quarta-feira, 31 de outubro de 2018

ANO B – SOLENIDADE DDE TODOS OS SANTOS E SANTAS – 04.11.2018


Amor, solidariedade e serviço aos irmãos: isso é santidade!
Na solenidade litúrgica de todos os santos e santas, não podemos esquecer que a verdadeira santidade é aquela que se manifesta na vida das pessoas que vão além do estreito limite dos seus próprios interesses e se aproximam solidariamente dos ‘últimos’ da escala social; que vão aos rincões mais distantes para levar a bandeira da paz; que são movidas por uma insaciável sede de justiça; que choram as dores dos povos de todas as cores e provam o fel da violência e da perseguição; que transformam a terra pela mansidão... Muito diferente daqueles que rangem os dentes com sede de vingança ou retesam as mãos como se portassem armas a serem disparadas em nome da paz “dos homens de bem”.
A festa de todos os santos faz memória dos santos esquecidos, daqueles que não têm um dia especial, nem um nome conhecido, que gastaram a vida no anonimato e cujos milagres não cabem nas estreitas regras canônicas; de gente como Sepé Tiaraju, Padre Cícero, Frei Tito, e Ir. Dorothy; e mesmo de gente que não rezou pelo nosso catecismo, como Lutero, Luther King, Gandhi, Mandela, Betinho e tantos outros. Nesta festa celebramos a memória daqueles que nos antecederam na fé e cujo testemunho mantém a Igreja no caminho certo, apesar das suas resistências e ambivalências.
Mas a celebração de todos os santos e santas não olha somente para o passado. É oportunidade e provocação para que reflitamos sobre a vocação fundamental de todos os cristãos. É verdade que a santidade é um caminho estreito e uma vocação exigente, mas isso não significa que seja reservada a alguns grupos especiais de cristãos. Há mais de 50 anos o Concílio Vaticano II proclama de forma clara e inequívoca, contra a ideia então predominante nas Igrejas, que a santidade não é privilégio dos sacerdotes e religiosos. Muito antes, a história já havia comprovado o que foi proclamado solenemente.
Na passagem do milênio, o hoje santo João Paulo II nos provocava a não contentarmo-nos com pequenas medidas, voos rasantes e ideais nanicos, e pedia que aspirássemos nada menos e nada mais que à santidade. Esta vocação que é de todos precisa se transformar em desejo pessoal e em decisões e ações concretas. Como diz São João, nós somos chamados filhos de Deus e já o somos desde agora, mas o desafio é crescer na identificação com Jesus Cristo, gravar no corpo e na mente as marcas de Jesus Cristo. “Seremos semelhantes a ele...” E isso deve ser mais que um simples sentimento.
Jesus Cristo é o verdadeiro e perfeito santo de Deus e, ao mesmo tempo, o caminho para a santidade. Não há santidade à margem do seguimento de Jesus Cristo, mesmo que tal seguimento seja implícito. Trata-se então de refazer o caminho prático trilhado por Jesus: “amar como Jesus amou; sonhar como Jesus sonhou; pensar como Jesus pensou; viver como Jesus viveu; sentir como Jesus sentia...” Este é o caminho para que, no meio ou no fim do dia, e no meio ou no fim da vida, sejamos felizes. Este caminho é o caminho percorrido pelo próprio Jesus Cristo, expresso programaticamente nas bem-aventuranças.
A bela mensagem das bem-aventuranças apresenta os sinais que indicam claramente o caminho da santidade. Jesus não fala de oito grupos específicos de pessoas, mas de oito características daqueles que percorrem este caminho. Esta via sagrada começa com a pobreza e termina com a perseguição, que não representa um obstáculo, pois o Reino de Deus é antes de tudo dos pobres e dos perseguidos. A consolação é para os aflitos, a terra é para os mansos, a saciedade é para os famintos, a misericórdia é para os compassivos, a visão de Deus é para os puros e a filiação divina é para os promotores da paz.
Passa longe do Evangelho uma santidade que se resume em práticas de piedade ou moralismo vazio. Está distante da essência humana uma felicidade baseada no sucesso pessoal, indiferente à sorte dos semelhantes. As pessoas que se vestem de branco e trazem palmas nas mãos são aquelas que vieram da grande tribulação, que lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro, que encarnaram o Evangelho no mundo e na própria vida. Felicidade não significa ausência de dificuldades, mas realização plena e profunda do ser humano. Mais que perfeição, santidade é perseverança no amor e no serviço.
Deus pai e mãe, fonte de toda santidade, dá-nos a graça de permanecer sempre de pé diante do teu Filho, rodeados pela nuvem de testemunhas anônimas oriundas de todas as nações, tribos, raças, línguas e gêneros. Ajuda-nos a superar a tentação de separar, catalogar e hierarquizar católicos e evangélicos, cristãos e não-cristãos. Fica conosco e caminha à nossa frente, para que estejamos sempre prontos a amar e servir. E que a inexplicável alegria em meio às intermináveis lutas seja nossa arma e nosso triunfo. E então estaremos vivendo em comunhão com aqueles que louvam no céu e na terra. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Apocalipse de São João 7,2-4.9-14 * Salmo 23 (24) * 1ª. Carta de São João 3,1-3 * Evangelho de São Mateus 5,1-12)

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Manifesto de um grupo de padres pela Democracia


Nota de um grupo de padres brasileiros quanto ao momento eleitoral

Queridos irmãos e irmãs!

Somos um grupo de padres que teme pelo destino político que está sendo gestado para o Brasil. No corrente ano de 2018, depois de uma campanha marcada por mentiras, “Fake News”, e por manifestações claras de ódio e de indiferença quanto ao diálogo, nós queremos recordar ao povo que nos foi entregue nossa firme convicção pelos valores evangélicos.

A fé cristã exige de nós uma firme postura diante do mal. Os seguidores de Cristo não podem se permitir corromper por interesses, sejam eles ideológicos ou econômicos. Muito mais escandaloso, então, é a possibilidade de que os discípulos e discípulas de Jesus se permitam motivar pelo ódio contra as minorias, já tão esmagadas em nosso país. Os pobres, sem teto, sem trabalho, sem o mínimo de dignidade humana são nossos senhores e sem eles, nenhum de nós poderá chegar à comunhão com Cristo (Mt 25,31-46).

Mas, as minorias são muitas nesse país marcado pela desigualdade: os negros e quilombolas que enfrentam o preconceito e a desigualdade de condições sociais; as comunidades indígenas que lutam para sobreviver; os grupos LGBTs tão perseguidos, desrespeitados e marginalizados; os imigrantes que buscam uma nova vida em nosso país; as mulheres que, ainda hoje, ficam em cargos secundários na sociedade. Todos esses grupos, e todos aqueles que sofrem injustiça são a presença de Cristo crucificado entre nós.

Tendo em vista essas realidades, sabedores que somos da enorme crise ética pela qual passamos e pela desconfiança de grande parte da população em relação às instituições democráticas, pedimos ao nosso povo que não arrisque abrir mão da democracia, que a duras penas resgatamos após um regime militar autoritário e ditatorial. Deixar de lado a democracia para acolher e confiar num discurso de um candidato que possui uma fala extremamente excludente e marcada pela violência, é abandonar o Evangelho e colocar a esperança em falsos deuses.

A democracia brasileira é recente e precisa, constantemente, ser melhorada. Mas, não esqueçamos que a democracia não é o regime político onde a maioria manda e as minorias se calam. Ou, em casos extremos, onde a maioria procura exterminar as minorias. A democracia é o sistema em que todos têm seus direitos e deveres assegurados, pois cada ser humano é reconhecido em sua dignidade.

Como pastores do povo de Deus que não podem deixar morrer a voz profética da Igreja, pedimos ao nosso povo que não se permita manipular por ideologias totalitárias. Os cristãos são movidos pelos valores do Evangelho, são pobres de espírito, pacificadores, mansos de coração, têm fome e sede de justiça, são misericordiosos, são construtores da paz e, se preciso for, são perseguidos por defender esses valores que brotam do coração do Evangelho (Mt 5,1-11). Pedimos ao nosso povo que trabalhe pela paz e assegure a democracia que garante nossa liberdade, abrindo mãos das lógicas de violência e de todo e qualquer tipo de preconceito e de ódio.

(Pe. Itacir Brassiani msf, entre muitos)

O Evangelho dominical - 28.10.2018


COM OLHOS NOVOS

A cura do cego Bartimeu está narrada por Marcos para interpelar as comunidades cristãs a sair da sua cegueira e mediocridade. Só assim seguirão Jesus pelo caminho do Evangelho. O relato é de uma surpreendente atualidade para a Igreja dos nossos dias.
Bartimeu é um mendigo cego sentado junto ao caminho. A sua vida sempre é de noite. Ouviu falar de Jesus, mas não conhece o Seu rosto. Não pode segui-Lo. Está junto ao caminho por onde Jesus passa, mas está fora. Não é esta também a nossa situação? Cristãos cegos sentados junto ao caminho, incapazes de seguir Jesus?
Parece que vivemos na noite. Desconhecemos Jesus. Falta-nos luz para seguir o Seu caminho. Ignoramos para onde se encaminha a Igreja. Não sabemos sequer que futuro queremos para ela. Instalados numa religião que não consegue converter-nos em seguidores de Jesus, vivemos junto ao Evangelho, mas fora dele. Que podemos fazer?
Apesar da sua cegueira, Bartimeu capta que Jesus está a passar próximo Dele. Não hesita um instante. Algo lhe diz que em Jesus está a sua salvação: “Jesus, Filho de David, tem compaixão de mim!” Este grito repetido com fé vai desencadear a sua cura.
Hoje ouve-se na Igreja queixas e lamentos, críticas, protestos e mutuas desqualificações. Não se escuta a oração humilde e confiante do cego. Esquecemo-nos que só Jesus pode salvar esta Igreja. Não percebemos a Sua presença próxima. Só acreditamos em nós.
O cego não vê, mas sabe escutar a voz de Jesus, que lhe chega através dos Seus enviados: Ânimo, levanta-te, que te chama!” Este é o clima que necessitamos criar na Igreja. Animar-nos mutuamente a reagir. Não seguir instalados numa religião convencional. Voltar a Jesus, que nos está chamando. Este é o primeiro objetivo pastoral.
O cego reage de forma admirável: solta o manto que lhe impede levantar-se, dá um salto no meio da obscuridade e aproxima-se de Jesus. Do seu coração apenas brota uma petição: Mestre, que recupere a vista Se os seus olhos se abrem, tudo mudará. O relato conclui dizendo que o cego recuperou a vista e o seguia pelo caminho.
Esta é a cura que necessitamos hoje os cristãos. O salto qualitativo que pode mudar a Igreja. Se muda o nosso modo de olhar Jesus, se lemos o Seu Evangelho com olhos novos, se captamos a originalidade da Sua mensagem e nos apaixonamos com o Seu projeto de um mundo mais humano, a força de Jesus irá arrastar-nos. As nossas comunidades conhecerão a alegria de viver seguindo-O de perto.
José Antonio Pagola
Tradução de Antonio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

ANO B – TRIGÉSIMO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 28.10.2018


Que Jesus cure a cegueira de parte dos eleitores brasileiros!
Estamos chegando ao final do mês que dedicamos à oração e à animação missionária, e vivendo, neste domingo, o desfecho de uma conturbado e dramático processo eleitoral. Cego pelo medo e pelo ódio, conduzido como gado marcado para morrer por uma imprensa que detesta tudo o que representa avanço da cidadania, o povo brasileiro corre o risco de aplaudir o torturador que o fere e de recusar a democracia que assegura seus direitos. Precisamos abrir a boca e gritar com coragem, pedindo que se abram nossos olhos, que o país acorde e se coloque a caminho, que não brinque à beira do precipício.
Somos movidos pelo desejo, pelos sonhos, pelas utopias. O desejo insaciável de plenitude, de bem viver e conviver, faz com que a pessoa humana se coloque a caminho. Apagar este desejo, ou substituí-lo pela rasteira satisfação de uma segurança feita sob medida para os fortes, equivale a começar a morrer. O ser humano só fica sentado à beira da estrada e condena quem é diferente quando ainda não alcançou sua própria maturidade ou quando teve roubada a sua dignidade. Só quem ousa caminhar para além da situação presente é capaz de recusar uma vida sustentada por migalhas de bem-estar e falsa segurança.
O desejo mobilizador, criativo e emancipador é também o lugar do encontro com Deus. Quem busca Deus fora da insaciável sede de plenitude e convivência inclusiva e solidária acaba fabricando ídolos que só fazem amedrontar os viventes e devorar vidas. É Deus quem nos fez sonhadores, misturando o pó da terra ao sopro divino. E é nessa abertura radical que nada pode preencher que ele costuma vir ao nosso encontro, acolhendo-a não como sinal de nossos limites, mas como expressão do infinito que nos habita. É também do adorável fundo desta condição de criaturas desejantes que brota a verdadeira oração.
É na oração que revelamos nossos verdadeiros e mais profundos desejos. Então, que é que andamos pedindo a Deus? E o que pedimos para nosso país? Dirigimo-nos a Deus como se ele fosse um capitão pronto a eliminar, em nosso nome, as pessoas e grupos que não nos agradam ou sentimos como ameaça? Confiamos a ele a frágil economia e a duvidosa moral da nossa família e imploramos que dê segurança às nossas poupanças e propriedades? Talvez cheguemos até a pedir paz, segurança e sucesso à nossa Igreja na concorrência com as demais denominações, que tratamos como concorrentes...
Como são pobres e medíocres estes desejos! Não passam de necessidades, reais ou fantasiosas, geradas no ventre do medo. Por isso, quando se trata de oração, não é suficiente pedir com insistência: é preciso desejar e pedir com ousadia e corretamente grandes coisas! Venha a nós o vosso Reino! Seja feita a vossa vontade! Democracia radical e respeito aos pobres. Bartimeu, que pede esmolas à margem do caminho, começa pedindo compaixão àquele que carrega nas próprias entranhas as esperanças dos pequenos. Antes de manifestar propriamente um desejo, expressa sua própria condição de dor e alienação.
Apesar da contrariedade dos que o circundam e seguem, Jesus para e se dirige ao cego e mendigo que implora: “O que você quer que eu faça por você?” Encorajado pelos discípulos, Bartimeu balbucia um pedido que vem do fundo da condição humana, que espanta todos os medos e exorciza todas limitações: “Mestre, eu quero ver de novo!” Neste pedido, ele resume todas as suas necessidades e desejos: ver claramente as coisas, avaliar com retidão os acontecimentos, vislumbrar o Reino de Deus chegando como graça, tomar decisões políticas responsáveis à luz da razão ética e não dos medos e ódios...
Pouco antes, um jovem rico havia voltado atrás, entristecido, porque era refém dos próprios bens (cf. Mc 10,17-22), e João e Tiago haviam expressado seus sonhos de poder. Mas o cego Bartimeu se livra do único meio de sobrevivência que possui e se aproxima de Jesus. E é essa fé ativa e dinâmica que abre seus olhos. “Pode ir, a sua fé curou você!” E ele não volta para casa ou para a caserna, mas põe-se a seguir Jesus. Mostra-se mais livre que o jovem rico, que voltou atrás desiludido, e que João e Tiago, que desejam os primeiros lugares. Que o povo brasileiro aprenda do cego de Jericó, peça a Jesus a capacidade de ver, de entender e de jogar fora o manto dos grandes medos e pequenas e falsas seguranças.
Jesus de Nazaré, peregrino no santuário das dores e sonhos humanos! Escuta o grito que brota das entranhas da terra e abre os nossos olhos para podermos reconhecer-te passando por nossos caminhos. Converte os cristãos do Brasil, para que não ignorem os desejos e sonhos que movem a humanidade. Desperta o povo brasileiro, para que saiba escolher a democracia e a solidariedade, e não a violência e o fascismo. E que ninguém cale em nós o grito desse desejo, mais forte que todas as razões, mais glorioso que todas as luzes, mais vivo que todas as cores, mais nobre que todas as honras. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Profecia de Isaías 53,10-11 * Salmo 32 (33) * Carta aos Hebreus 4,14-16 * Evangelho de Marcos 10,35-45)

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

110 anos da morte do Pe. Berthier (final)


Um testemunho eloquente e cabal
Na celebração da páscoa do Padre Berthier, o Pe. Sprangers, pároco de Grave, resumiu o amor que marcou sua vida com as seguintes palavras: “Ele amou vocês ternamente, ardentemente, generosamente e, por causa deste amor, justificou plenamente o modo como vocês se dirigiam a ele: pai. Vocês, filhos do Padre Berthier, conheceram os cuidados infinitos que seu amor teve para fazer vocês crescer, para instrui-los e, sobretudo, para santifica-los. Somente vocês podem dizer algo sobre a imensa ternura que ele teve por vocês, pela pessoa de cada um e pela Obra das vocações sacerdotais que ele empreendeu para a glória de Deus. (...)
Sendo ardentemente querido por seus filhos, ele foi também amado por outras pessoas com um afeto que muito raro neste mundo. A transparência da sua vida, a nobreza da sua alma, seu caráter desapegado e o completo esquecimento de si atraíram estima, simpatia e veneração de todos aqueles que tiveram a graça de encontrá-lo ou mesmo de conhecê-lo, ainda que apenas indiretamente. De fato, Padre Berthier foi amado com um afeto particular por muitas pessoas, não por interesses, como ocorre frequentemente, mas por convicção, por estima, por uma espécie de atração que ele exercia sobre as pessoas. Em uma palavra, ele foi amado porque era uma pessoa amável: amável aos olhos de todos; amável por sua modéstia, amável por sua bondade, amável por sua simplicidade, esvaziada de qualquer presunção.”
Mais a antes que virtudes, Fé, Esperança e Amor são, conjuntamente, a novidade cristã encarnada no mundo, os primeiros e mais importantes frutos do Espírito. São as três faces da mesma santidade. Alguém poderia dizer que isso não tem nada de extraordinário, que são coisas comuns. Mas será que viver pela fé num ambiente que impõe o medo e nega qualquer transcendência, viver a esperança num mundo que insiste na falta de saídas e propõe a resignação, viver o amor num sistema que propugna a indiferença e o valor absoluto do indivíduo não brilha como sinal de Deus no mundo, como um ideal digno de ser imitado?
Itacir Brassiani msf

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

O Evangelho dominical - 21.10.2018


NADA DISSO ENTRE NÓS

Enquanto sobem a Jerusalém, Jesus vai anunciando aos Seus discípulos o destino doloroso que o espera na capital. Os discípulos não o entendem. Andam a disputar entre eles os primeiros lugares. Tiago e João, discípulos desde a primeira hora, aproximam-se Dele para Lhe pedirem diretamente para sentarem-se um dia um à Tua direita e o outro à Tua esquerda.
Vê-se Jesus desalentado: Não sabeis o que pedis. Ninguém no grupo parece entender que segui-Lo de perto no Seu projeto, sempre será um caminho não de poder e grandezas, mas de sacrifício e de cruz.
Entretanto, ao saberem do atrevimento de Santiago e João, os outros dez indignam-se. O grupo está mais agitado que nunca. A ambição está a dividi-los. Jesus reúne-os a todos para deixar claro o Seu pensamento.
Antes de mais nada expõem-lhes o que acontece aos povos do Império romano. Todos conhecem os abusos de Antipas e das famílias herodianas na Galileia. Jesus resume assim: os que são reconhecidos como chefes utilizam o seu poder para tiranizar os povos, e os grandes não fazem senão oprimir os seus súbditos. Jesus não pode ser mais categórico: Vós, nada disso”.
Jesus não quer ver entre os Seus nada parecido: O que queira ser grande entre vós que seja vosso servidor, e o que queira ser primeiro entre vós que seja escravo de todos. Na Sua comunidade não haverá lugar para o poder que oprime, só para o serviço que ajuda. Jesus não quer chefes sentados à Sua direita e esquerda, mas servidores como Ele que dão a sua vida pelos demais.
Jesus deixa as coisas claras. A Sua Igreja não se constrói a partir da imposição dos de cima, mas a partir do serviço dos que se colocam abaixo. Não cabe qualquer tipo de hierarquia em termos de honras ou de domínio. Tampouco métodos e estratégias de poder. É o serviço o que constrói a Igreja de Jesus.
Jesus dá tanta importância ao que está a dizer que se coloca a si mesmo como exemplo, pois não veio ao mundo para exigir que o sirvam, mas “para servir e dar a Sua vida em resgate por todos”. Jesus nos ensina que ninguém triunfe na Igreja, que não seja a servir o projeto do reino de Deus desgastando-nos pelos mais débeis e necessitados.
Os ensinamentos de Jesus não são só para os dirigentes. Desde tarefas e responsabilidades diferentes temos de comprometer-nos todos a viver com mais entrega ao serviço do Seu projeto. Não necessitamos na Igreja de imitadores de Santiago e João, mas de seguidores fiéis de Jesus. Os que querem ser importantes que se ponham a trabalhar e a colaborar.
José Antonio Pagola
Tradução de Antonio Manuel Álvarez Perez

110 anos da morte do Pe. Berthier (3)


Amor terno, generoso e perseverante ao próximo
O Padre Berthier ensinava que o amor é “o sentimento mais perfeito, e é para produzi-lo em nós que Jesus Cristo doou sua vida”. Movido por essa convicção, o Fundador viveu um intenso, generoso e criativo amor ao próximo. Esse amor se tornou palpável especialmente no seu zelo apostólico, no seu relacionamento afável, na sua dedicação às vocações, no seu amor pelos pobres e na sua cuidadosa atenção aos doentes.
Em relação ao zelo pastoral, a meta prioritária de todo ação apostólica do Fundador era conduzir as pessoas à perfeição no amor, conduzir à santidade. Essa é uma das razões pelas quais ele jamais abandonou o serviço aos romeiros no Santuário, especialmente no confessionário, assim como o exigente ministério da direção espiritual. Segundo o bispo Dom Paulot, é isso que também transparece em todas as obras que escreveu. Segundo um colega Saletino, ele jamais se acomodou aos caminhos mais convencionais ou fáceis. Além de dedicar-se incansavelmente a esta finalidade, o Fundador estimulou fortemente seus discípulos a fazerem o mesmo. Para ele, o fundamento do zelo pastoral “é o amor de Nosso Senhor e o amor ao próximo em vista dele”, como escreveu.
O relacionamento afável com todas as pessoas causou profunda impressão em quem conheceu o Padre Berthier. Diz uma testemunha: “Seu amor se manifestava de modo extraordinário na sua afabilidade, na sua vida exemplar, nas suas palavras e ações. Quando eu saía com ela à cidade, percebia que as pessoas ficavam visivelmente impressionadas com sua amabilidade. Ele saudava amavelmente todas as pessoas, inclusive às crianças, para quem tirava o chapéu e dizia: ‘Bom dia, meu filho, bom dia meu pequeno!” Muitos vocacionados, posteriormente discípulos seus, testemunham que a precariedade da casa de Grave assustava, mas a amabilidade do Fundador os atraía e consolava. “A presença do Padre Fundador fazia-me esquecer todas as dificuldades.” Essa mesma afabilidade ele a manifestava no confessionário, e por isso atraía muita gente.
Outra manifestação do seu amor ao próximo é a dedicação do Padre Berthier à orientação vocacional. Durante toda a sua vida, o Fundador deu à pastoral das vocações um lugar prioritário, sobretudo às vocações apostólicas e àquelas para as quais as portas tradicionais estavam fechadas. E isso ainda como missionário Saletino, bem antes de fundar a Congregação dos Missionários da Sagrada Família. Era grande sua fama como diretor espiritual e orientador vocacional mediante a correspondência. Quem ama o próximo, leva a sério a tarefa de ajudá-lo a encontrar e desenvolver sua vocação.
Uma quarta expressão desse amor ao próximo é o amor aos pobres, entre os quais seus próprios vocacionados ocupavam o primeiro lugar. É para estes que o Padre Berthier pensou a Congregação. Ele não media esforços e trabalhava sem descanso para abrir uma vaga a uma vocação pobre. Como escrevera, ele nunca esqueceu que “as pessoas pobres, enfermas, surdas, com inteligência limitada ou aparência repugnante devem ser as mais importantes para o verdadeiro discípulo de Jesus Cristo”. “Mesmo tendo pouco, ele não fechava a mão aos pobres”, diz uma testemunha. “Ele nunca despediu um pedinte sem nada”, atesta outra. Com esta fama, eram muitos os pobres que recorriam sempre a ele.
A atenção que o Padre Berthier dedicava aos doentes é uma outra expressão do seu amor pelos pobres. Ele os ajudava com visitas, donativos, orientações, inclusive com seus conhecimentos sobre ervas medicinais. Várias testemunhas afirmam que o Fundador conhecia muitos doentes pelo nome, e sempre buscava saber se estavam se recuperando. Quando os doentes eram seus formandos, esse cuidado era redobrado. Em vista dos doentes, o Fundador organizou uma enfermaria e um pequeno abrigo. Se a enfermidade era mais grave, remetia-os a algum médico conhecido seu. E quando os doentes estavam em fase terminal, Padre Berthier não media esforços para que recebessem os sacramentos e para permanecer o mais possível ao lado deles. E isso ele ensinou também aos seus discípulos.
Itacir Brassiani msf
                                                                                     

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

110 anos de morte do Pe. Berthier (2)

Amor a Deus, por ele mesmo e acima de tudo
Segundo o próprio Pe. Berthier, o amor é uma virtude que nos dispõe a amar a Deus por ele mesmo e acima de tudo, e ao próximo por amor a Deus. Em relação às demonstrações de amor a Deus deixados pelo Fundador, os testemunhos são muitos, e citaremos apenas alguns.
Algumas testemunhas afirmam que toda a vida do Fundador revela seu amor a Deus. “Ele falava frequentemente do amor a Deus, e toda sua vida revelava esse amor”, diz uma delas. “Todos os seus gestos e ações revelavam que ele estava impulsionado pelo amor de Deus”, diz outra. Este era o núcleo de onde partiam e para onde se dirigiam suas alocuções. O próprio livro “A arte de ser feliz” não é senão uma apologia do amor de Deus.
Segundo o Postulador, o Padre Berthier demonstrou seu amor a Deus na aversão ao pecado, na capacidade de renúncia, na complacência, na confiança e na comunicação expansiva. “Quanto maior é o horror ao pecado, mais cresce o amor a Deus”, ensinava Berthier.  Segundo uma testemunha, o Padre Berthier era “um inimigo declarado de toda imperfeição e pecado”.
Berthier ensinava que, sem esvaziamento e renúncia, não há lugar para o amor a Deus, e o ele viveu essa renúncia por amor especialmente ao assumir a condição de estrangeiro na Holanda e em todo o processo de fundação. “Ele não possuía nada e não se apegava a nada”, diz um coetâneo. “Era como um homem morto para o mundo, para ele o mundo não existia. Ele não tinha nada, e só podia contar com nossa companhia”, diz uma testemunha.
No caderno de retiro para os votos, o Padre Berthier escreveu: “Primeiro ato da minha jornada: Eu me ofereço a ti, Jesus, por amor, e te ofereço tudo o que disser, fizer ou pensar”. Mais tarde, gostava de repetir aos seus formandos: “Deus se agrada daqueles que agradam a Deus”. Esse amor complacente (amor prazeroso e participativo) é perfeito e nos faz amigos de Deus. “Querer agradar a Deus era o que marcava sua vida e seu trabalho”, testemunham seus discípulos. Seu único desejo era agradar a Deus, e, à luz disso, enfrentava serenamente todas as contrariedades, dificuldades e renúncias.
No mesmo caderno de retiro, o Fundador escrevia: “Eu não serei feliz e não darei glórias a Deus se não me despojar de tudo por amor a ele. Em minhas ações não buscarei outra coisa que cumprir sua vontade.” Aos formandos, ele repetirá que sem entrega à vontade de Deus não vamos a lugar nenhum. Para ele, amar a Deus significa aceitar e realizar sua vontade. Por isso, ele não hesitaria em abandonar a obra que ele tanto amou, desde que fosse convencido de que essa era a vontade de Deus. Sua divisa poderia ser: “Como Deus quiser!” Para o Padre Berthier, fazer nossa vontade coincidir com a vontade de Deus é o cume da perfeição.
Por fim, o amor do Fundador a Deus se mostra criativo e comunicativo. Em tudo o que ele fazia e dizia estava a marca desse amor. “Ele só falava de Deus. Ele via o bom Deus em cada criatura”, diz uma testemunha. Berthier escreve a um orientando: “Tenham um grande coração e não pensem demais em vocês mesmos! Nada mais importa, desde que Jesus seja glorificado por nossa vida...” É desse amor intenso e transbordante a Deus que emerge um amor generoso e terno para com todas as pessoas que o cercavam ou buscavam.
Itacir Brassiani msf

ANO B – VIGÉSIMO-NONO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 21.10.2018


Nossa missão é lutar para evitar a morte da democracia!
Os episódios narrados no capítulo 10 do evangelho de Marcos sublinham um aspecto fundamental da vida cristã: a missão de anunciar e testemunhar Jesus Cristo deve ser sempre precedida e permanentemente sustentada pela atitude de discípulo e aprendiz. O Evangelho não é uma espécie de produto que precisa de publicidade, e a missão não se identifica com a simples expansão da Igreja. Evangelizar é, antes de tudo, fazer do Evangelho a regra fundamental do nosso viver, pautar nossa vida pelas opções de Jesus Cristo, pela atitude de serviço. E esta lição precisa ser sempre retomada.
No trecho do Evangelho que meditamos neste domingo, Marcos continua narrando a subida de Jesus para Jerusalém. Apesar da catequese particular e paciente de Jesus, os discípulos continuam resistentes e espantados frente a um messias humano, pobre e servidor. Nem mesmo o tríplice anúncio da prisão, condenação, tortura e morte consegue abrir a mente deles. “Os discípulos estavam espantados, e aqueles que iam atrás estavam com medo” (Mc 10,32). Um Deus despojado de poder não encontra lugar na ideologia deles. Eles não conseguem abandonar a ideia de que, apesar de tudo, Jesus seria vitorioso. A rejeição e o serviço seriam apenas uma etapa breve e passageira...
Mas o pior é que os discípulos alimentam a ambição de partilhar com Jesus as honras e benesses de uma esperada e fantasiosa vitória. “Quando estiveres na glória, deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda.” A indignação dos outros dez discípulos contra os irmãos Tiago e João revela que todos eles têm a mesma ambição. Eles não conseguem ver a caminhada a Jerusalém senão como uma marcha de subida ao poder. Não imaginam que à esquerda e à direita do mestre crucificado estariam dois ativistas rebeldes que sequer participavam do grupo dos discípulos...
O pedido explícito dos filhos de Zebedeu e a ambição oculta de todos os demais discípulos aborrecem Jesus. Ele tem a impressão de estar fracassando na missão de ensinar e educar. Por isso, Jesus fala com uma certa amargura: “Vocês não sabem o que estão pedindo. Por acaso vocês podem beber o cálice que eu vou beber? Podem ser batizados com o batismo que eu vou ser batizado?”  Mas nem mesmo este questionamento, que coloca os discípulos cara a cara com o martírio, é capaz de tirá-los do sonho de poder: eles respondem mentindo. E a Jesus só lhe resta falar com ironia...
Quando Jesus ensina que, em oposição ao que costumeiramente vemos e cremos, quem quiser ser grande deve tornar-se o servo, e quem quiser ser o primeiro deve ocupar o último lugar, não está falando de um certo sentimento de humildade, bem ao gosto dos prepotentes. O que ele pede é que nos situemos ao lado dos últimos e aceitemos ser considerados um nada, como as crianças e escravos, sem que isso nos cause qualquer perturbação. A autêntica humildade é o reconhecimento da verdade sobre nós mesmos, pois quem se considera superior ou inferior aos outros sem sê-lo tem uma falsa imagem de si...
Mas ser como criança e assumir a postura de servo não tem nada a ver com ingenuidade, imaturidade ou autodesprezo. O que Jesus propõe como valor é a sinceridade, a confiança radical, a liberdade frente às preocupações, a capacidade de maravilhar-se e alegrar-se com as surpresas da vida, a aceitação alegre da minoridade. A figura do Servo realizada radicalmente por Jesus tem pouco da passividade do cordeiro e muito de ativa profecia e de corajoso martírio. Ocupar o último lugar rima com a proclamação da dignidade dos pequenos e dos últimos e soa como incômoda profecia.
Fixemos nosso olhar em Jesus de Nazaré. Ele não desconhece nossos limites e a falência dos nossos intentos e, por isso, humano que é, se compadece das nossas fraquezas (cf. Hb 4,14-16). Sendo profeta do Reino e Servo dos últimos, Jesus não guarda sua própria vida como um bem precioso, mas a esbanja inteiramente para pagar nossa liberdade. E é aqui que se esconde o segredo da sua fecundidade: como diz o profeta Isaías, é porque entrega sua vida e carrega os crimes dos outros que ele prolonga sua existência, e seu rosto adquire o brilho glorioso de uma verdade que liberta.
Jesus de Nazaré, Servo perseguido, Irmão amado e amável! Que teu amor esteja sobre nós, como em ti está nossa esperança. Tu és digno de crédito, porque vens ao nosso encontro em nossa humana carne. Assim, podemos aproximarmo-nos de ti com plena confiança. Mesmo conhecendo o barro do qual somos feitos e os sonhos humanos que nos tiram o sono, envia-nos como teus missionários. Ajuda-nos a proclamar com a vida e com a palavra a dignidade de todo humano ser e a nobreza de quem se faz servidor. E que nada nem ninguém nos intimide e faça desistir da urgente e dura luta pela democracia. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Profeta Isaías 53,10-11 * Salmo 32 (33) * Carta aos Hebreus 4,14-16 * Evangelho de São Marcos 10,35-45)

terça-feira, 16 de outubro de 2018

110 anos da morte do Pe. Berthier


Sinais de santidade do Padre João Berthier ms

Hoje recordamos os 110 anos da páscoa no Pe. João Berthier. Já por ocasião da morte do Fundador, falava-se abertamente da sua fama de santidade. “Nós o vimos sempre como um santo, um homem de Deus”, diziam muitos dos seus discípulos. A mesma convicção era expressa pelo povo de Grave e por alguns hierarcas da Igreja, entre os quais o Cardeal Rampolla, e Bispo de Bois-le-Duc (em cuja diocese pertencia Grave), o vigário apostólico na China, um bispo greco-católico na Líbia, e vários outros. No período que vai da sua morte à abertura do processo de beatificação (1908-1950) essa fama só fez crescer. Muita gente visitava sua tumba para pedir sua intercessão, novenas eram rezadas por ele, e diversas curas foram atribuídas à sua intercessão. Em 20 anos (1930-1950), o Governo Geral recebeu mais de 160 cartas testemunhando graças e milagres obtidos pela intercessão do Pe. Berthier: curas, conversões pessoais, reconciliação familiar, conversões, decisões vocacionais, etc.

Uma fé profunda e ativa
Tudo na vida do Pe. Berthier era iluminado e sustentado pela perspectiva da fé. Homem de Deus, ele vivia e trabalhava por Deus e sua glória. Sem uma fé robusta ele não teria ousado tanto. Segundo seus contemporâneos, ele demonstrava uma fé ardente e profunda, e isso era notável especialmente na convicção com que falava e pregava. Após participar de um momento de formação guiada pelo Pe. Berthier, um professo Saletino testemunhava: “Quando ele nos falava, eu sentia que o homem velho agonizava em mim...”
Esta fé profunda e ativa se manifestava também na sua adesão firme à fé e aos ensinamentos da Igreja. O ‘sentire cum ecclesia’ era o dinamismo intrínseco da sua vida. “Todos os dias ele repetia que nós deveríamos assimilar a doutrina da Igreja, da Escritura e dos Santos Padres”, testemunha um dos seus discípulos. E isso o nosso Fundador demonstrou tanto na sua pregação como nos inúmeros livros que escreveu, alguns com grande divulgação e penetração popular.
Essa fé jorrava da sua profunda união com Deus e sua vontade, de um espírito de oração e da permanente busca da conversão pessoal. “Quando ele rezava, era como se tivesse morrido para o mundo que o circundava”, testemunha um discípulo. Era como se estivesse preso pelo amor, e isso era visível nos seus gestos e em todo seu ser, testemunha outro. “Quando ele rezava na capela, era como se estivesse mergulhado em Deus, e isso nós não esqueceremos jamais.” Além disso, segundo vários testemunhos, ele via Deus na natureza, especialmente nas flores e ervas...

Uma esperança serena e inspiradora
Para o Padre Berthier, a virtude da esperança está estreitamente relacionada com a união mística com Deus, a comunhão plena com o Mistério trinitário, o céu. Este pensamento e esta convicção se mostram de modo assaz vivo quando ele falava, serenamente, da morte que se aproximava, e, mais ainda, na sua inabalável confiança na Providência de Deus. O Pároco de Grave chamava o Padre Berthier de “homem da Província”.
Sua aventura como Fundador, ao iniciar sua obra com mais de 50 anos e doente, é a prova mais contundente da sua confiança da Divina Providência. O bispo Dom Paulot não hesita em afirmar: “A coragem que ele demonstrou numa hora avançada da sua vida, sem o mínimo de recursos e num país estrangeiro, comprovam uma assistência extraordinária da Providência.” E isso sem falar no enfrentamento das diversas dificuldades que o esperavam nos primeiros anos da Fundação. Tudo era tão primitivo, limitado e difícil que ele não poderia ter feito nada sem a ajuda de Deus, testemunha um formando.
E o que dizer da dificuldade causada pela demora na aprovação do Instituto pela Santa Sé, consequência de falta de clareza e de várias incompreensões no interior da Igreja? “Se isso é coisa de Deus, dizia ele, Deus mesmo proverá...” “Contra toda esperança humana, ele tinha esperança de que sua iniciativa se desenvolveria”, diz uma testemunha. “Quanto maiores são as dificuldades que enfrentamos, mais devemos nos convencer de que esta Obra é inspirada por Deus”, repetia ele.
Dessa confiança inabalável em Deus brotava a calma e a serenidade que marcaram a vida do Padre Berthier. “Deus nos tem sempre ajudado, e precisamos crer que ele continuará nos ajudando”, dizia ele aos discípulos. “Ele estava sempre tranquilo. Quando um vocacionado deixava a casa, lágrimas rolavam no rosto dele, o que demonstra que ele sofria interiormente. Mas ele se mantinha calmo e não dizia nada. Mesmo diante das diversas desistências, às vezes de turmas inteiras, ele jamais se queixava. Apenas dizia: “Que a vontade de Deus seja feita.” Mesmo quando estava enfermo ou contrariado, ele mantinha a gravidade, a bondade e a alegria, diz uma testemunha.
Itacir Brassiani msf

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

O Evangelho dominical - 14.10.2018


COM JESUS NO MEIO DA CRISE

Antes de se pôr a caminho, um desconhecido aproxima-se de Jesus a correr. Ao que parece tem pressa de resolver o seu problema: Que devo fazer para herdar a vida eterna?” Não o preocupam os problemas desta vida. É rico. Tem tudo resolvido.
Jesus coloca perante a Lei de Moisés. Curiosamente, não o recorda os dez mandamentos, mas só os que proíbem de atuar contra o próximo. O jovem é um homem bom, observante fiel da religião judia: “Tudo isso tenho cumprido desde jovem”.
Jesus olha-o com carinho. É admirável a vida de uma pessoa que não fez mal a ninguém. Jesus quer atrai-lo agora para que colabore com Ele no Seu projeto de fazer um mundo mais humano, e faz-lhe uma proposta surpreendente: Uma coisa te falta: anda, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres... e depois vem e segue-me”.
O rico possui muitas coisas, mas falta-lhe o único que permite seguir Jesus de verdade. É bom, mas vive apegado ao seu dinheiro. Jesus pede-lhe que renuncie à sua riqueza e a coloque ao serviço dos pobres. Só partilhando o que é seu com os necessitados poderá seguir Jesus colaborando no Seu projeto.
O homem sente-se incapaz. Necessita de bem-estar. Não tem forças para viver sem a sua riqueza. O seu dinheiro está acima de tudo. Renuncia a seguir a Jesus. Tinha vindo a correr entusiasmado para Ele. Agora afasta-se triste. Não conhecerá nunca a alegria de colaborar com Jesus.
A crise econômica convida-nos a dar passos para uma vida mais sóbria, para partilhar com os necessitados o que temos e simplesmente não necessitamos para viver com dignidade. Temos que nos fazer perguntas muito concretas se queremos seguir Jesus nestes momentos.
O primeiro é rever a nossa relação com o dinheiro: que fazer com o nosso dinheiro? Para que poupar? Em que investir? Com quem partilhar o que não necessitamos? Logo, rever o nosso consumo para o fazer mais responsável e menos compulsivo e supérfluo: O que compramos? Onde compramos? Para que compramos? A quem podemos ajudar a comprar o que necessitam?
São perguntas que temos que nos fazer no fundo da nossa consciência e também nas nossas famílias, comunidades cristãs e instituições da Igreja. Não faremos gestos heroicos, mas, se damos pequenos passos nessa direção, conheceremos a alegria de seguir Jesus contribuindo para fazer a crise de alguns um pouco mais humana e leve. Se não é assim, iremos sentir-nos bons cristãos, mas à nossa religião faltará alegria.
José Antonio Pagola
Tradução de Antonio Manuel Álvarez Perez

terça-feira, 9 de outubro de 2018

ANO B – VIGÉSIMO-OITAVO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 15.10.2018


Partilhar os bens para seguir Jesus com mais liberdade.
A fé é uma caminhada, como o é também nossa eterna luta por um mundo melhor. É uma caminhada a pé e, por isso, quanto menos bagagem, melhor. A estrada do seguimento de Jesus, um caminho que conduz à realização mais profunda que poderíamos desejar, tem seu preço. Mas o caminho que nos leva ao Reino de Deus tem seu próprio pedágio, e quem descobre e assume sua própria missão no mundo precisa evitar a omissão e jamais pedir demissão. Longe de nos afastar das dores, tensões e buscas da história, a fé nos leva ao seu próprio coração. E isso pede de nós lucidez, coragem e generosidade.
O personagem anônimo apresentado pelo evangelho de hoje é paradigmático. Aparentemente não lhe falta fervor religioso: corre ao encontro de Jesus, ajoelha-se respeitosamente diante dele, chama-o de bom mestre. Mas Jesus parece querer jogar um balde de água fria no fervor superficial e no orgulho oculto daquele homem. “Só Deus é bom, e ninguém mais.” Depois, remete ao conhecido caminho dos mandamentos: cita cinco sinais que proíbem passagens perigosas e um que mostra a direção obrigatória. O candidato a discípulo responde, muito seguro de si: “Mestre, desde jovem tenho observado todas essas coisas.” Refratário às estradas, ele frequentara apenas os genuflexórios!
Para este homem piedoso e rico, a fé não é um caminho a ser percorrido, mas um porto seguro e já alcançado, uma aquisição garantida pela moeda da piedade superficial e das leis mesquinhas, centrada nos próprios méritos e indiferente à sorte dos outros. Nem mesmo a referência que Jesus faz ao mandamento de não roubar consegue inquietá-lo. É a típica pessoa que tem a consciência absolutamente tranquila, imperturbável. Seu único desejo é ser reconhecido e aplaudido como bom e irrepreensível. Mas Jesus entra como um terremoto no tranquilo status deste postulante à santidade.
O amor de Jesus por este homem que parece tão correto e piedoso não o impede de perceber nele uma grande ausência, uma lacuna: “Falta só uma coisa para você fazer: vá, venda tudo, dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu. Depois, venha e siga-me.” Para Jesus, as práticas de piedade e o cumprimento dos mandamentos não atingem sua meta enquanto não nos abrem à partilha e à solidariedade e não nos colocam livres e nus no caminho do discipulado. Em outras palavras, a questão que Jesus coloca é a seguinte: qual é teu verdadeiro tesouro? Em que puseste tua confiança?
A reação do homem aparentemente exemplar revela o que ele considerava realmente importante: o reconhecimento público como alguém perfeito e superior ao comuns dos mortais; o capital que ele havia acumulado e que lhe conferia um poder nada desprezível numa Palestina espoliada. Pedindo-lhe que venda seus bens, Jesus não está propondo a pobreza como tal, como se lhe agradasse um estilo de vida miserável. Jesus está pedindo que os bens cumpram sua finalidade legítima: atender solidariamente as necessidades das pessoas humanas, e nada mais.
Diante das palavras de Jesus, o homem fica abatido e vai embora cheio de tristeza, porque é muito rico. Seu desejo de uma vida humanamente madura e profunda não é tão forte quanto seu amor pelos bens que acumulo. Essa sua atitude faz Jesus murmurar desconsolado: “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!” E acrescenta, para escândalo dos discípulos: “É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus!” E não adianta querer superar este escândalo diminuindo o tamanho do camelo ou aumentando as dimensões do buraco da agulha...
Apego às riquezas e seguimento de Jesus Cristo não podem andar de mãos dadas. Quando colocamos nossa segurança nas bens, parece-nos difícil empreender travessias. A casa das nossas honras e conquistas nos parece mais segura, e acabamos pensando que os pobres devem sair da miséria com suas próprias forças e meios, cumprir suas obrigações e deixar de exigir direitos. Vender os bens e dar o dinheiro aos pobres é apenas uma etapa, e prepara a opção decisiva: seguir Jesus no enfrentamento das armas ideológicas da morte, na missão de em tudo e sempre amar e servir. “Depois, venha e siga-me...”
Jesus de Nazaré, missionário enviado pelo Pai para nos conduzir à vida plena! Dá-nos uma mente sábia, que aprecie mais a vida que os bens e valorize mais a liberdade que os prêmios das loterias e cargos políticos. Desperta em nossas comunidades a capacidade de ler responsavelmente a história, de identificar nela os problemas, aspirações e esperanças dos pobres e oprimidos. Suscita e sustenta na tua Igreja a coragem e a liberdade feminina de Teresa de Ávila, o testemunho martirial de João Bosco Penido Burnier e o sonho missionário do Pe. Berthier. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Livro da Sabedoria 7,7-11 * Salmo 89 (90) * Carta aos Hebreus 4,12-13 * Evangelho de S. Marcos 10,17-30)

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

O Evangelho dominical - 07.10.2018


CONTRA O PODER DO HOMEM

Os fariseus colocam a Jesus uma pregunta para o pôr à prova. Desta vez não é uma questão sem importância, mas um fato que faz sofrer muito as mulheres da Galileia e é motivo de vivas discussões entre os seguidores de diversas escolas rabínicas: “É lícito ao marido separar-se da sua mulher?”
Não se trata do divórcio moderno que conhecemos hoje, mas da situação em que vivia a mulher judia dentro de um matrimônio controlado absolutamente pelo homem. Segundo a Lei de Moisés, o marido podia quebrar o contrato matrimonial e expulsar de casa a sua esposa. A mulher, pelo contrário, submetida em tudo ao homem, não podia fazer o mesmo.
A resposta de Jesus surpreende todos. Ele não entra nas discussões dos rabinos. Convida a descobrir o projeto original de Deus, que está acima das leis e normas. Segundo Jesus, esta lei machista impôs-se no povo judeu pela dureza de coração dos homens, que controlam as mulheres e as submetem à sua vontade.
Jesus aprofunda o mistério original do ser humano. Deus criou-os homem e mulher. Os dois foram criados em igualdade. Deus não criou o homem com poder sobre a mulher. Não criou a mulher submetida ao homem. Entre homens e mulheres não tem de haver domínio por parte de ninguém.
A partir desta estrutura original do ser humano, Jesus oferece uma visão do matrimônio que vai mais além de tudo o que é estabelecido pela Lei. Mulheres e homens se unirão para “ser uma só carne” e iniciar uma vida partilhada numa mútua entrega, sem imposição nem submissão.
Este projeto matrimonial é para Jesus a suprema expressão do amor humano. O homem não tem direito algum de controlar a mulher como se fosse o seu dono. A mulher não há de aceitar viver submetida ao homem. É Deus mesmo quem os atrai a viver unidos por um amor livre e gratuito. Jesus conclui de forma rotunda: “O que Deus uniu que não o separe o homem”.
Com esta posição, Jesus destrói pela raiz o fundamento do patriarcado em todas as suas formas de controle, submissão e imposição do homem sobre a mulher. Não só no matrimônio, mas em qualquer instituição civil ou religiosa.
Temos de escutar a mensagem de Jesus. Não é possível abrir caminhos para o reino de Deus e da sua justiça sem lutar ativamente contra o patriarcado. Quando reagiremos na Igreja com energia evangélica contra tanto abuso, violência e agressão do homem sobre a mulher? Quando defenderemos a mulher da “dureza de coração” dos homens?
José Antonio Pagola
Tradução de Antonio Manuel Álvarez Perez