essenciais da gramática e na ação cristã. O verdadeiro discípulo é aquele que conjuga estes verbos em todos os tempos, modos e pessoas. Ajudem-nos a viver de tal modo que, chegando ao entardecer da existência, também nós possamos dizer: “Chegou o tempo da minha partida. Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé.” Suportando os sofrimentos e incertezas presentes, jamais nos envergonhemos ou desanimemos, pois sabemos em quem acreditamos! Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
 (Atos dos Apóstolos 12,1-11 * Salmo 33 (34) * 2ª. carta a Timóteo 4,6-8.17-18 * Evangelho de Mateus 16,13-19)

O Evangelho dominical - 01.07.2018

A GRANDE FÉ DE UMA MULHER

A cena é surpreendente. O evangelista Marcos apresenta uma mulher desconhecida como modelo de fé para as comunidades cristãs. Dela poderão aprender como procurar Jesus com fé, como chegar a um contato curador com Ele e como encontrar Nele a força para iniciar uma vida nova, cheia de paz e saúde.
Diferentemente de Jairo, identificado como «chefe da sinagoga» e homem importante em Cafarnaum, esta mulher não é ninguém. Só sabemos que padece de uma doença secreta, tipicamente feminina, que lhe impede de viver de forma sã a sua vida de mulher, esposa e mãe.
Sofre muito física e moralmente. Arruinou-se procurando ajuda nos médicos, mas ninguém a pôde curar. No entanto resiste a viver para sempre como uma mulher doente. Está só. Ninguém a ajuda a aproximar-se de Jesus, mas ela saberá encontrar-se com Ele.
Não espera passivamente a que Jesus se aproxime e lhe imponha as Suas mãos. Ela mesma o procurará. Irá superando todos os obstáculos. Fará tudo o que possa e saiba. Jesus compreenderá o seu desejo de uma vida mais sã. Confia plenamente na Sua força curadora.
A mulher não se contenta só com ver Jesus de longe. Procura um contato mais direto e pessoal. Atua com determinação, mas não de forma destrambelhada. Não quer incomodar ninguém. Aproxima-se por detrás, entre as pessoas, e toca-Lhe no manto. Nesse gesto delicado concretiza e expressa a sua confiança total em Jesus.
Tudo ocorreu em segredo, mas Jesus quer que todos conheçam a fé grande desta mulher. Quando ela, assustada e temorosa, confessa o que fez, Jesus diz-lhe: «Filha, a tua fé te curou. Vai em paz e com saúde». Esta mulher, com a sua capacidade para procurar e acolher a salvação que nos são oferecidas em Jesus, é um modelo de fé para todos nós.
Quem ajuda as mulheres dos nossos dias a encontrarem-se com Jesus? Quem se esforça por compreender os obstáculos que encontram em alguns setores da Igreja atual para viver a sua fé em Cristo «em paz e com saúde»? Quem valoriza a fé e os esforços das teólogas que, com pouco apoio e vencendo toda a classe de resistências e rejeições, trabalham sem descanso para abrir caminhos que permitam à mulher viver com mais dignidade na Igreja de Jesus?
As mulheres não encontram entre nós o acolhimento, a valorização e a compreensão que encontravam em Jesus. Não sabemos olhar como as olhava Ele. No entanto, com frequência, elas são também hoje as que com a sua fé em Jesus e o seu alento evangélico sustentam a vida de não poucas comunidades cristãs.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

sábado, 23 de junho de 2018

ANO B – SOLENIDADE DO NASCIMENTO DE SÃO JOÃO BATISTA – 24.06.2018


João, um profeta que veio para endireitar estradas.
A festa de São João está profundamente arraigada na cultura do povo brasileiro. Em algumas regiões, tornou-se atração turística e é explorada como ocasião para ganhar dinheiro ou consolidar votos. Mas esta é uma festa que só aparentemente se distanciou do seu nascedouro bíblico e profético. Pois a alegria simples e inocente que a caracteriza brota da certeza de que Deus não esquece a aliança que fez conosco, visita e liberta seu povo, e envia profetas e profetizas que preparam caminhos novos. Por isso, celebremos este dia com a alegria que brota da liberdade que virá e com a coragem de João.
A festa de hoje não exige megaprodução. Bastam uma pequena fogueira e alguns fogos de artifício, algumas roupas simples e baratas, uma banda improvisada e capaz de tocar a alma popular, alimentos que custam pouco e têm sabor de intimidade, bandeirinhas coloridas nos varais e balões levados ao sabor do vento... Os degraus do poder são substituídos pela roda que a todos iguala nas mãos dadas. A seriedade dos comandantes e a resignação dos que devem obedecer o ritmo de produção ditado pela sede de lucro dão lugar a uma alegria que não há como esconder, uma alegria que lança raízes no passado bíblico que nos pertence e se embebeda das luzes de um mundo que está por vir.
De repente, os operários viram artistas, os camponeses se revelam bailarinos, os coadjuvantes são protagonistas. A alegria, assim como a irreverência, têm raízes bíblicas e força revolucionária. Não se trata da alegria forçada pelas drogas, nem da felicidade histérica de quem se deleita nos bens subtraídos aos homens e mulheres que os produzem, e também não é a alegria produzida artificialmente por líderes religiosos sequiosos de domínio e de riqueza, ou por estrelas políticas e midiáticas que seduzem incautos mas duram pouco mais que uma noite.
Trata-se da alegria que brota da descoberta de que Deus olha para as mãos calejadas, para os rostos sofridos, para os corpos vergados e os corações partidos e os vê e proclama cheios de graça, plenos de charme. “Alegra-te, cheia de graça! O Senhor está contigo! Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre” (Lc 1,28.42). Como Maria na casa de Isabel, alegramo-nos porque Deus olha para a humilhação dos seus filhos e filhas; porque sua misericórdia se estende de geração em geração; porque ele mostra a força do seu braço, derrubando os poderosos dos tronos e elevando os humildes...
Assim, a alegria inocente e despojada das festas juninas tem raízes na história da salvação, que atravessa e supera a história da opressão e que está ainda hoje em curso. O nascimento de João representa a delicadeza de um Deus que levanta o manto da vergonha e da dor que, numa sociedade machista, pesa sobre uma mulher idosa e sem filhos (cf. Lc 1,25). Quando o menino nasce, a vizinhança toda se alegra com mais esta demonstração da misericórdia de Deus. E a razão dessa alegria está no próprio nome dado àquele prodígio nascente: “João é o seu nome!”, dirá Zacarias, acatando a decisão de Isabel.
João significa literalmente ‘Deus age com misericórdia’. Dando este nome ao filho, Zacarias e Isabel rompem com a tradição e renunciam ao hábito de fazer do filho um espelho dos desejos do pai. João será profeta, e não sacerdote, como o pai. Nas palavras de Zacarias, ele será ‘profeta do Altíssimo’, irá à frente do Senhor, ‘preparando os seus caminhos, dando a conhecer ao seu povo a salvação, com o perdão dos pecados, graças ao coração misericordioso do nosso Deus’ (cf. Lc 1,76-78). Segundo os evangelhos, João despertará a ira de Herodes por denunciar seu casamento com a cunhada (cf. Mc 6,17-18).
Mas João é muito mais que um pregador preocupado unicamente com a moralidade matrimonial...  Ele é um autêntico profeta, na linha dos grandes profetas de Israel. Ele exige mudanças radicais, tanto o âmbito pessoal como na esfera social. Eis sua voz: “Preparai os caminhos do Senhor; endireitai as veredas para ele. Produzi frutos que mostrem vossa conversão. Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo...” Trata-se de uma vocação exigente, e parece que o próprio Zacarias inicialmente não a entende ou não a aceita a vocação profética do filho.
Deus dos humildes, pai e mãe dos profetas e profetizas, razão da nossa alegria: te agradecemos pelos homens e mulheres que continuas enviando para transformar desertos em jardins e acender teu fogo no mundo. Eles se chamam João, Adelaide, Pedro, Oscar, Ezequiel, Sepé, Dorothy. Mas seus irmãos e irmãs menos famosos se chamam José, Tião, Rosa, Maria, Tonico, Zeca, Antônio, Severino, Josefa..., gente que faz parte da imensa caravana de homens e mulheres que vivem uma alegria autêntica e simples, inocente e solidária, despojada e profética, um precioso tesouro do povo brasileiro. Bendito sejas para sempre!
Itacir Brassiani msf
 (Profecia de Isaías 49,1-6 * Salmo 138 (139) * Atos dos Apóstolos 13,22-26* Evangelho de Lucas 1,57-66.80)

quarta-feira, 20 de junho de 2018

O Evangelho dominical - 24.06.2018


POR QUÊ TANTO MEDO?
A barca em que vai Jesus e os Seus discípulos vê-se presa por uma daquelas tormentas imprevistas e furiosas que se levantam no lago da Galileia ao entardecer de alguns dias de calor. Marcos descreve o episódio para despertar a fé das comunidades cristãs, que vivem momentos difíceis.
O relato não é uma história tranquilizadora para nos consolarmos a nós cristãos de hoje, com a promessa de uma proteção divina que permita à Igreja passear tranquila através da história. É a chamada decisiva de Jesus para fazer com Ele a travessia em tempos difíceis: “Por que sois tão covardes? Todavia não tendes fé?”
Marcos prepara a cena desde o início. Diz-nos que era “ao cair da tarde”. Rapidamente caíram as trevas da noite sobre o lago. É Jesus quem toma a iniciativa daquela estranha travessia: “Vamos para a outra margem»” A expressão não é nada inocente. Convida-os a passar juntos, na mesma barca, para outro mundo, mais além do conhecido: a região pagã da Decápolis.
De repente levanta-se um forte furação, e as ondas batem contra a frágil embarcação, inundando-a. A cena é patética: na parte dianteira, os discípulos lutando impotentes contra a tempestade; na popa, num lugar algo mais elevado, Jesus dormindo tranquilamente sobre um travesseiro. Aterrorizados, os discípulos despertam Jesus. Não captam a confiança de Jesus no Pai. O único que vêm Nele é uma incrível falta de interesse por eles. “Mestre, não te importa que pereçamos?”
Jesus não se justifica. Coloca-se de pé e pronuncia uma espécie de exorcismo: o vento cessa de rugir e faz-se uma grande calma. Jesus aproveita essa paz e silêncio grandes para fazer-lhes duas preguntas que hoje chegam até nós: “Por que sois tão covardes? Todavia não tendes fé?”
Que está sucedendo conosco? Por que são tantos os nossos medos para afrontar estes tempos cruciais e tão pouca a nossa confiança em Jesus? Não é o medo a nos afundarmos que nos está a bloquear? Não é a busca cega de segurança que nos impede de fazer uma leitura mais lúcida, responsável e confiada destes tempos?
Porque resistimos a ver que Deus está conduzindo a Igreja até um futuro mais fiel a Jesus e ao Seu Evangelho? Porque procuramos segurança no conhecido e estabelecido no passado, e não escutamos a chamada de Jesus a “passar para a outra margem” para semear humildemente a Sua Boa Nova num mundo indiferente a Deus, mas tão necessitado de esperança?
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

ANO B – DÉCIMO-SEGUNDO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 24.06.2018


Viver é sair de si mesmo e tornar-se criatura nova!
A vida é caminhada, uma permanente travessia. Engajamo-nos nas lutas dos homens e mulheres e sentimo-nos atraídos a estabelecer aqui nossa morada, mas, ao mesmo tempo, descobrimo-nos estrangeiros, cidadãos de uma sociedade que ainda está para ser construída. Paulo expressa esse misterioso dinamismo a seu modo: o amor de Cristo nos atrai e pressiona, convidando-nos a passar de uma vida centrada em nós mesmos para uma vida que tem seu foco nos outros. Radicados em Cristo e com os olhos fixos nele, somos chamados a ser mulheres e homens novos.
De fato, são muitas e diversas as nossas travessias. Há uma travessia que leva do ‘eu’ fechado e indiferente ao ‘nós’ aberto e acolhedor. Há a travessia que nos leva da estabilidade de um conhecimento exaustivo e seguro, de uma ciência que imagina desvendar todos os mistérios, de uma ideologia que oferece estratégias para todos os desafios, à reverente consciência de que todas as coisas estão envoltas num mistério que nos ultrapassa e abraça por todos os lados. Há também a travessia possível e urgente de uma sociedade injusta e desigual a uma sociedade inclusiva e solidária... E muitas outras!
Mas as travessias não costumam ser muito tranquilas! Ao lado e contra o movimento de êxodo e expansão que dá vida a todo o universo, há também uma tendência à inércia, à estabilidade. Existem ventos contrários à mudança, forças que nos convidam a permanecer em casa, tentações que nos pedem que não troquemos um mal que conhecemos por um bem que é apenas desejo e promessa. É triste quando, na própria Igreja, nascida para acompanhar a humanidade em suas necessárias travessias, o medo paira como sombra que preenche todos os espaços e inibe todos os passos, e isso não obstante todos os apelos e sinais lançados pelo Papa Francisco.
Sabemos por experiência que aquilo que é desconhecido e foge ao nosso controle nos amedronta. Controlar as situações, ou submeter-se ao controle, nos dá sensação de segurança e de verdade. E o medo acaba sendo a mãe das submissões que limitam, das dominações que esterilizam, das ideologias que matam. É este medo que está na raiz do estado de guerra no qual vivem as sociedades, e promovê-lo é uma estratégia que serve aos dominadores. No coração de algumas liturgias e pregações, e por trás de muitas mensagens políticas, está a intenção de criar medo e, assim, manter a dominação.
O evangelho de Marcos nos revela que os próprios discípulos de Jesus desconhecem e temem a travessia. Depois de terem ouvido da boca de Jesus parábolas que sublinham o dinamismo escondido do Reino de Deus, eles se mostram desconcertados e temem desesperadamente a travessia que os levaria ao encontro dos estrangeiros, dos pagãos. Tudo parece escuro, tanto dentro como fora deles. E Jesus diz claramente que na raiz deste medo está a falta de fé. Pois é absoluta falta de fé esperar que Deus elimine magicamente as dificuldades da travessia da vida ou nos leve imediatamente à outra margem!
A quem Jesus se dirige quando fala “Cale-se! Acalme-se!”? Ao mar e ao vento que, aos olhos dos discípulos, parecem descontrolados e ameaçadores, ou aos próprios discípulos? Mais que o mar, eles é que estão agitados e precisam ser acalmados! O que os aterroriza é a necessidade de mudar de ideia, de ideologia, de projeto de vida, e entrar em diálogo com quem é e pensa diferente. Mas, enquanto eles se apavoram e desesperam, Jesus dorme despreocupadamente. Ele sabe que a vida está na travessia. Quem o desperta não é o vento ameaçador, mas o grito apavorados dos discípulos...
Apesar das aparências em contrário, Jesus se importa com o risco que seus discípulos e discípulas enfrentam. A travessia é necessária e desejada por Deus, e ele nos acompanha em todas elas. É verdade que, às vezes, Jesus parece dormir e sequer tomar conhecimento dos riscos que enfrentamos, mas o que ele não quer é assumir a responsabilidade e o lugar que nos cabem nessa passagem. Ele confia em nós, e a única maneira de chegarmos à maturidade que liberta é assumir nossa própria responsabilidade. Não há travessia automática e indolor, como não há vida na estabilidade absoluta...
Jesus de Nazaré, peregrino e companheiro nas travessias que a vida nos pede: permanece neste barco agitado no qual se transformou tua Igreja e a nação brasileira. Desperta em nós a certeza consoladora de que o Pai nos guia ao porto desejado, e que teu amor nos impulsiona a avançar, a não cair na armadilha do medo. Sustenta-nos em todas as travessias, pois se permanecermos do lado de cá – fechados em nós mesmos, seguros em nossas ideologias, encaracolados em nossas doutrinas – acabaremos afundando. E converte nosso medo em fé e nossa sede de segurança em vontade de caminhar. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf

(Livro de Jó 38,8-11 * Salmo 106 (107) * 2ª. Carta aos Coríntios 5,14-17 * Evangelho de  São Marcos 4,35-41)

sábado, 16 de junho de 2018

Uma data a ser lembrada


O Decreto de Louvor
Hoje, 16 de junho, recordamos a concessão, em 1911, do “decreto de louvor” à Congregação dos Missionários da Sagrada Família. O decretum laudis é um documento que a Sé Apostólica outorga aos Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, mediante o qual as considera de direito pontifício e as coloca diretamente sob sua jurisdição (e não mais sob a responsabilidade do Bispo Diocesano). Este fato foi vivido com intensa alegria e renovada esperança pela novata e já numerosa comunidade religiosa sonhada e gerada no ventre da pobreza e da generosidade pelo Pe. Berthier, em Grave (Holanda).
 O Pe. Wim van der Weiden msf observa que o crescimento constante do grupo inicial de missionários, reunido inteiramente numa única casa, levou à abertura de uma nova casa religiosa, já em 1909. Esse crescimento numérico deu-se tanto pelo aumento real do número de vocacionados como pela ampliação do tempo de estudos, então recentemente determinado pela Santa Sé, e pela demora na concessão decretum laudis, já solicitado, que concederia à Congregação o título de direito pontifício e, assim, possibilitaria o envio de missionários ao exterior.
Na verdade, a Congregação vivia uma espécie de sinuca: para enviar missionários ela necessitava do decretum laudis, mas para a concessão desse decreto a Santa Sé pedia que a Congregação demonstrasse sua atuação missionária.  Ora, embora o Pe. Berthier tivesse pensado claramente nas missões estrangeiras, “até a data de sua morte nenhum missionário tinha sido enviado, nem havia clareza de quando isso deveria acontecer... Na intenção do Fundador, a atividade missionária deveria começar quando houvesse seis escolas apostólicas, cada uma delas preparando anualmente dez noviços”, escreve o Pe. Wim.
Alguns imprevistos acabaram acelerando as coisas. Primeiro, a situação política na Europa tornou muito difícil abrir novas escolas apostólicas. A visita dos novos Superiores a Roma, em 1909, também contribuiu para essa aceleração, já que a Santa Sé pediu explicitamente que fossem enviados os primeiros missionários. Roma havia entendido que Missionários da Sagrada Família procuravam parceria com outra Congregação ou Ordem religiosa, a fim de não ter de arcar sozinhos com o ônus financeiro de uma missão. Mesmo com essa compreensão enviesada, a Santa Sé indicou o Brasil como possível campo de missão, e o nosso desembarque em terras do novo mundo, em 1910, acabou abrindo as portas para o Decreto de Louvor, concedido em 1911.
Celebremos a concessão desse decreto como um dom e como uma responsabilidade. O reconhecimento como instituto religioso missionário de direito pontifício nos compromete totalmente com as necessidades e projetos missionários da Igreja universal. É como se ele nos arrancasse do risco de um olhar estreito, incapaz de ver além dos interesses institucionais e localizados, e nos colocasse diante dos olhos os apelos do mundo inteiro e as necessidades de toda a Igreja.
Temos sido coerentes? Mostramo-nos merecedores desse título? Estamos habilitados? Estamos dispostos?
Itacir Brassiani msf

quarta-feira, 13 de junho de 2018

O Evangelho dominical - 17.06.2018


COM HUMILDADE E CONFIANÇA
A Jesus preocupava-O que os Seus seguidores terminassem um dia desalentados ao ver que os seus esforços por um mundo mais humano e ditoso não obtinham o êxito esperado. Esqueceriam o reino de Deus? Manteriam a sua confiança no Pai? O mais importante é que não esqueçam nunca como hão de trabalhar.
Com exemplos tomados da experiência dos camponeses da Galileia, Jesus os anima a trabalhar sempre com realismo, com paciência e com uma confiança grande. Não é possível abrir caminhos para o reino de Deus de qualquer forma. Têm que observar como Ele trabalha.
O primeiro que têm de saber é que a sua tarefa é semear, e não colher. Não viverão pendentes dos resultados. Não lhes há de preocupar a eficácia nem o êxito imediato. A sua atenção deverá centrar-se em semear bem o Evangelho. Os colaboradores de Jesus hão de ser semeadores. Nada mais.
Depois de séculos de expansão religiosa e grande poder social, os cristãos temos de recuperar na Igreja o gesto humilde do semeador. Esquecer a lógica do colhedor, que sai sempre a recolher frutos, e entrar na lógica paciente do que semeia um futuro melhor.
O início de todo o semear é sempre humilde. Mais ainda se se trata de semear o projeto de Deus no ser humano. A força do Evangelho não é nunca algo espetacular ou clamorosa. Segundo Jesus, é como semear algo tão pequeno e insignificante como «um grão de mostarda», que germina secretamente no coração das pessoas.
Por isso o Evangelho só se pode semear com fé. É o que Jesus quer fazer-lhes ver com as Suas pequenas parábolas. O projeto de Deus de fazer um mundo mais humano leva dentro uma força salvadora e transformadora que já não depende do semeador. Quando a Boa Nova desse Deus penetra numa pessoa ou num grupo humano, ali começa a crescer algo que a nós nos transborda.
Na Igreja não sabemos como atuar nesta situação nova e inédita, no meio de uma sociedade cada vez mais indiferente e niilista. Ninguém tem a receita. Ninguém sabe exatamente o que fazer. O que necessitamos é procurar caminhos novos com a humildade e a confiança de Jesus.
Tarde ou cedo, os cristãos, sentiremos a necessidade de voltar ao essencial. Descobriremos que só a força de Jesus pode regenerar a fé na sociedade descristianizada dos nossos dias. Então aprenderemos a semear com humildade o Evangelho como início de uma fé renovada, não transmitida pelos nossos esforços pastorais, mas sim gerada por Ele.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

ANO B – DÉCIMO-PRIMEIRO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 17.06.2018


Sejamos realistas! Busquemos a impossível Justiça do reino!
Na liturgia, o Tempo Comum não tem nada de comum, e isso não apenas por causa das festas juninas, ou, no ano em curso, por conta da copa do mundo de futebol. Este é o tempo da encarnação do Evangelho no cotidiano da vida pessoal, eclesial e social; de acolher o mistério do Reino de Deus que vai lentamente adquirindo contornos e produzindo frutos; de cultivar pacientemente a esperança que, como o artista do circo, caminha sobre a corda bamba. Somos chamados a caminhar na esperança, e façamo-lo acolhendo e espalhando muitas sementes, mesmo que às vezes nos pareçam frágeis e insignificantes.
Essa esperança é muito importante, pois hoje o realismo cínico nos é apresentado como uma virtude, e se torna uma tentação, inclusive para as pessoas que dizem acreditar num crucificado que ressuscitou. Querem nos convencer que o mundo sempre foi assim, e que não seremos nós os protagonistas de uma hipotética mudança. Um outro mundo não seria possível, e ponto final! A sabedoria então seria cada um cuidar da sua própria vida, não deixando escapar nenhuma oportunidade de derrotar os outros na competição pela sobrevivência, procurando sempre tirar o máximo de vantagem em menor tempo? Não é isso que está demonstrando parte daqueles que nos governam ou postulam uma candidatura política?
No entanto, como cristãos, fazemos parte de uma caravana que percorre os caminhos da história guiada por outras convicções: as sementes crescem por si mesmas, e as que parecem pequenas e insignificantes, como a de mostarda e de eucalipto, se tornam árvores frondosas. Sem esquecer que é próprio da mostarda ser picante... Partindo da própria experiência e escrevendo sobre a esperança da ressurreição, São Paulo diz que vivemos como se estivéssemos fora de casa, como peregrinos que buscam outra morada, uma outra cidade. Mas insiste que nesta permanente saída estamos cheios de confiança.
A fé cristã toma distância tanto do delírio dos que ardem de paixão por um mundo fictício e ilusório depois da morte como do conformismo medroso daqueles que aparam as arestas do Evangelho e o acomodam a um mundo sem coração e sem justiça. Nossa confiança se inspira na sabedoria dos semeadores que sabem que a semente não é a colheita, mas este saber não os impede de lançá-las generosamente na terra. Eles o fazem conscientes de que é falta de realismo contar apenas com as próprias forças, confiar apenas nas nossas estratégias, esquecer a gratuidade e fechar-se às surpresas.
O que acontece é que o medo do futuro e o controle do presente costumam asfixiar e matar as sementes. “A terra produz o fruto por si mesma”, nos ensina Jesus, num dos contos populares que recolheu na zona rural da Palestina e que a Igreja nos sugere hoje. “A semente vai brotando e crescendo, mas o homem não sabe como isso acontece.” É possível que um processo de mudança se mostre verdadeiramente profundo quando nos leva à consciência dos próprios condicionamentos e limites, abrindo-nos a contribuições outras, iluminando-nos e fecundando-nos pela experiência da gratuidade.
Precisamos ser libertados da ilusão da grandeza e colocar no centro da nossa fé a memória da coragem dos escravos frente ao faraó, a memória da vida de Jesus de Nazaré, o mistério escondido na semente de mostarda. O Reino de Deus não brilhará apenas quando chegar o hipotético dia em que não haverá mais compradores de justiça, a liberdade não será uma ilusão, a verdade será a fonte das notícias e poderemos crer nas pessoas outra vez. O reino de Deus não é um particípio passado mas um gerúndio e um futuro: ele “vai sendo” nas milhares de ações de compaixão e de afirmação da dignidade do outro.
Alcançamos a desejada e difícil maturidade quando conseguimos conjugar adequadamente paciência e urgência históricas. Os processos humanos e sociais também têm e seu ritmo de maturação. Conhecê-los sem controlá-los, e remover as forças que podem representar obstáculos ao seu desenvolvimento, é a arte das artes.  Mas eu acho que hoje o risco que nos ronda hoje mais fortemente é deixar passar o tempo propício da maturação e da colheita, fechar os olhos e os ouvidos a Deus, que pede que sejamos, urgentemente, pessoas mais solidárias, Igrejas mais comunitárias e sociedade mais igualitária.
Jesus de Nazaré, semeador da Palavra que liberta e nos faz libertadores! Ajuda-nos a compreender que a fé é dinamismo que nos abre à escuta de Deus, cria espaços de silêncio nos quais sua Palavra é acolhida e semeada. Frente às dores e esperanças que habitam o mundo, dá-nos o senso profundo da paciência e da urgência que tu mesmo exercitaste. Faz com que essa escuta fundamente a convivência igualitária, nos faça sair das nossas próprias certezas e nos comprometa numa dinâmica de comunhão e de solidariedade no interior da qual nasce, cresce e frutifica o sonho do bem-comum da humanidade. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Profecia de Ezequiel 17,22-24 * Salmo 91 (92) * 2ª. Carta aos Coríntios 5,6-10 * Evangelho de  São Marcos 4,26-34)

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Mais memórias da aventura missionária

Levar os livros mais no coração que na cabeça!
Educação: elemento tão importante numa cultura! Posso dizer que me surpreendi muito com a forma como ela é abordada nestas terras moçambicanas, desde a pedagogia utilizada até as estruturas físicas. Uma palavra pode definir a educação em Moçambique, e é com pesar no coração é que escrevo isso: precária!
Nas minhas andanças durante estes três meses morando nestas terras, pude notar que a educação geralmente não é prioridade para os governantes deste país. Quando viajava de carro, vi muitas escolas, na sua grande maioria, feitas de barro e bambu. Este tipo de construção precisa ser reformada a cada pouco, sem contar nos cupins que atacam o bambu fazendo com que tudo tenha que ser refeito.
Há algumas escolas edificadas com uma mistura de materiais: blocos de alvenaria e blocos de barro. Outras poucas são construídas todas em alvenaria. Mas, a grande maioria é feita de pau-a-pique mesmo. Aqui, ao lado da sede da missão, temos uma escola, que aqui chamam de EPC (Escola Primária e Secundária, da 1ª à 12ª classes) construída com material misto. Vi com meus olhos, há algumas semanas, os próprios alunos da escola misturando o barro, e reformando as paredes das suas salas de aula!
Entrando nas salas de aula a gente pode perceber que, muitas vezes, o que existe é somente um quadro negro – quando tem! – e a mesa do professor. Na maioria das escolas não existem cadeiras ou mesinhas para os alunos. As turmas são compostas de 30 alunos ou mais, chegando a ter 60 em algumas turmas. Como ser professor e ensinar nessa realidade?
Falando dos professores, o que a gente vê são muitos deles acabam faltando às sem motivos aparentes, ou não as preparam devidamente as aulas. Quando os professores não aparecem, o que é bastante frequente, os alunos são dispensados. Além de muitos professores não terem uma formação apropriada, tendo conseguido uma vaga do estado, assumem a cadeira e param a formação aonde estão. Com isso, muitos adolescentes chegam, e até se formam, no ensino médio mal sabendo escrever o próprio nome e lendo umas poucas palavras...
Mesmo com essas dificuldades, o que mais me chama a atenção é a paixão com a qual as crianças carregam o seu livro didático. Têm apenas um livro para todas as disciplinas, e nem todas as séries oferecem livros. Estas crianças carregam os livros, a maioria muito surrados, como seus tesouros. A sua maioria os carrega junto ao peito; outras, principalmente meninas, carregam nas costas, dentro de capulanas, como se fosse uma criança. Faço questão de observar esse detalhe porque por aqui eles carregam tudo na cabeça, desde coisas grandes, como as colheitas, até coisas pequenas, como um sabonetes, um parte de chinelos, uma enxada. Nunca vi uma criança carregar o livro na cabeça!
Fr. Ricardo Klock msf
29 de maio de 2018

quinta-feira, 7 de junho de 2018

O Evangelho dominical - 10.06.2018


O QUE É MAIS SADIO?
A cultura moderna exalta o valor da saúde física e mental, e dedica todo um enorme conjunto de esforços para prevenir e combater as doenças. Mas, ao mesmo tempo, estamos construindo uma sociedade onde não é fácil viver de forma sadia.
A vida nunca esteve tão ameaçada pelo desequilíbrio ecológico, a contaminação, o stress ou a depressão. Por outra parte, tem sido fomentado um estilo de vida onde a falta de sentido, a carência de valores, um certo tipo de consumismo, a banalização do sexo, a falta de comunicação e tantas outras frustrações impedem as pessoas de crescer de forma sadia.
Já Sigmund Freud, na sua obra O mal-estar na cultura, considerou a possibilidade de que uma sociedade esteja doente no seu conjunto e possa padecer de neuroses coletivas, das que talvez poucos indivíduos sejam conscientes. Pode inclusive suceder que dentro de uma sociedade doente se considere precisamente doentes aqueles que estão mais sãos.
Algo disto sucede com Jesus, de quem os Seus familiares pensam que «não está no seu juízo», enquanto os letrados vindos de Jerusalém consideram que «tem Belzebu dentro de si».
Em qualquer caso, temos que afirmar que uma sociedade é sã na medida em que favorece o desenvolvimento de pessoas sadias. Quando, pelo contrário, as conduz ao esvaziamento interior, à fragmentação, à dissolução como seres humanos, temos que dizer que essa sociedade é, pelo menos em parte, patogênica.
Por isso, temos que ser o suficientemente lúcidos como para nos preguntarmos se não estamos caindo em neuroses coletivas e condutas pouco sadias, mesmo sem estar conscientes disso.
Que é mais sadio, deixar-se arrastar por uma vida de conforto, comodidade e excesso que provoca letargia no espírito e diminui a criatividade das pessoas ou viver de modo sóbrio e moderado, sem cair na «patologia da abundância»?
O que é mais sadio, continuar a funcionar como «objetos» que giram pela vida sem sentido, reduzindo-a a um «sistema de desejos e satisfações», ou construir a existência dia a dia, dando-lhe um sentido último a partir da fé? Não esqueçamos que Carl Jung se atreveu a considerar a neurose como «o sofrimento da alma que não encontrou o seu sentido».
O que é mais sadio: encher a vida de coisas, produtos de moda, vestidos, bebidas, revistas e televisão, ou cuidar das necessidades mais profundas e cativantes do ser humano na relação do casal, no lar e na convivência social?
O que é mais sadio: reprimir a dimensão religiosa, esvaziando de transcendência a nossa vida, ou viver a partir de uma atitude de confiança nesse Deus «amigo da vida», que só quer e procura a plenitude do ser humano?
José Antônio Pagola
Tradução Antônio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 6 de junho de 2018

ANO B – DÉCIMO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 10.06.2018


A família e a religião devem estar a serviço do Reino de Deus!
Neste mês apreciado pela alegria e simplicidade que marca as festas populares, abramos a mente e o coração ao ensinamento de Jesus, mesmo que inicialmente nos choque e escandalize. Jesus não tem prazer em colocar pedras na estrada do nosso amadurecimento na fé... Na verdade, ele quer nos ajudar a perceber as lutas que este percurso exige e as amarras que precisamos desfazer, inclusive aquelas inconscientes ou que assumem a aparência de piedade. Ocorre que até as instituições que nasceram como espaços de dignidade e cidadania – como a família e a religião – podem se perverter.
O atual e inesperado ressurgimento das práticas de exorcismo, acompanhadas de um indisfarçável desejo de alguns líderes religiosos de amedrontar e dominar, podem nos induzir a pensar que o núcleo do evangelho deste domingo seja o combate ao diabo. Na verdade, o que temos na narração de Marcos é a explicitação e a radicalização do conflito entre a prática libertária de Jesus e o fechamento ideológico das elites religiosas, agarradas à defesa do seu poder de domínio. Precisamos distinguir entre a realidade e a linguagem: a linguagem é apocalíptica, mas a realidade é o conflito político e social.
Curando um paralítico e declarando-o sem culpa diante de Deus, calando e expulsando o espírito que fazia calar um doente, purificando um leproso e enviando-o aos sacerdotes, curando os doentes que se aproximavam, Jesus desmascara a escravidão mantida pela ideologia do templo. Os escribas contra-atacam tentando neutralizar sua ação desestabilizadora, identificando Jesus com o próprio diabo, protótipo dos inimigos do ser humano. Pretendendo ser os únicos representantes de Deus, os escribas e doutores da lei dizem que aquele que os desmascara é guiado e motivado por um espírito diabólico.
Jesus entra neste jogo de linguagem e fala do reino de satanás como a acentuação simbólica das práticas opressoras da sociedade judaica. Ele se defende atacando com as armas dos próprios adversários! Entra no jogo linguístico dos seus opositores para “puxar o tapete” e mostrar a contradição em que estão atolados. Ironicamente, Jesus diz que se agisse mesmo em nome do diabo, o reino de satanás estaria dividido e fadado à ruína, que dizendo que Jesus está fora de si, seus familiares ameaçam a família que dizem defender. Por seu lado, Jesus diz que sua ação é obra libertadora e regeneradora de Deus.
Mas o clímax da disputa está na afirmação indireta de que os verdadeiros pecadores, aqueles que estão irremediavelmente condenados, são os próprios escribas e doutores da lei, a elite religiosa que desqualifica a ação divinamente libertadora de Jesus dizendo que é diabólica. Esse grupo é réu de um pecado eterno, está coberto de impureza e envolvido numa cegueira que não permite que veja um palmo à frente do nariz. Os líderes religiosos pecam contra o Espírito Santo, iludem a si mesmo e aos outros dizendo que é mau e escravizador aquilo que na realidade é bom e libertador.
É no quadro deste conflito que podemos compreender a tensão entre Jesus e seus familiares. Sua família havia tomado conhecimento daquilo que Jesus fazia e dizia, sente-se importunada pela multidão que invade sua casa, e começa a temer pela integridade de Jesus e pelo bom nome da família. Eles têm a nítida impressão de que Jesus enlouqueceu, e decidem pôr um fim nisso tudo. Parece que a mãe e os irmãos evitam entrar no círculo dos discípulos e chegar perto de Jesus. Dão até a impressão compartilhar da visão dos escribas, e tentam fazer Jesus interromper ou desistir da sua missão.
A família patriarcal, centrada na figura masculina e nos laços de sangue, era um dos eixos da sociedade antiga, um dos anéis da corrente da dominação, uma célula de reprodução da sociedade excludente e intolerante. Jesus avança na superação do sistema de opressão que impede a vida e a liberdade do povo, mas não se detém na crítica destruidora das instituições, dos modelos de relacionamento. Ele coloca Deus no lugar da autoridade patriarcal, substitui a estreiteza dos laços de sangue pelos vínculos que brotam da condição humana compartilhada. Do ponto de vista do Evangelho, Deus e o seu Reino são absolutos, e todas as instituições e autoridades, inclusive a família, são relativas e transitórias.
A ti, Jesus de Nazaré, irmão de todos os homens e mulheres regenerados no dinamismo do teu Reino, dirigimos nosso olhar e nossa prece. Fortalece nossa vontade, a fim de que tenhamos a coragem de romper com os laços que nos amarram a nós mesmos e aos sistemas que oprimem. Amplia o círculo da nossa comunhão, para que ele inclua todos os seres humanos, começando pelas vítimas da violência que se impõe nas favelas e morros, e chegando aos povos ribeirinhos do rio Amazonas. E faz com que nossas comunidades sejam uma família alargada, ventre no qual são gerados homens e mulheres iguais. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Livro do Gênesis 3,9-15 * Salmo 129 (130) * 2ª. Carta de Paulo aos Coríntios 4,13-5,1* Evangelho de  São Marcos 3,20-25)

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Memórias da aventura missionária


Impressões de uma viagem ao litoral de Moçambique
Tendo vivido um mês vivendo em terras moçambicanas, já tive vários choques de realidade. Entretanto, o que mais tive foram surpresas! Deixei-me surpreender por este povo, por sua cultura, por sua alegria. Confesso que não foi fácil deixar-me cativar por este povo, sem ainda estar inserido diretamente com eles, pois desde que cheguei, passei cinco dias na missão e logo em seguida fui para a cidade de Nampula para iniciar o curso de inculturação e da língua Macua! Como a aula é de segunda a sexta, aproveitei os fins de semana para conhecer um pouco mais esta terra maravilhosa, pois sei que quando iniciar o trabalho o tempo será bem mais escasso.
Das diversas pequenas viagens, duas foram para o litoral. A primeira saída foi para a cidade de Moma, onde o regional Sul 3 da CNBB desenvolve um projeto missionário. Hoje, lá vivem dois padres e duas leigas. As leigas estão fazendo o curso junto comigo e convidaram-me para ir conhecer a sua cidade. O caminho para Moma não é dos melhores, pois a estrada está em péssimas condições, principalmente pela grande quantidade de chuvas. Pelo caminho haviam vastas plantações de arroz, pois as pessoas aproveitam a temporada de chuvas para plantar arroz nas margens dos rios, brejos e outros lugares úmidos. Outra coisa que me chamou a atenção foi que mais perto do litoral há algumas criações de gado, o que eu não havia visto na região de Mecuburi, onde temos a nossa missão.
Nas aulas, já havia escutado que, na região litorânea de Moçambique, a religião mais forte é o Islamismo, mas vendo com os próprios olhos é que significa estar em outro ethos, completamente diferente do Brasil: em todos os lugares a gente vê homens e mulheres vestindo os trajes tipicamente muçulmanos, e quando nossos olhos não estão acostumados com isso, acaba aparecendo como uma novidade, causando até certo estranhamento. Não que nas demais regiões não haja muçulmanos, mas é no litoral que eles são mais numerosos. Algo semelhante a gente percebe na Ilha de Moçambique, outro lugar que tive a oportunidade de visitar.
Na Ilha de Moçambique fui arrebatado por uma paisagem exuberante. Um mar cristalino e calmo. Comidas ótimas e praias lindíssimas! Fomos conhecer a Ilha de Goa, na qual foi rezada a primeira missa em terras moçambicanas e construído um farol. Subimos neste farol, para ter uma visão privilegiada dos arredores da ilha. Nunca havia entrado num mar tão cristalino! Por mais que a água estivesse na altura do meu pescoço, ainda conseguia ver o fundo do mar. Tivemos um fim de semana muito bom. Até o mar ficou calminho para que o aproveitássemos melhor.
Mas a ilha de Goa não é só de belezas. Há na ilha uma nítida separação entre classes. Eu comentei com uma amiga que muitos trabalhavam nos restaurantes, mas jamais podiam comprar um refeição daquelas, e mesmo muitos moçambicanos nunca poderão vivenciar um fim de semana como aquele que vivenciamos. Mas isso acontece também no Brasil, infelizmente...
Fr. Ricardo Klock msf
19 de março de 2018