quinta-feira, 27 de setembro de 2018

O Evangelho dominical - 30.09.2018


NINGUÉM TEM O DIREITO EXCLUSIVO DE ANUNCIAR JESUS

A cena é surpreendente. Os discípulos aproximam-se de Jesus com um problema. Desta vez, o mensageiro do grupo não é Pedro, mas João, um dos dois irmãos que andam à procura dos primeiros lugares. Agora pretende que o grupo de discípulos tenha o exclusivo de Jesus e o monopólio da Sua ação libertadora.
Vêm preocupados. Um exorcista não integrado no grupo está expulsando demônios em nome de Jesus. Os discípulos não se alegram de que estas pessoas fiquem curadas e possam iniciar uma vida mais humana. Só pensam no prestígio do seu próprio grupo. Por isso procuraram cortar pela raiz a sua intervenção. Esta é a sua única razão: “Não é dos nossos”.
Os discípulos dão por seguro que, para atuar em nome de Jesus e com a Sua força de curar, é necessário ser membro do seu grupo. Ninguém pode apelar a Jesus e trabalhar por um mundo mais humano sem formar parte da Igreja. É realmente assim? Que pensa Jesus?
As Suas primeiras palavras são rotundas: “Não o impeçam”. O nome de Jesus e a Sua força humanizadora são mais importantes que o pequeno grupo dos Seus discípulos. É bom que a salvação proporcionada por Jesus se estenda mais para além da Igreja estabelecida e ajude as pessoas a viver de forma mais humana. Ninguém há de vê-la como uma competidora desleal.
Jesus rompe toda a tentação sectária dos Seus seguidores. Não constituiu o Seu grupo para controlar a Sua salvação messiânica. Não é rabino de uma escola fechada, mas Profeta de uma salvação aberta a todos. A Sua Igreja há de apoiar o Seu Nome ali onde é invocado para fazer o bem.
Não quer Jesus que entre os Seus seguidores se fale dos que são nossos e dos que não o são, dos de dentro e dos de fora, dos que podem atuar em Seu nome e dos que não podem fazê-lo. O Seu modo de ver as coisas é diferente: “O que não está contra nós está a favor de nós”.
Na sociedade atual há muitos homens e mulheres que trabalham por um mundo mais justo e humano sem pertencer à Igreja. Alguns nem são crentes, mas estão a abrir caminhos para o reino de Deus e da Sua justiça. São dos nossos. Temos de nos alegrarmos em vez de os olharmos com ressentimento. Temos de apoiá-los em vez de os desqualificar.
É um erro viver na Igreja vendo em toda a parte hostilidade e maldade, acreditando ingenuamente que só nós somos portadores do Espírito de Jesus. Ele não nos aprovaria. Convida-nos a colaborar com alegria com todos os que vivem de forma humana e se preocupam pelos mais pobres e necessitados.
José Antonio Pagola
Tradução de Antonio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

ANO B – VIGÉSIMO-SEXTO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 30.09.2018


Que a cooperação vença a indiferença e a competição!
Às vezes a pregação de alguns padres e pastores deixa a impressão de que o mundo se divide entre os bons, que são aqueles que aceitam explicitamente Jesus Cristo e uma Igreja, e os maus, que são as pessoas religiosamente indiferentes e as outras igrejas ou confissões religiosas. Daí a importância de escutar e acolher com abertura e inteligência a Palavra de Deus proposta na liturgia desse domingo. Precisamos ultrapassar o muro dos ciúmes e invejas e dar as mãos a tantos grupos e Igrejas que cooperam na superação dos males deste mundo e na construção de um mundo outro e melhor.
A fato narrado pelo evangelho de Marcos traz a questão da inveja e da competição para o centro da nossa espiritualidade. É paradoxal que os mesmos discípulos que resistiam em seguir Jesus pelas vias da compaixão e não haviam conseguido expulsar um espírito mau que amordaçava um jovem (cf. Mc 9,14-29) queiram proibir que outros o façam... “Mestre, vimos um homem que expulsa demônios em teu nome. Mas nós lhe proibimos, porque não nos segue.” Parece que os discípulos querem manter o monopólio do exorcismo, e desejam que todos sigam a eles, os discípulos oficiais, e não o próprio Jesus...
A resposta de Jesus à tortuosa e inoportuna iniciativa dos discípulos chama à abertura e à colaboração ecumênica: “Não lhe proíbam, pois ninguém faz um milagre em meu nome e depois pode falar mal de mim. Quem não está contra nós, está a nosso favor.” Ou seja: quem tem um coração grande, um olhar abrangente e uma fé confiante não pode se imaginar cercado de concorrentes por todo lado. Só uma mente imatura e institucionalizada pode se mostrar incapaz de reconhecer o bem que outros fazem e alimentar o desejo de que todos peçam sua aprovação para tomar qualquer iniciativa.
Por que esta incapacidade que muitos temos de respeitar, valorizar e cooperar com as demais Igrejas cristãs? Será que aquilo que temos em comum não é mais importante que as picuinhas que nos diferenciam? Se eles estão a favor do Evangelho e de Jesus Cristo, poderiam estar contra nós? É também passado o tempo de ver nas iniciativas e projetos sociais e políticos o gérmen da discórdia e do confronto. Projetos que nascem fora das sacristias e sem as bênçãos eclesiásticas podem trazer a secreta marca do Espírito de Deus e realizar um bem enorme à humanidade. O Vaticano II ensina que o Espírito de Deus dirige o movimento da história e é a fonte dos anseios de liberdade e solidariedade.
Jesus enfrenta corajosamente este e outros problemas, vividos pelas comunidades cristãs de ontem e de hoje. Sob a pressão da perseguição, alguns abandonavam o Evangelho, o que era uma pedra de tropeço que afastava muitos outros ‘pequeninos’. O corpo eclesial tinha membros que escandalizavam os outros. E a proposta de Jesus é vigilância e firmeza. É melhor ser uma comunidade pequena e coerente que uma multidão, cheia de contradições. A comunidade eclesial não pode limitar ou perder sua missão de ser sal, de fazer a diferença. As traições e incoerências precisam ser evitadas, cortadas e queimadas.
Hoje, uma destas contradições que escandalizam os pequeninos é o acúmulo de riquezas à base de relações injustas. A riqueza acumulada egoisticamente e subtraída ao serviço do bem-estar da humanidade é sempre injusta, e não importa se pertence a comunidades, paróquias, dioceses, congregações ou Igrejas. Precisamos ter a coragem de implantar na Igreja uma economia que viabilize e visibilize a solidariedade entre comunidades, movimentos, paróquias, dioceses e Congregações. Sem isso, estaremos tolerando uma traição que continuará escandalizando e provocando sofrimento.
São Tiago enfrenta esta questão com palavras muito duras. Dirigindo-se aos ricos ele diz: “Suas riquezas estão podres, suas roupas foram roídas pelas traças. O ouro e a prata de vocês estão enferrujados, e a ferrugem deles será testemunha contra vocês, e como fogo lhes devorará a carne.” A questão não é a riqueza em si mesma, mas o modo injusto de consegui-la: “Vejam: os salários dos trabalhadores que fizeram a colheita nos campos de vocês; retido por vocês, este salário clama, e os protestos dos cortadores chegaram aos ouvidos do Senhor...”
Jesus de Nazaré, coração sem fronteiras e Palavra que liberta e constrói relações ecumênicas e inclusivas: fecunda nossas palavras e ações com teu Espírito, a fim de que alcancemos a sabedoria que nos ajuda a cumprir nossa missão no respeito, no apreço e na cooperação com aqueles que creem diversamente e cumprem, mesmo sem saber, tua vontade santa e libertadora. Ajuda-nos a administrar nossos bens segundo os princípios do dom e pela gratuidade, e não sob a regência do acúmulo e da indiferença. E que nossas contradições não sejam pedras nas quais os pequenos tropeçam. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Livro dos Números 11,25-29 * Salmo 18B (19B) * Carta de Tiago 5,1-6 * Evangelho de São Marcos 9,38-48)

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

O Evangelho dominical - 23.09.2018


PORQUE O ESQUECEMOS?

A caminho de Jerusalém, Jesus continua a instruir os Seus discípulos sobre o final que o espera. Insiste uma vez mais que será entregue nas mãos dos homens e estes o matarão, mas Deus o ressuscitará. Marcos diz que eles “não entendiam o que queria dizer, mas tinham medo perguntar-Lhe”. Não é difícil adivinhar nestas palavras a pobreza de muitos cristãos de todos os tempos. Não entendemos Jesus e dá-nos medo aprofundar a Sua mensagem.
Ao chegar a Cafarnaum, Jesus pergunta-lhes: “O que discutíeis pelo caminho?” Os discípulos se calam. Estão envergonhados. Marcos diz-nos que, pelo caminho, tinham discutido sobre quem era o mais importante. Certamente é vergonhoso ver Jesus, que caminha para a cruz, acompanhado de perto por um grupo de discípulos cheios de estúpidas ambições. De que discutimos hoje na Igreja enquanto dizemos seguir Jesus?
Uma vez em casa, Jesus se dispõem a transmitir um ensinamento. Necessitam. Estas são as Suas primeiras palavras: “Quem quer ser o primeiro que seja o último de todos e o que está ao serviço de todos”. No grupo que segue Jesus, quem quer sobressair e ser mais que os outros há de colocar-se em último lugar, no fim da fila; assim poderá ver o que é que necessitam e poderá ser o servidor de todos.
A verdadeira grandeza consiste em servir. Para Jesus, o primeiro não é o que ocupa um cargo de importância, mas quem vive a servir e a ajudar os outros. Os primeiros na Igreja não são as hierarquias, mas essas pessoas simples que vivem ajudando a quem encontram no seu caminho. Não podemos esquecer isso!
Para Jesus, a Sua Igreja deveria ser um espaço onde todos pensam nos outros, uma comunidade onde estejamos atentos a quem mais precisa de nós. Não é um simples sonho a mais de Jesus. Para Ele isso é tão importante que lhes vai colocar um exemplo gráfico.
Senta-se e chama os Seus discípulos. Logo aproxima uma criança e coloca-a no meio de todos para que fixem a sua atenção nela. No centro da Igreja apostólica há de estar sempre essa criança, símbolo das pessoas débeis e desvalidas: os necessitados de acolhimento, apoio e defesa. Não hão de estar fora, longe da Igreja de Jesus. Hão de ocupar o centro da nossa atenção.
Logo Jesus abraça a criança. Quer que os discípulos o recordem sempre assim: identificado com os fracos. Entretanto diz-lhes: “O que acolhe a uma criança como essa em Meu nome a Mim me acolhe, e o que me acolhe a mim acolhe ao que me enviou”.
O ensinamento de Jesus é claro: o caminho para acolher Deus é acolher o seu Filho Jesus presente nos pequenos, nos indefesos, nos pobres e desvalidos. Porque o esquecemos tanto? Quem é que está no centro da Igreja se já não está esse Jesus identificado com os pequenos?
José Antonio Pagola
Tradução de Antonio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

ANO B – VIGÉSIMO-QUINTO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 23.09.2018


O que estamos discutindo nos caminhos e palanques?
Sintonizados com a proposta da Igreja do Brasil, continuamos celebrando o mês da Bíblia. É com os pés no chão brasileiro que acolhemos e escutamos o Evangelho de hoje. Um pouco antes da cena evangélica que nos é oferecida à reflexão, alguns discípulos haviam visto Jesus totalmente transfigurado e tinham ouvido uma voz pedindo que escutassem o que ele estava lhes dizendo. Por sua vez, a multidão acorria a Jesus, impressionada pela cura de um menino mudo. É neste contexto que Jesus, voltando para a Galileia, não quer que ninguém saiba para onde vai, “porque estava ensinando seus discípulos”.
A difícil arte de formar discípulos e discípulas ocupa Jesus inteiramente. Eles haviam fracassado na tentativa de curar um menino mudo. Faltava-lhes a abertura e a confiança em Deus, cultivadas especialmente na oração. Os evangelhos testemunham que os discípulos só sabiam confiar em si mesmos, e corriam atrás de ações poderosas e lugares de honra. Por mais que Jesus insistisse, eles não conseguiam admitir e reconhecer um Messias marcado pela humana vulnerabilidade, que não buscasse acima de tudo o sucesso e que, inclusive, poderia padecer a morte na mão dos poderosos.
Por isso, Jesus repete o ensinamento que ouvimos no domingo passado: “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, quando estiver morto, depois de três dias ele ressuscitará.” Parece, porém, que o resultado não foi muito animador. “Os discípulos não compreendiam o que Jesus estava dizendo.” E o pior, “tinham medo de fazer perguntas”. É o medo de enfrentar a verdade, de descobrir as exigências do caminho que leva à vida plena. Ser como criança, partilhar a condição dos desprezados e marginalizados parece-lhes algo monstruoso e provoca-lhes medo.
O mais impressionante é que, além de não compreender os repetidos anúncios da rejeição e da humilhação e de demonstrar medo de perguntar, os discípulos se envolvem com outras questões complicadas. Jesus está atento às conversas de estrada, e quando chegam em casa, em Cafarnaum, pergunta-lhes: “Sobre o que vocês estavam discutindo no caminho?” Ninguém se atreve a dizer que discutiam sobre qual deles seria o maior. Ser o primeiro e o maior é a única questão que interessa àquele grupo de discípulos e discípulas que segue Jesus aos trancos e barrancos.
E é infelizmente isso que ainda hoje guia a maioria das nossas escolas e até seminários. Será que não é isso também o que muitos pais e mães sonham para seus filhos e filhas? E não é a busca de uma vida bem-sucedida, o sonho de ser um padre pop-star ou de ser agraciado com a mitra episcopal que anima muitos dos nossos vocacionados e religiosos? Para muita gente, a fé, o trabalho, o estudo, a disciplina e os relacionamentos valem apenas enquanto contribuem para este objetivo. E o próprio nome de Deus acaba sendo subordinado a este fim e se torna um ídolo ou um amuleto.
O apóstolo Tiago percebe que na sua comunidade existe “ciúme amargo e espírito de rivalidade”, uma pretensa sabedoria, rasteira e animalesca. Ele sabe que isso nada tem a ver com a sabedoria cristã, que é pacífica, humilde, misericordiosa, alheia a discriminações hipocrisias. Por isso, atento às competições que ferem a comunidade cristã nas suas entranhas, pergunta: “De onde surgem os conflitos e competições que existem entre vocês? Vocês cobiçam, e não possuem; então matam. Vocês têm inveja e não conseguem nada; então lutam e fazem guerra.” Parece uma fotografia da nossa eleição presidencial!
Não é essa a perspectiva proposta e trilhada por Jesus Cristo. É importante que levemos a sério as lições daquele que chamamos de mestre e senhor. No clima aconchegante da casa em Cafarnaum ou no ambiente sereno das nossas igrejas, Jesus desmascara as aspirações de poder, coloca um fim às nossas discussões sobre quem é o maior. Insistindo que o seu caminho passa pela rejeição e recorrendo ao símbolo das crianças, Jesus aponta claramente para outra direção.  “Se alguém quer ser o primeiro, deverá ser o último, e ser aquele que serve a todos.” Para quem só tem olhos para a celebridade e para o sucesso, e usa o nome de Deus para seus interesseis eleitorais, isso parece absolutamente chocante...
Jesus de Nazaré, filho do homem, tu compartilhas conosco a origem e o destino. Devemos dizer com sinceridade que tua Palavra e tuas opções também desconcertam a nós, envolvidos que estamos em disputas fratricidas e desejos inconfessáveis. Mas aqui estamos de novo, diante de ti, porque tua Palavra é a única que merece credibilidade, e a vida gratuita e solidariamente doada é a única que vale a pena. Não leves em conta as conversas desajuizadas e pouco evangélicas que vicejam nos galpões e palanques, e até em alguns grupos eclesiais. Ajuda-nos a entender a lição da criança! Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Livro da Sabedoria 2,12-20* Salmo 53 (54) * Carta de São Tiago 3,16-4,3 * Evangelho de São Marcos 9,30-37)

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

O Evangelho dominical - 16.09.2018


LEVAR JESUS A SÉRIO

O episódio de Cesaréia de Filipe ocupa um lugar central no evangelho de Marcos. Depois de um tempo de convívio com Ele, Jesus faz aos Seus discípulos uma pergunta decisiva: “Quem dizeis que Eu sou?”  Em nome de todos, Pedro responde, sem duvidar: «Tu és o Messias». Por fim parece que tudo está claro: Jesus é o Messias enviado por Deus, e os discípulos seguem-no para colaborar com Ele.
Mas Jesus sabe que não é assim. Todavia falta-lhes aprender algo muito importante. Reconhecem a identidade e a missão de Jesus com palavras, mas todavia não sabem o que significa segui-Lo de perto partilhando o Seu projeto e o Seu destino. Marcos diz que Jesus “começou a ensiná-los” que teriam de sofrer muito. Não é um ensinamento a mais, mas algo fundamental que os discípulos terão de ir assimilando pouco a pouco.
Desde o início que lhes fala “com toda a clareza”. Não lhes quer ocultar nada. Eles precisam saber que o sofrimento os acompanhará sempre na sua tarefa de abrir caminhos para o reino de Deus. No final será condenado pelos dirigentes religiosos e morrerá executado violentamente. Só ao ressuscitar se verá que Deus está com Ele.
Pedro rebela-se perante o que está ouvindo. A sua reação é incrível. Leva Jesus consigo e fala com Ele à parte, advertindo-o e pressionando-o para que mude seu rumo. Tinha sido o primeiro em o reconhecer como Messias, mas agora é o primeiro a rejeitá-Lo. Quer fazer Jesus perceber que o aquilo que acabara de anunciar é absurdo. Não aceita que siga esse caminho. Jesus há de alterar essa forma de pensar.
Jesus reage com uma dureza desconhecida. De repente vê em Pedro os traços de Satanás, o tentador do deserto que procura afastá-Lo da vontade de Deus. Volta-se para os discípulos e repreende literalmente Pedro com estas palavras: “Vá para trás de Mim, Satanás”, volta a ocupar o teu lugar de discípulo. Deixa de tentar-me. “Os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens”.
Logo, Jesus interpela as pessoas e os Seus discípulos para que escutem bem as Suas palavras. Irá repeti-las em diversas ocasiões. Não hão de esquecê-las jamais. “Se alguém quiser vir comigo, que renuncie a si mesmo, que carregue a sua cruz e que me siga”
Seguir Jesus não é uma decisão obrigatória. É uma decisão livre de cada um. Mas temos de levar Jesus a sério. Não bastam confissões fáceis. Se queremos segui-lo na Sua tarefa apaixonante de fazer um mundo mais humano, digno e feliz, temos de estar dispostos a duas coisas. Primeiro, renunciar a projetos ou planos que se oponham ao reino de Deus. Segundo, aceitar os sofrimentos que nos podem chegar por seguir Jesus e nos identificarmos com a sua causa.
José Antonio Pagola
Tradução de Antonio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

ANO B – VIGÉSIMO-QUARTO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 16.09.2018


Que Deus abra nossos ouvidos à sua Palavra, todos os dias!
Em pleno mês dedicado à Palavra de Deus, somos convidados a dizer, como o profeta Isaías: “O Senhor Javé abriu os meus ouvidos e eu não fiz resistência nem recuei.” Na longa e bela estrada do discipulado, precisamos pedir a cada manhã que o Senhor abra nossos ouvidos, que nos faça capazes de acolher sua Palavra e assumi-la como luz dos nossos passos, mesmo quando nos indica rumos e práticas deveras exigentes. É dessa escuta atenta, inteligente e despojada que brota o anúncio correto e a prática coerente. E então o ouvinte se torna testemunha e mensageiro.
Os discípulos atravessam com Jesus a região de Cesaréia de Filipe, lugar-símbolo da submissão de Herodes ao imperador romano e da capitulação do judaísmo frente à cultura grega. Nesta travessia, Jesus os provoca a fazerem uma avaliação da sua pessoa e sua missão. “Quem dizem os homens que eu sou?” Segundo os discípulos, as resposta coincidem no reconhecimento de Jesus como profeta: “Alguns dizem que tu és João Batista; outros, que és Elias; outros ainda, que és um dos profetas.” Mas Jesus não se satisfaz com respostas simplesmente ouvidas e relatadas, e pede o que os próprios discípulos pensam sobre ele, que lugar ocupa na vida deles. “E vós, quem dizeis que eu sou?”
A resposta a esta pergunta não pode ser teórica. Crer em Jesus significa aceitá-lo como definidor das nossas relações e como elemento fundamental na construção da nossa utopia de sociedade. E isso é muito mais que aceitar de forma resignada e inconsequente alguns conteúdos religiosos. Há pregadores que lamentam que hoje as pessoas creem em Jesus Cristo mas não aceitam a Igreja. Será que não é pior aceitar e defender a Igreja sem crer de forma consequente na pessoa e na prática de Jesus? São Tiago pergunta: “Que adianta alguém dizer que tem fé quando não a põe em prática?”
Parece que a pergunta de Jesus provocou nos discípulos um calafrio geral. Pedro arrisca uma resposta em nome de todos: “Tu és o Messias, o Cristo.” A resposta é formalmente correta, mas nela há algo de errado e perigoso, pois Jesus “proibiu severamente” que os discípulos falassem a respeito dele. Tenho a impressão de que a profissão de fé de Pedro está enredada nas malhas do triunfalismo e se assenta numa imagem de Deus ligada ao poder e à violência. É claro que esta resposta não dá conta da complexa identidade de Jesus, que é irmão, servo e profeta, cordeiro de Deus, filho do homem, etc.
Por isso, Jesus censura as fantasias de sucesso e de poder e, ao mesmo tempo, fala abertamente que o Filho do Homem deve sofrer muito, e experimentar a rejeição e a morte. Ele substitui o título de Messias por “Filho do Homem”, vinculando-se assim profundamente à humanidade e suas aspirações. Enquanto a ideia messiânica de Pedro contém necessariamente o triunfo e o nacionalismo, o caminho assumido por Jesus é universal, leva ao confronto com a ordem estabelecida e à rejeição. O sofrimento, que ele prevê, é o custo da luta da sua humanização, e não uma espécie de capricho de Deus.
Aceitar isso não é coisa fácil, nem para Pedro nem para nós, tanto que Pedro leva Jesus para o lado e começa a repreendê-lo, revelando sua radical incapacidade de aceitar o caminho de compaixão e serviço, a dificuldade de passar das declarações ortodoxas às práticas consequentes. “A fé, se não se traduz em obras, por si só está morta”, dirá mais tarde o discípulo Tiago. E as obras geradas no fecundo ventre da fé são conhecidas: compaixão, solidariedade, serviço, humildade. Numa palavra: as obras da fé são o amor vivido como afirmação e defesa da dignidade do próximo!
O evangelista diz que Jesus reagiu olhando para os discípulos e repreendendo Pedro. Para Jesus, Pedro estava agindo como tentador e divisor, com mentalidade limitada e sectária. E quem pensa e age assim é porta-voz do Satanás, rejeita a Palavra de Deus e se apega às tradições humanas (cf. Mc 7,1-13). Por isso, em pleno território da bajulação e da subserviência, Jesus esclarece: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois quem quiser salvar sua a sua vida vai perdê-la; mas quem perde sua vida por causa de mim e da Boa Notícia, vai salvá-la.”
Jesus, força de Deus na fragilidade humana, Palavra divina nas tramas da história, mestre do serviço num mundo de senhores. Sustenta nosso desejo de receber teu batismo, de enfrentar os rechaços e de seguir teus passos. Ajuda-nos a negar nossos interesses egoístas para não renegarmos a ti, fonte de vida sem limites. Convence-nos de que salvar nossa própria vida é um mau investimento, e que arriscá-la pelo teu Reino nos assegura para sempre aquilo que há de bom e que realmente necessitamos. Abre hoje nossos ouvidos à tua santa Palavra, e não nos permitas que nos coloquemos à tua frente. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Profecia de Isaías 50,5.9 * Salmo 114 (116A) * Carta de São Tiago 2,14-18 * Evangelho de São Marcos 8,27-35)

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Romaria de N. S. Salette (Santo Ângelo, RS): Homilia


Leigos, como Maria, engajados de corpo e alma na missão de fazer esse mundo melhor!

A missão dos cristãos é fazer com que a bênção de Deus chegue a todas as pessoas, a todas as dimensões da sociedade e a todos os cantos da terra. Nossa missão primeira é acolher o mistério precioso da vida que se revela na estrebaria de Belém e na Cruz do Calvário, compreendê-lo cada vez mais profundamente, vivê-lo com empenho e anunciá-lo com liberdade e respeito.
Nessa perspectiva, é importante sublinhar que a bênção de Deus se mostra na convivência pacífica, na colaboração solidária, nas colheitas abundantes, na saúde resistente, na partilha generosa, no engajamento nas lutas, na esperança indestrutível, na vida em abundância.
Para entendermos corretamente a missão dos leigos e leigas na Igreja e no mundo precisamos superar dois mal entendidos.
O primeiro mal-entendido é pensar que, quando falamos em Igreja e em missão, o que conta é unicamente a autoridade e a ação dos religiosos, diáconos, padres e bispos. Isso é errado! Escutemos o que dizem os bispos do Brasil!
"Não é evangélico pensar que os ministros ordenados sejam mais importantes e mais dignos, sejam ‘mais igreja’ que os leigos e leigas. A dignidade não vem dos serviços e ministérios que cada um exerce,  mas da iniciativa de Deus, da incorporação a Cristo pelo batismo!" (CNBB, Doc. 105, nº 109)
O segundo mal-entendido é pensar que missão da Igreja, e, dentro dela, a missão dos leigos e leigas, é apenas falar de assuntos religiosos, de catequese, de sacramentos, da Bíblia, da moral familiar. Em relação a isso, o Papa Francisco proclama, e os Bispos do Brasil repetem:
"Nenhuma família sem teto! Nenhum agricultor sem terra! Nenhum trabalhador sem direitos! Nenhum povo sem soberania! Nenhuma pessoa sem dignidade! "(Doc. 105, nº 181)
Este é o horizonte maior que enquadra a missão dos cristãos, o objetivo e meta à qual toda a vida eclesial deve tender.
Eu penso que, em La Salette, Maria antecipa o que o Concílio Vaticano II diria 100 anos depois e estabelece a dignidade e a responsabilidade missionária dos leigos e leigas.
Havia muitos padres, religiosos e bispos na Igreja da França daquela época, mas Maria chama a si os leigos Maximino e Melânia, revela a eles sua misericórdia de Deus e confia-lhes uma missão universal: “Vão e anunciem isso a todo o meu povo!”
Mas Maximino e Melânia não representam apenas os leigos e leigas! Eles são crianças, são analfabetos, não tem instrução religiosa e trabalham como bóa-frias! Neles, através de Maria, Deus escolhe os pequenos e marginalizados e lhes confia a continuidade da sua própria missão no mundo! A pobreza e as limitações culturais e religiosas não dispensam nem impedem a responsabilidade e a dignidade missionária de ninguém, não dispensam ninguém do engajamento na ação libertadora de Deus!
E aquelas pobres crianças não se calam nem se cansam! Começam sua missão em casa, com seus familiares, anunciando-lhes com firmeza a libertadora mensagem da aparição. Prosseguem dando testemunho na vila onde moram e interpelando os padres e bispos. E terminam por enfrentar, com serenidade e coragem a desconfiança e o desprezo das autoridades e das pessoas que se julgavam culturamente superiores.
Mas precisamos perguntar: o que anunciaram Maximino e Melânia em sua espinhosa missão e em seus tortuosos intinerários de vida? Testemunharam aquilo que receberam e descobriram a partir do encontro com Maria e, por ela, com Jesus e seu Evangelho!
Em primeiro lugar, anunciaram que pertencemos a Deus, que somos seus filhos e filhas, que assim ele nos ama e nos quer. Não somos criados para a escravidão, em nenhuma de suas formas, nem para o medo que a ela conduz. Somos filhos, filhas e herdeiros do sonho de Deus, do Reino de Deus, de um mundo de irmãos!
Em segundo lugar, Maximino e Melânia anunciaram que não somos fragmentos ou indivíduos perdidos e isolados, errantes pelo mundo. É verdade que Deus se dirige a cada pessoa com amor, mas ele não se contenta em falar ao nosso coração, em salvar a nossa alma: ele quer nos reunir como um povo, quer que sejamos comunidade, deseja que vivamos como “família das criaturas”. Por isso, Maria pede que Maximino e Melânia se dirijam a um povo, e não a indivíduos isolados!
Em terceiro lugar, estes jovens missionários anunciam que as carências, sofrimentos e dificuldades que enfrentamos não são castigo der Deus mas fruto da irrsponsabilidade humana, tanto dos indivíduos e das decisões políticas, como essa maldita emenda Constitucioonal que congelou por 20 anos os gastos públicos com saúde e educação. Com Maria, Maximino e Melânia aprenderam que as colheitas frustradas, o adoecimento da terra e das crianças são produtos das escolhas que nós mesmos fazemos e das políticas feitas de costas para o povo pobre.
Em quarto lugar, em sua missão incansável Maximino e Melânia descobrem e anunciam que Deus permanece fiel, que ele chora nas lágrimas da nossa Mãe, que as portas da reconciliação estão sempre abertas, que o presente e o futuro da humanidade depende de nós. “Se vocês mudarem seu modo de pensar e viver, a produção de alimentos será maior que as montanhas...” Com suas lágrimas, Maria nos revela que Deus permanece fiel e espera por nossa conversão profunda e consequente.
Por fim, Maximino e Melânia, leigos e missionários, nos ensinam que Deus conta conosco na missão de abençoar e transformar o mundo. Não basta celebrar os sacramentos e ler a bíblia. Precisamos ser uma Igreja em saída, que caminha em ritmo de missão. “Vão e anunciem isso a todo o meu povo!” Eles o fizeram, com tencidade e em meio a muitas dificuldades. Não foram santos, erraram, mas foram fiéis na revelação e na missão a eles confiadas.
Antes de concluir, quero sublinhar o que nos diz o Papa Francisco. Ele lembra a todos – religiosos, padres, e leigos, jovens e idosos – que "a missão não pode ser apenas uma parte da nossa vida, um ornamento que podemos dispensar, um simples apêndice ou um momento entre tantos outros. A missão é algo que se for esquecido ou minimizado, diminui e limita o que somos. Somos marcados a ferro e fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar.” (EG 273).
E é o mesmo Papa Francisco que nos exorta: "Se a Igreja quiser ser fiel a Jesus, ela deve sair de si mesma e anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares e em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A alegria do Evangelho é para todo o povo, e não se pode excluir ninguém... "(EG 23)

E quero terminar com as belas palavras dos Bispos do Brasil sobre a grandeza da missão e da dignidade dos leigos e leigas: "Os cristãos leigos e leigas que vivem sua fé na vida cotidiana, nos trabalhos de cada dia, nas tarefas mais humildes, são o perfume de Cristo, o fermento do Reino, a glória do Evangelho! "(CNBB, Doc. 105, nº 35).
Itacir Brassiani msf
(09 de setembro de 2018)

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

O Evangelho dominical - 09.09.2018

CURAR A SURDEZ

A cura de um surdo-mudo na região pagã de Sidônia está narrada por Marcos com uma intenção claramente pedagógica. É um doente muito especial. Não ouve nem fala. Vive fechado em si mesmo, sem comunicar com ninguém. Não sabe que Jesus está passando próximo dele. São outros os que o levam até ao Profeta.
Também a atuação de Jesus é especial. Não impõe as Suas mãos sobre ele como lhe pediram, mas leva-o para um lugar afastado das pessoas. Ali trabalha intensamente, primeiro os seus ouvidos e depois a sua língua. Quer que o doente sinta o seu contato de cura. Apenas um encontro profundo com Jesus poderá curá-lo de uma surdez tão tenaz.
Ao que parece, não é suficiente todo aquele esforço. A surdez resiste. Então Jesus apela ao Pai, fonte de toda a salvação: olhando o céu, suspira e grita ao doente uma só palavra: Effetá, que quer dizer, «Abre-te». Esta é a única palavra que pronuncia Jesus em todo o relato. Não está dirigida aos ouvidos do surdo, mas ao seu coração.
Sem dúvida, Marcos quer que esta palavra de Jesus ressoe com força nas comunidades cristãs que irão ler o seu relato. Conhece bem o fácil que é viver surdo à Palavra de Deus. Também hoje há cristãos que não se abrem à Boa Nova de Jesus nem falam a ninguém da sua fé. Comunidades surdas-mudas que escutam pouco o Evangelho e o comunicam mal.
Talvez um dos pecados mais graves dos cristãos de hoje seja esta surdez. Não paramos para escutar o Evangelho de Jesus. Não vivemos com o coração aberto para acolher as suas palavras. Por isso não sabemos escutar com paciência e compaixão a tantos que sofrem sem receber o carinho nem a atenção de ninguém.
Às vezes poderia dizer-se que a Igreja, nascida de Jesus para anunciar a Sua Boa Nova, vai fazendo o seu próprio caminho, esquecendo, com frequência, da vida concreta das preocupações, medos, trabalhos e esperanças das pessoas. Se não escutamos bem as chamadas de Jesus, não colocamos palavras de esperança na vida dos que sofrem.
Há algo paradoxal em alguns discursos da Igreja. Dizem-se grandes verdades, mas não tocam o coração das pessoas. Algo disto está sucedendo nestes tempos de crise. A sociedade não está à espera de «doutrina religiosa» dos especialistas, mas escuta com atenção uma palavra clarividente, inspirada no Evangelho de Jesus, quando é pronunciada por uma Igreja sensível ao sofrimento das vítimas, e que sabe sair instintivamente em defesa convidado todos a estar próximo de quem mais ajuda necessita para viver com dignidade.
José Antonio Pagola
Tradução de Antonio Manuel Álvarez Perez

terça-feira, 4 de setembro de 2018

ANO B – VIGÉSIMO-TERCEIRO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 09.09.2018


A discriminação é incompatível com o Evangelho de Jesus!
Continuando o mês da Bíblia, hoje somos interpelados a abrir nossos ouvidos a um Deus que continua falando, despertando e conduzindo à verdadeira Sabedoria. Não se trata de dar atenção a simples textos, por mais belos e profundos que sejam. O essencial é manter uma relação dialogal com Deus. Mais que adoração e louvor, ele espera de nós escuta e resposta. Que o Senhor abra nossos ouvidos e solte nossa língua, como faz no evangelho de hoje. Não sejamos como os discípulos que, tendo olhos e ouvidos perfeitos, não conseguem ver nem ouvir a novidade inaugurada por Jesus Cristo (cf. Mc 8,18).
A Palavra de Deus nos revela os elementos irrenunciáveis à fé que recebemos da comunidade apostólica. E um deles é o casamento indissolúvel entre fé e vida. A salvação é a transformação de uma situação de carência em abundância e vitalidade. Quando uma religião se perverte em pura doutrina ou moral inflexível, se torna uma faca amolada perigosa, que ameaça e fere. Quando uma Igreja esconde ou nega suas próprias contradições, corre o risco de se tornar intolerante, e quando se refugia em intimismos e formalismos, atraiçoa sua vocação humanizadora e acaba transformando a indiferença em virtude.
A presença de Deus na história e na nossa vida é dinamismo de mudança, e a Palavra de Deus testemunha que ele ouve clamores, conhece sofrimentos, abre nossos olhos e os ouvidos, desce para fazer subir, congrega os dispersos, acolhe os desprezados, ressuscita os mortos... O cristianismo não é formol que conserva corpos mortos, mas sementeira na qual germina a vida. Também hoje Jesus quer tocar com sua mão a língua daqueles que falam com dificuldade e curar o ouvido de quem não consegue ouvir os outros. E começa curando nossa dificuldade de escutar e entender sua Palavra.
Marcos nos apresenta Jesus percorrendo caminhos que, para algumas pessoas, parecem estranhos. A região de Tiro, Sidônia e da Decápole era habitada por pagãos, dente desprezada. Com a presença de Jesus, brilham novas possibilidades de vida para a filha de uma mulher nascida na Fenícia e para um surdo-mudo anônimo. Não teria Jesus o que fazer entre os seus conterrâneos? Por que desperdiçar tempo e palavras com gente sem importância? Em sua peregrinação no santuário das dores e esperanças humanas, Jesus sempre dá prioridade absoluta aos últimos da escala social, aos pobres e desprezados.
Não falta gente que desejaria excluir da bíblia textos como a carta de São Tiago, que pede que, em nossas igrejas, não façamos distinção de pessoas em favor dos ricos e nobres. “Não foi Deus que escolheu os que são pobres aos olhos do mundo para torná-los ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu àqueles que o amam?” Este é um princípio fundamental e uma bela experiência dos primeiros cristãos: a fé em Jesus glorificado não admite distinção de pessoas em benefício dos mais fortes ou considerados nobres. Os critérios do Evangelho são outros, e nos interpelam fortemente.
Acolhendo um pagão doente e necessitado e tocando seus ouvidos e sua língua, Jesus despreza as prescrições religiosas e sanitárias do seu tempo. Ele rompe a distância, toca o doente, o contágio é revertido e o surdo-mudo é curado. Mas Jesus faz questão de não agir sob os refletores e câmaras. Faz o contrário de muitos que hoje, “em nome de Jesus”, transformam a fé em espetáculo e inventam curas ao vivo e a cores, escarnecendo dos doentes, manipulando a fé do povo necessitado e extorquindo deles os poucos recursos que lhes restam. Por isso, a multidão ficou entusiasmada diante da compaixão de Jesus.
Estamos como aquele homem que falava com dificuldade. Nossos ouvidos parecem surdos às Palavras que escapam da nossa lógica e questionam nossos interesses. Nossa língua parece presa, especialmente quando se trata de defender os direitos humanos e recriar o Evangelho da liberdade e da solidariedade. Um nacionalismo anacrônico e nada evangélico, ao lado de uma mentalidade escravagista, ativados especialmente na semana da pátria e nas eleições, nos induz a imaginar perigosamente que ser humano significa ser superior e melhor que outros. Precisamos que Jesus Cristo toque nossos ouvidos, coloque sua saliva em nossa língua, converta a nossa mente e libere a nossa comunicação e nossa ação.
Jesus, tu és compassivo em tudo o que fazes e verdadeiro em tudo o que dizes. Não podemos calar esta Boa Notícia, mesmo quando seu anúncio traz riscos, pois ela é nossa Sabedoria. Abre nossos ouvidos à tua santa Palavra, para que não desistamos de crer e de esperar o belo e santo dia em que os estropiados dançarão alegremente, a língua dos mudos se soltará numa solene melodia coral e o duro chão das instituições será regado e amolecido pela água benfazeja da tua Sabedoria. Que teu corpo e sangue nos alimentem e ajudem a transformar em lavoura e jardim a terra hoje ocupada pelos chacais. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Profecia de Isaías 35,4-7 * Salmo 145 (146) * Carta de São Tiago 2,1-5 * Evangelho de São Marcos 7,31-37)