quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

ANO C | TEMPO COMUM | QUARTO DOMINGO | 03.02.2019


Se calarem a voz dos profetas, a lama e os cadáveres falarão!
A profecia nasce da intimidade com a Palavra de Deus. Quem acolhe e escuta a Palavra sente a voz de Deus queimar como brasa e não consegue ficar indiferente diante das mentiras e disfarces que encobrem tragédias previsíveis e culpáveis, nem das práticas de exploração, opressão e discriminação. O próprio Jesus confirma isso: depois de ler e acolher a palavra do profeta Isaías, se propõe a cumpri-la fielmente, esquecendo-se dos próprios parentes e compatriotas e priorizando as pessoas mais pobres necessitadas. Rompendo com as expectativas do seu povo e da sua família, Jesus terá que enfrentar a oposição e a perseguição.
A profecia é essencial na vida cristã. A Igreja é uma comunidade profética, sacerdotal e de serviço à vida. Mas ninguém é instituído profeta, nem aprende este ofício num seminário ou numa escola de teologia. A profecia é dom do Espírito, dom que recebemos com temor e tremor. Ela nasce e se desenvolve no ventre de uma comunidade que se coloca à escuta da Palavra de Deus, pungente no clamor de todas as vítimas. Quem não se fecha à voz de um Deus que fala e interpela, sente a Palavra queimar suas entranhas e não consegue viver indiferente à causa de Deus, que é a causa dos pobres, das vítimas, dos excluídos.
Uma comunidade que ouve e medita a Palavra acaba também avançando e amadurecendo no serviço à Boa Notícia de Deus. Vemos isto na experiência de Jeremias. Ele tem a sensação de que a Palavra que o chama é anterior ao seu próprio nascimento. “Antes de formar-te no seio de tua mãe, eu já contava contigo. Antes de saíres do ventre, eu te consagrei e fiz de ti profeta para as nações.” É isto que percebemos também no próprio itinerário de Jesus: depois de ler e acolher a palavra do profeta Isaías na sinagoga de Nazaré, ele conecta irreversivelmente a sua vida com a causa dos oprimidos. E propõe este caminho aos seus discípulos.
Um olhar atento aos evangelhos nos leva a perceber como, por causa de seu radicalismo profético, Jesus foi experimentando uma progressiva marginalização. Houve um momento em que sua fama se espalhava por toda a região e todos o elogiavam (Lc 4,14-15). Enquanto lia as escrituras, todos tinham os olhos fixos nele e testemunhavam a seu favor, maravilhados com as palavras cheias de graça que saíam da sua boca (Lc 4,22). Mas o entusiasmo logo se transformou em fúria e desejo de eliminá-lo (Lc 4,28-30), quando ousou questionar a ideologia do privilégio dos judeus em relação aos pagãos.  E nisso Elias e Eliseu lhe serviram de paradigma.
Elias privilegiou uma viúva menosprezada porque era estrangeira. Eliseu curou um pagão, que os judeus situavam abaixo dos cães. E Jesus defendeu ardorosamente a dignidade das mulheres, dos pecadores, dos pobres, dos doentes, dos migrantes estrangeiros. Esse é o caminho da profecia, que no Brasil de hoje passa pela defesa do território dos indígenas e quilombolas, pela reivindicação de políticas públicas em favor dos pobres, pela defesa da integridade dos encarcerados, pela denúncia da ação criminosa das mineradoras que privilegiam o lucro, devastam o ambiente e eliminam vidas. Escutemos o grito da lama e dos cadáveres!
Mas a profecia tem seu preço, e tanto a pessoa como a instituição que a assumem devem estar dispostas a pagá-lo. Jesus recorre a um provérbio que diz que nenhum profeta bem recebido em sua própria terra, pois a expectativa sempre é que ele atue em benefício dos seus pares. Mas este é apenas um lado da medalha. O outro lado é o seguinte: nenhum profeta que sente a compaixão de Deus queimar suas entranhas consegue permanecer preso aos estreitos muros da raça, da nação, da religião ou de qualquer instituição. O profeta é um incansável transgressor de fronteiras, um incurável abridor de brechas nos muros da hipocrisia.
É na fragilidade que somos fortes, diz Paulo. Escrevendo aos cristãos de Corinto, ele chama a atenção para a centralidade do amor e a relatividade de todas as funções e instituições. Se a profecia deslizar para o discurso enraivecido, incoerente e acusatório, será pouco mais que nada. O que dá consistência e verdade à profecia é o amor, este dinamismo que reconhece a dignidade do outro como outro e o serve em suas necessidades. A profecia que brota do amor, orienta-se pelo amor e conduz a um amor que não reconhece fronteiras nem méritos. E o amor está acima de todo conhecimento e até acima da fé. E, mais ainda, das instituições!
Jesus de Nazaré, profeta de um mundo sem fronteiras, amigo dos pequenos, dos oprimidos e das vítimas! Abre nossos ouvidos à tua Palavra. Suscita em nós a resposta breve e envolvente: “Eis-me aqui, Senhor!” Ajuda-nos a acolher e a continuar a missão profética que nos confiaste ainda no seio materno, apesar das nossas fraquezas. Abre nossos olhos e nossas mãos ao amplo e criativo trabalho de construir outro mundo, um mundo que desconhece e os estreitos muros das culturas, nações e religiões. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Profecia de Jeremias 1,4-19 | Salmo 70 (71) 1ª. Carta de Paulo aos Coríntios 12,31-13,13 | Evangelho de São Lucas 4,21-30

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

O Evangelho dominical - 27.01.2019


PROFETA

A cena é de grande importância para conhecer Jesus e entender bem a sua missão. De acordo com o relato de Lucas, nesta aldeia quase desconhecida de todos, Jesus fará sua apresentação como um profeta de Deus e irá expor o seu programa aplicando a si mesmo um texto do profeta Isaías.
Depois de ler o texto, Jesus comenta com uma frase: “Hoje cumpre-se esta Escritura que acabais de ouvir. De acordo com Lucas, as pessoas “tinham os olhos fixos Nele. A atenção de todos, passa do texto lido para a pessoa de Jesus. O que podemos descobrir hoje se fixarmos os nossos olhos Nele?
Jesus atua movido pelo Espírito de Deus. Toda a vida de Jesus é impelida, conduzida e guiada pelo encorajamento, força e amor de Deus. Acreditar na divindade de Jesus não é confessar teoricamente uma fórmula dogmática elaborada pelos Concílios. É ir descobrindo de forma concreta nas Suas palavras e nos Seus gestos, na Sua ternura e no Seu fogo, o mistério último da vida que os crentes chamam Deus.
Jesus é profeta de Deus. Não foi ungido com azeite de oliva como se ungia os reis para lhes transmitir o poder do governo ou aos sumos-sacerdotes para investi-los de poder sacro. Foi ungido pelo Espírito de Deus. Não vem governar ou reger. É profeta de Deus dedicado a libertar a vida. Só O podemos seguir se aprendermos a viver com o Seu espírito profético.
Jesus é Boa Nova para os pobres. A Sua atuação é Boa Nova para a classe social mais marginalizada e desamparada: aqueles que mais precisam de ouvir algo bom; os humilhados e esquecidos por todos. Começamos a ser parecidos com Jesus quando a nossa vida, a nossas ações e amor solidário podem ser captados pelos pobres como algo bom.
Jesus vive dedicado à libertação. Entregue à libertação do ser humano de todos os tipos de escravidão. As pessoas sentem-No como o libertador do sofrimento, da opressão e do abuso; os cegos veem-No como uma luz que liberta do absurdo e do desespero; os pecadores recebem-No como graça e perdão. Seguimos Jesus quando nos liberta de tudo o que nos escraviza, nos torna pequenos ou nos desumaniza. Então acreditamos Nele como Salvador que nos encaminha para a Vida definitiva.
José Antônio Pagola.
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

ANO C | TEMPO COMUM | TERCEIRO DOMINGO | 27.01.2019


Que o Evangelho de Jesus ressoe em meio a tantas más notícias!
Na pessoa de Jesus Cristo, Espírito e Palavra coincidem com exatidão, sem falta e sem sobra. Pregação e ação, promessa e presença se identificam. Depois do batismo, conduzido pelo Espírito, Jesus vai ao deserto para enfrentar e vencer as tentações, deixa o deserto e se se insere nas tradições e lutas do seu povo. Ele inicia sua vida pública nos povoados e sinagogas da Galileia. “Ele ensinava nas sinagogas e todos o elogiavam.” Sua ação é como de um mestre e reformador eloquente e experimentado. Mas ele não pretende simplesmente negar as instituições da sua religião e começar tudo de novo.
Jesus frequenta a sinagoga junto com seu povo, e isso é um hábito, e não algo que faz esporadicamente. O evangelista Lucas diz que este era um costume de Jesus. Isso revela uma atitude de discípulo. Como qualquer pessoa que se põe nos caminhos de Deus, Jesus necessita de um horizonte e de uma referência para sua vida e sua missão. Sedento de utopias humanas e faminto das promessas de Deus, ele busca orientação na Palavra de Deus. Num sábado, procura diligentemente e encontra a passagem na qual o profeta Isaías tenta suscitar a esperança num povo radicalmente desesperançado.
Como Esdras fez no passado, Jesus lê a palavra que Deus suscitara mediante o profeta “para todos os homens e mulheres e todos os que tinham uso da razão”. Mas a lê também para si mesmo, buscando nela uma orientação para melhor entender sua missão. “Anunciar a Boa Notícia aos pobres; para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; libertar os oprimidos, e para proclamar um ano da graça do Senhor.” O Espírito e a Palavra enviam seus ungidos a uma missão historicamente engajada e relevante, sempre em favor dos últimos. Estes não são indiferentes ou estranhos ao povo de Deus.
Não resisto à tentação de comparar o discurso inaugural de Jesus com o discurso de campanha e de posse daquele que, com o nome de Messias, assumiu a presidência da república do Brasil. Imaginem Jesus anunciando que veio para que todos possam ter sua arma, para impedir que os indígenas tenham sequer um centímetro de terra demarcada, para matar os 50 mil que a ditadura não matou, para promover uma guerra sanadora, para que os últimos continuem no fim da fila... O que me parece inacreditável é que esse senhor diz agir guiado por sua fé, e é incensado por multidões que professam publicamente sua fé em Jesus Cristo!
Jesus desenvolveu sua missão evangelizadora num tempo em que a gratuidade não estava em alta. Os invasores romanos exigiam tributos, mesmo às custas da miséria do povo, e os sacerdotes do templo cobravam a reparação ritual até das faltas mais irrelevantes. Para o judaísmo, pobres, presos, cegos e oprimidos eram pecadores e, por isso, devedores, “vagabundos”. Para os líderes religiosos, os pecados e impurezas do povo deveriam ser pagos sem descontos. A pregação do perdão pelo arrependimento era coisa muito recente e suspeita, sustentada pelo profeta que batizava nas margens do rio e poucos outros...
Jesus vai à Sinagoga para resgatar uma esperança popular enraizada na própria escritura e para questionar a pregação oficial. Ele entende que sua missão é anunciar que chegou o tempo do jubileu, do cancelamento de todas as dívidas, da remissão de todos os pecados: enfim, um tempo de misericórdia, e não de sacrifícios. Para Jesus, Deus não é nem delegado de polícia, nem agente do Serviço de Proteção ao Crédito, um capitão do exército. Seu anúncio é um Evangelho é, literalmente, uma boa notícia. Por isso, não pode ser reduzido a uma pesada e sofisticada doutrina moral, imposta a um povo já cansado e abatido.
A ‘homilia’ que Jesus fez sobre a profecia que acabara de ler foi breve e concreta. “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura, que vocês acabam de ouvir.” A comunidade, que estava como que suspensa diante da proclamação da Palavra e tinha os olhos fixos no jovem pregador, foi por ele chamada ao presente concreto. Como ouvinte habitual da Palavra de Deus, Jesus percebe que o tempo está maduro e que Deus se dirige a ele. O filho amado é também o profeta e reformador esperado. Quando a profecia não se realiza no engajamento nas lutas e movimentos de libertação, é apenas meia-palavra.
Jesus de Nazaré, ouvinte da Palavra do pai e Palavra que se faz carne para que toda carne se torne Palavra: ensina-nos a levar sério o teu Evangelho. Com Paulo, teu apaixonado missionário, descobrimos que teu corpo é formado de muitos e diversos membros, unificados por teu Espírito. Ajuda-nos a reconhecer nos pobres membros que precisam ouvir boas notícias; nos oprimidos, membros que necessitam da tua liberdade; nas pessoas dependentes e endividadas, gente que tem o direito à gratuidade. Assim seja! Amém!
            Itacir Brassiani msf
                     Livro de Neemias | Salmo 18B (19B)
1ª. Carta de Paulo aos Coríntios 12,12-30| Evangelho de São Lucas 1,1-4.4,14-21

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

O Evangelho dominical - 20.01.2019


UM GESTO POUCO RELIGIOSO

Houve um casamento na Galileia. Assim começa este relato em que nos é dito algo inesperado e surpreendente. A primeira intervenção pública de Jesus, o Mensageiro de Deus, não tem nada de religioso. Não acontece num local sagrado. Jesus inaugura a Sua atividade profética salvando uma festa de casamento que poderia ter terminado muito mal.
Naquelas aldeias pobres da Galileia, a festa de casamento era a mais apreciada por todos. Durante vários dias, familiares e amigos acompanhavam os noivos comendo e bebendo, e João diz-nos que foi no meio de um desses casamentos que Jesus deu o Seu primeiro sinal, o que nos oferece a chave para compreender todas as Suas ações e o profundo significado da Sua missão salvadora.
O evangelista João não fala de milagres. Aos gestos surpreendentes que realiza, Jesus chama-lhes sempre sinais. Ele não quer que os seus leitores fiquem naquilo que pode haver de prodigioso na sua ação. Convida-nos a descobrir o seu significado mais profundo. Para isso, ele oferece-nos algumas pistas de natureza simbólica. Vejamos uma.
A mãe de Jesus, atenta aos detalhes da festa, percebe que está faltando vinho, e conta ao filho. Talvez os noivos, de condição humilde, tenham sido surpreendidos pelo grande número de convidados que apareceram. Maria está preocupada. A festa está em perigo. Como pode faltar vinho numa festa de casamento? Ela confia em Jesus.
Entre os camponeses da Galileia o vinho era um símbolo muito conhecido de alegria e amor. Todos sabiam disso. Se na vida falta a alegria e falta o amor, como pode ser a convivência? Maria não se engana. Jesus intervém para salvar a festa, proporcionando vinho abundante e de excelente qualidade.
Este gesto de Jesus ajuda-nos a compreender a orientação de toda a Sua vida e o conteúdo fundamental do seu projeto do reino de Deus. Enquanto os líderes religiosos e os mestres da lei se preocupam com a religião, Jesus se dedica a tornar a vida das pessoas mais humana e suportável.
Os evangelhos apresentam Jesus focado não na religião e sim na vida. Ele não vem só para pessoas religiosas e piedosas. Ele se interessa também para aqueles que vivem desapontados pela religião, mas sentem a necessidade de viver de uma maneira mais digna e feliz. Por quê? Porque Jesus transmite a fé num Deus em quem se pode confiar e com quem se pode viver com alegria, e porque Ele atrai para uma vida mais generosa, movida por um amor solidário.
José Antônio Pagola.
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

ANO C | TEMPO COMUM | SEGUNDO DOMINGO| 20.01.2019


Jesus espera de nós mais que práticas piedosas e respeito às leis!
Depois do batismo, Jesus não saiu de férias. O batismo marcou o amadurecimento da sua consciência messiânica e o início da missão de libertar as pessoas e povos oprimidos. Então, Jesus deixou a Judéia e voltou para a sua região periférica e, em Caná, na Galileia, realizou aquele que, segundo o evangelista João, foi o primeiro sinal da chegada do Reino de Deus: a transformação da carência em abundância, da tristeza em festa, da água em vinho bom e abundante. Jesus mostra que Deus se importa com as necessidades do seu povo e faz com ele uma aliança definitiva, e o vinho expressa a alegria dos novos tempos que se iniciam.
É mais que tempo de perceber e de dizer com clareza e coragem que o modelo de vida propagandeado pelo capitalismo ocidental fracassou, que o vinho acabou no meio da festa, que as talhas de pedra estão frias, pesadas e vazias. Precisamos buscar novos caminhos, inventar novas regras, sonhar novos mundos. É necessário também superar a tentação de buscar a saída para trás, de ressuscitar tradicionalismos e autoritarismos mortos e embalsamados. Até o novo governo do Brasil parece definhar enquanto debuta. É tempo de abrir os ouvidos às vozes que há tempo vêm denunciando: ‘Eles não têm mais vinho...’
A saída não é fazer aquilo que o mercado está ditando ou aquilo que a cultura ocidental ensina há séculos. Não basta obedecer às vozes que mandam ‘faça alguma coisa!’ ou anunciam genericamente mudar “tudo isso daí”. Não basta manter a receita que produziu a tragédia. Por mais atraentes que sejam, as propostas que pedem armas e austeridade não trazem a marca do Reino! É preciso descobrir a orientação correta e fazer a coisa certa. E aqui entra de novo aquela lucidez que só o feminino resistente e ousado consegue preservar: ‘Façam o que Ele mandar!’ Eis a indicação: acolher a Palavra e seguir o caminho aberto por Jesus.
E Ele começa pedindo que mudemos o rumo e o conteúdo da nossa vida. As talhas velhas e pesadas não têm mais o que fazer com a purificação, até porque Deus não está interessado nestes ritos. Entre Deus e seus filhos e filhas não existe um muro alto e sólido, construído com blocos de leis e prescrições, ou com aço, como quer o ‘imperador do norte’. Deus ama, é essencialmente misericórdia, e nada pode aproximar-nos dele a não ser a prática do amor e da misericórdia. E para evitar sobrecargas inúteis, ele mesmo toma a iniciativa e nos assume como parceiros numa aliança indestrutível. E pede que façamos algo.
Como a Nicodemos, Jesus nos diz que precisamos nascer de novo, e isso supõe desaprender. Como à mulher samaritana, ele nos pede adoração em espírito e verdade, e isso significa derrubar os muros que separam povos e religiões. Como ao jovem André, ele pede que partilhemos os pães e peixes, para que as multidões tenham o alimento que necessitam e a dignidade inviolável. Aos canonistas e legalistas ele pede que acolham os pecadores e só atirem pedras quando e se eles mesmos não tiverem pecado. A todos ele ordena: ‘Amem-se uns aos outros como eu amei vocês.’ Nisso não há sequer sombra de meritocracia ou de “legítima defesa”.
Aderir a Jesus Cristo é entrar num caminho de permanente transformação. É verdade que existem pessoas – e até líderes religiosos – que, mesmo tendo provado a qualidade do vinho novo, não se dão conta da sua origem, e simplesmente continuam a cínica festa de uns poucos. Não percebem que a lei divide e exclui, que a aliança com os poderes é estéril e caduca, que a repetição de práticas de piedade não é suficiente, que mudar o rótulo e embelezar o pacote não muda o conteúdo da fé. Pobres mestres-salas, que estranham a transformação da água em vinho mas decidem que tudo deve continuar como antes.
Na Carta aos Coríntios, Paulo nos convida a celebrar a novidade e a diversidade desde sempre desejadas por Deus: diversidade de dons e serviços, de pessoas e funções, de Igrejas e culturas... Essa diversidade faz parte dos tempos da abundância, inaugurados por Jesus Cristo no casamento de Caná e expandidos pelo Espírito Santo. As capacidades são diferentes, mas o Espírito é o mesmo. Os serviços são diversos, mas o Senhor é o mesmo. As ações são múltiplas, mas o sujeito da atividade é sempre o mesmo Deus. O que ninguém pode esquecer é que todos somos chamados trabalhar para que a ninguém falte o vinho...
Jesus de Nazaré, conviva atento na festa de Caná, presença desejada em todas as festas da vida! Ajuda-nos a perceber a diferença entre as práticas de quem escuta tua Palavra e segue teus passos e a postura daqueles que continuam apostando nas leis e sistemas que discriminam. Dá-nos sabedoria para reconhecer os diferentes dons e iniciativas que procedem do mesmo espírito. E ajuda nossas comunidades a aprenderem de Maria a fazer tudo aquilo que Jesus pede, e não apenas o que as agrada ou convém. Assim seja! Amém!
                                                                                                    Itacir Brassiani msf
Profecia de Isaías 62,1-5 | Salmo 95 (96)
1ª. Carta de paulo aos Coríntios 12,4-11| Evangelho de São João 2,1-11

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

O Evangelho dominical - 13.01.2019

INICIAR A REAÇÃO

O Batista não permite que as pessoas o confundam com o Messias. Conhece os seus limites e reconhece-os. Há alguém mais forte e decisivo que ele. O único a quem o povo tem de receber. O motivo é claro. O Batista oferece-lhes um batismo de água. Somente Jesus, o Messias, os «batizará com o Espírito Santo e com fogo».
Na opinião de muitos observadores, o maior problema da Igreja hoje é a mediocridade espiritual. A Igreja não possui o vigor espiritual de que precisa para enfrentar os desafios do momento presente. Está se tornando cada vez mais óbvio. Precisamos ser batizados por Jesus com seu fogo e o seu Espírito.
Em muitos cristãos, cresce o medo a tudo o que possa levar-nos a uma renovação. Insiste-se muito na continuidade para conservar o passado, mas não nos preocupamos em escutar as chamadas do Espírito para preparar o futuro. Pouco a pouco, estamos ficando cegos para ler os sinais dos tempos.
Dá-se a primazia a certezas e crenças para fortalecer a fé e conseguir uma maior coesão eclesial face à sociedade moderna, mas, com frequência, não se cultiva a adesão viva a Jesus. Esquecemos que ele é mais forte que todos nós? A doutrina religiosa, quase sempre exposta com categorias pré-modernas, não toca os corações nem converte as nossas vidas.
Abandonado o alento renovador do Concílio, foi-se apagando a alegria em setores importantes do povo cristão, para dar lugar à resignação. De forma calada mas palpável vai crescendo o descontentamento e a separação entre a instituição eclesial e não poucos cristãos.
É urgente criar o mais rápido possível um clima mais amigável e cordial. Não é qualquer um que pode despertar no povo simples a ilusão perdida. Necessitamos de voltar às raízes da nossa fé. Colocar-nos em contato com o Evangelho. Alimentar-nos das palavras de Jesus que são espírito e vida.
Dentro de uns anos, as nossas comunidades cristãs serão muito pequenas. Em muitas paróquias já não haverá padres permanentemente. Por isso, é importante cuidar desde agora de um núcleo de crentes em redor do Evangelho. Eles manterão o Espírito de Jesus vivo entre nós. Tudo será mais humilde, mas também mais evangélico.
A nós é-nos pedido para iniciar já essa reação. O melhor que podemos deixar como herança às futuras gerações é um amor novo a Jesus e uma fé mais focada na sua pessoa e no seu projeto. O resto é mais secundário. Se viverem no Espírito de Jesus, encontrarão novos caminhos.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

ANO C | TEMPO DO NATAL | FESTA DO BATISMO DE JESUS| 13.01.2019


Jesus é elo da aliança que articula pessoas, povos e lutas!
O batismo faz parte da tradição cultural do nosso povo. Seu sentido original perde-se no tempo e na inconsciência, mas no batismo se esconde um valor antropológico muito precioso, embora nem sempre seja explicitado. Mais que um rito de passagem, o batismo é um rito de pertença a um povo, a uma causa. Numa sociedade que desarticula os vínculos e fragmenta a vida dos mais pobres, o batismo ainda representa a oportunidade de estabelecer algumas alianças de sobrevivência com vizinhos, compadres e comadres. E não deixa de ser um ato de fé na força da vida, sempre frágil e sujeita a reviravoltas.
No evangelho de hoje, Lucas registra que ‘todo povo foi batizado’, mas não oferece nenhuma descrição ou detalhe de um batismo especial de Jesus, nem informações sobre sua origem e identidade. Em apenas uma frase e dois versículos, dá por terminada a descrição do batismo de Jesus! O tempo no qual ocorre não é propriamente especial em relação ao batismo dos demais habitantes da região da Judéia que confessam seus pecados: o tempo e o lugar são os mesmos que reúnem os pecadores, e Jesus entra na fila, anonimamente. Ninguém vê nada de especial durante seu batismo, nem mesmo João Batista.
Mas, depois do batismo, estando Jesus recolhido em oração, o céu se abre e o Espírito Santo desce sobre ele em forma de pomba. No céu aberto ressoa uma voz: “Tu és meu filho amado; em ti encontro o meu agrado.” E nada mais. Nenhuma reação. Nenhuma aclamação ou comentário. Tudo transcorre como se fosse um fato absolutamente normal. Tanto que logo Jesus segue sozinho para o deserto, anônimo, firme na busca de luzes para entender mais profundamente sua identidade e sua missão. Tanto que sentimos a necessidade de continuar perguntando: o que o batismo praticado por João significava mesmo, e como Jesus o teria vivido?
O batismo de João assinalava o cancelamento dos débitos do povo frente ao judaísmo, desobrigava o fiel frente às estruturas do sistema judaico, representado pelos sacerdotes e encarnado no templo. Expressava essa liberdade, e também o desejo de endireitar as estradas, de preparar os caminhos para o encontro com Deus, e a expectativa de que algo novo estava por acontecer, estava batendo à porta. No batismo, Jesus entende que é o filho querido e ungido que se opõe aos poderosos da terra (cf. Sl 2), o agrado do Pai, o servo fiel que tira o pecado do mundo (cf. Is 42,1-7), o broto promissor na terra ressequida (cf. Is 11,1-2).
No batismo, Jesus também cresce na consciência de que uma nova criação está em gestação. Trata-se de um processo de alargamento da consciência, que antecede o próprio momento do batismo e prossegue depois dele. Ao participar de um rito que proclama o cancelamento dos pecados cobrados pelo templo, que torna o povo livre frente aos seus valores e leis discriminadoras, Jesus se descobre uma pessoa livre, uma espécie de ‘fora da lei’ do sistema judaico. Sua lealdade não é mais com o sistema religioso judaico, com nenhum ‘capitão’ prepotente, mas com Deus Pai. Não há mais judeu ou grego, homem ou mulher, escravo ou livre.
E é por aqui que começa a nova criação, simbolizada pelo céu aberto e pela descida da pomba, pois o pecado não é algo feito contra ou fora da lei, mas o cumprimento das leis que hierarquizam, discriminam e penalizam pessoas, movimentos e povos. Os doutores da lei e os sacerdotes pecavam porque cumpriam a lei nas suas minúcias e esqueciam a compaixão e a misericórdia. A nova sociedade e a nova criação começam exatamente com a renúncia a esta ordem velha, opressora e corruptora. Jesus enfrentará este sistema nas tentações que virão em seguida e durante toda a sua vida, e pagará um alto preço por tamanha ousadia.
No batismo de Jesus, o Espírito que desce ‘em forma corpórea, como pomba’ entra em cena para recordar o Espírito que pairava sobre as águas e presidia a primeira criação. Ele se faz presente em Jesus e, posteriormente, na comunidade, para que façam a passagem da imaturidade que limita e da escravidão que amedronta para a maioridade e a liberdade de filhos e filhas, nos quais o próprio Deus se reconhece e se compraz. Ele suscita testemunhas e sustenta a prática do bem e da justiça, tanto em Jesus como nos discípulos. Da força do Espírito emerge um povo livre e maduro, que vive no mundo para fazer o bem.
Jesus de Nazaré, filho amado do Pai, visita peregrina e benfazeja, irmão querido da humanidade! No dia em que recordamos teu batismo, te pedimos por tua Igreja: que ela não seja leal senão a ti e não procure agradar senão ao teu e nosso Pai. Sendo uma comunhão articulada de batizados, que ela se revele um ensaio geral da nova ordem, na qual as desigualdades são eliminadas e a dignidade de cada criatura é afirmada sem mas nem porém. E que seus filhos e filhas vivamos para fazer o bem, sem medo de capitães! Assim seja! Amém!
                                                                                                    Itacir Brassiani msf
Profecia de Isaías 42,1-7 | Salmo 28 (29)
Atos dos Apóstolos 10,34-38| Evangelho de São Lucas 3,15-22

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

ANO C | TEMPO DO NATAL | FESTA DA MANIFESTAÇÃO DO SENHOR | 06.01.2019


A violência e o medo não são exclusividade de Herodes!
Dentro do tempo litúrgico do Natal, sempre inspirador, hoje somos convidados a participar da manifestação de Jesus Cristo como caminho de salvação aberto a todos os povos. Em Jesus, todos as pessoas, grupos, povos e religiões são reconhecidos como legítimos herdeiros do Reino de Deus. Assim, Jesus Cristo n­ão é propriedade dos católicos, nem dos cristãos. O cristão verdadeiro é católico, aberto, universal, avesso a rotulações do tipo “é comunista, de esquerda”, “não passa de um refugiado”, é “evangélico, pentecostal”, “é pagão”. O encontro verdadeiro e profundo com Deus encarnado nos leva a mudar conceitos e rumos!
Paulo nos fala de um mistério até então desconhecido e finalmente a ele revelado: que todos os povos e religiões participam da mesma herança do Reino de Deus e são membros do corpo de Cristo em igual dignidade com os judeus. Com isso, Paulo derruba todos os muros que hierarquizam e separam, mas também atrai a desconfiança e a ira de muitos compatriotas. Em nome de Deus, o apóstolo das nações nega toda espécie de privilégio ou superioridade baseada em princípios religiosos. Na raiz da nossa fé está esta alegre descoberta da igualdade, sem privilégios. Mas como é difícil assimilar este aspecto da nossa fé!
O evangelho de hoje nos apresenta homens de outros pagos e diferentes crenças, que chegam a Jerusalém vindos do oriente, guiados por uma estrela. Eles batem às portas dos chefes políticos e dos líderes religiosos, comodamente instalados na capital, pedindo ajuda para decifrar os sinais e descobrir o caminho. Os escribas mostram que sabem, mas são incapazes de se mover. Herodes parece desejar saber das coisas, mas é assaltado pelo medo de perder o poder. Os magos aprendem e ensinam que Aquele que merece honra e reverência não costuma instalar-se nos palácios e templos, nem morar e demorar nas capitais...
Herodes aconselha aqueles peregrinos vindos do oriente a irem a Belém em busca de informações, mas eles caminham levando presentes, e não cadernos de anotações... A estrela-sinal cumpre seu papel transitório, mas, para esses buscadores de Deus, o sinal de que a humanidade tem um novo líder é o “menino deitado na manjedoura”. Os magos reconhecem a realeza de Jesus Menino e lhe oferecem ouro. Proclamam sua divindade oferecendo-lhe incenso. Prenunciam já sua humana morte oferecendo-lhe mirra. Mas eles não voltam pelo mesmo caminho, e o mesmo fato que faz a alegria deles provoca o medo de Herodes...
Este é o núcleo da fé que professamos: um Deus que se sente bem assumindo a carne humana e que, por amor solidário, não recusa a cruz. Como é possível que tenhamos nos afastado tão perigosamente disso? Como entender que as igrejas tenham transformado a estrebaria em palácio, os sábios estrangeiros em reis que barram migrantes, os pastores em imperadores sedentos de mais poder e domínio? Como é possível que tenhamos descafeinado a fé cristã, reduzindo-a a uma espécie de analgésico para acalmar as dores de consciência, ou, pior ainda, em mecanismo de sustentação de poderes despóticos?
Como é que certos setores do cristianismo, que multiplicam glórias e louvores públicos ao nome de Jesus, incriminam, ainda com mais força e publicidade, quem não comunga da sua estreita ideologia, quem não compartilha seus mesquinhos interesses e quem não professa sua surrada cartilha? Que misteriosa e tenebrosa cegueira tomou conta deles e os faz desejar a morte dos inimigos e perseguir índios, negros, migrantes e pobres? Que tipo de tolice tomou conta da mente e da fé dessa gente e a tornou incapaz de admitir a mentira dos mitos que engolem como a mais pura e íntegra verdade?
Observando a espécie de operação de guerra que se montou na capital federal para o início do mandato do presidente eleito, interrogo-me preocupado: será que o medo que tirava o sono de Herodes deixou Jerusalém, atravessou os mares e se instalou em Brasília? Será que o espírito assombrado e tenebroso do coronel Ustra, invocado e admirado pelo hoje presidente, está tomando o lugar da estrela de Belém e trazendo medo aos amantes da tortura? Outros são os caminhos da paz, outra é a segurança que o povo brasileiro necessita: respeito aos direitos e à dignidade, conquistados com lutas de anos e com sangue!
Dirigimo-nos a ti, Deus dos humilhados, Deus envolto em faixas, destino e refúgio de todos os que peregrinam nas estradas de um mundo desigual. Dá-nos palavras e sinais que guiem nossos passos inseguros no rumo certo. Não permite que nos detenhamos nos palácios que, geralmente, escondem tramas e prisões. Ajuda-nos a reconhecer tua presença na Belém de todos os homens e mulheres, e a ver a fé dos outros como caminhos que conduzem ao encontro contigo no coração das tuas amadas criaturas. Assim seja! Amém!
                                                                                                    Itacir Brassiani msf
Profecia de Isaías 60,1-6 | Salmo 71 (72)
Carta de São Paulo aos Efésios 3,2-6| Evangelho de São Mateus 12,1-12

O Evangelho dominical - 06.01.2019


UM RELATO DESCONCERTANTE

Diante de Jesus pode-se adoptar atitudes muito diferentes. A história dos Magos fala-nos da reação de três grupos de pessoas. Alguns pagãos que o procuram, guiados pela pequena luz de uma estrela. Os representantes da religião do templo, que permanecem indiferentes. O poderoso Rei Herodes, que vê nele apenas perigo.
Os Magos não pertencem ao povo escolhido. Não conhecem o Deus vivo de Israel. Nada sabemos sobre sua religião nem do seu povo de origem. Só que eles vivem atentos ao mistério que se encerra no cosmos. O seu coração procura a verdade.
Em algum momento acreditam ver uma pequena luz que aponta para um Salvador. Necessitam saber quem é e onde está. Rapidamente se põem a caminho. Não conhecem o itinerário exato que devem seguir, mas dentro deles arde a esperança de encontrar uma Luz para o mundo.
A sua chegada à cidade santa de Jerusalém provoca o sobressalto geral. Convocado por Herodes, reúne-se o grande Conselho dos sumo sacerdotes e dos escribas do povo. A sua atuação é decepcionante. Eles são os guardiões da verdadeira religião, mas não procuram a verdade. Representam o Deus do Templo, mas eles vivem surdos à sua chamada.
A segurança religiosa cega-os. Sabem onde o Messias deverá nascer, mas nenhum deles se aproximará de Belém. Dedicam-se a dar culto a Deus, mas não suspeitam que seu Mistério seja maior do que todas as religiões e que têm os seus caminhos para se encontrar com os seus filhos e filhas. Eles nunca reconhecerão Jesus.
O rei Herodes, poderoso e brutal, só vê em Jesus uma ameaça ao seu poder e à sua crueldade. Fará todo o possível para eliminá-lo. Do poder opressivo, somente podem ser «crucificados» aqueles que trazem libertação.
Enquanto isso, os magos continuam sua busca. Eles não caem de joelhos diante de Herodes: não encontram nele nada digno de adoração. Não entram no grande Templo de Jerusalém: são proibidos de entrar nele, pois a pequena luz da estrela os atrai para a pequena cidade de Belém, longe de qualquer centro de poder.
Ao chegar, tudo o que veem é a criança com Maria, sua mãe. Nada mais. Uma criança sem esplendor ou qualquer poder. Uma vida frágil que precisa dos cuidados de uma mãe. É o suficiente para despertar a adoração nos magos.
O relato é desconcertante. A este Deus, oculto na fragilidade humana, não o encontram aqueles que vivem no poder ou estão trancados na segurança religiosa. É revelado àqueles que, guiados por pequenas luzes, buscam incansavelmente uma esperança para o ser humano na ternura e na pobreza da vida.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez