sexta-feira, 26 de abril de 2019

O Evangelho dominical - 28.04.2019


DA DÚVIDA À FÉ

O homem moderno aprendeu a duvidar. É típico do espírito do nosso tempo questionar tudo para progredir no conhecimento científico. Neste clima, a fé fica frequentemente desacreditada. O ser humano vai caminhando pela vida cheio de incertezas e dúvidas.
Por isso, sintonizamos sem dificuldade com a reação de Tomé, quando os outros discípulos lhe comunicam que, na ausência dele, tiveram uma experiência surpreendente: «Vimos o Senhor». Tomé poderia ser um homem de hoje. A sua resposta é clara: «Se eu não O vejo, não acredito».
A sua atitude é compreensível. Tomé não diz que os seus companheiros estão mentindo ou enganados. Apenas afirma que os seus testemunhos não são suficientes para aderir à sua fé. Ele necessita de viver a sua própria experiência. E Jesus não o censura em nenhum momento.
Tomé pode expressar as suas dúvidas dentro do grupo de discípulos. Aparentemente, eles não ficam chocados. Não o expulsam do grupo. Também eles não acreditaram nas mulheres quando anunciaram que viram Jesus ressuscitado. O episódio de Tomé sugere o longo caminho que os discípulos tiveram de percorrer até à fé em Cristo ressuscitado.
As comunidades cristãs deveriam ser um espaço de diálogo onde poderíamos honestamente partilhar as dúvidas, as interrogações e as buscas dos crentes de hoje. Nem todos vivemos no nosso interior a mesma experiência. Para crescer na fé, necessitamos do estímulo e o diálogo com os outros que compartilham da mesma preocupação.
Mas nada pode substituir a experiência de um contato pessoal com Cristo nas profundezas de sua consciência. Segundo o relato evangélico, Jesus apresenta-se novamente após oito dias. Mostra-lhes as suas feridas.
Não são «provas» da ressurreição, mas «sinais» de seu amor e da entrega até à morte. Por isso, convida-o a aprofundar as suas dúvidas com confiança: «Não sejas incrédulo, mas um crente». Tomé renuncia a verificar o quer que seja. Já não sente necessidade de provas. Só sabe que Jesus o ama e o convida a confiar: «Senhor meu e Deus meu».
Um dia nós, os cristãos, descobriremos que muitas das nossas dúvidas, vividas de forma sã, sem perder o contato com Jesus e a comunidade, nos pode resgatar de uma fé superficial que se contenta em repetir fórmulas e estimular-nos a crescer em amor e confiança em Jesus, esse Mistério de Deus que constitui o núcleo da nossa fé.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quinta-feira, 25 de abril de 2019

ANO C | TEMPO PASCAL | SEGUNDO DOMINGO | 28.04.2019


No encontro com Jesus ressuscitado, a missão se renova!
Ainda dinamizados pela força da páscoa de Jesus, precisamos lembrar que provocadora luz da ressurreição de Jesus normalmente não brilha de forma repentina e poderosa na vida dos cristãos. Ela vai se acendendo aos poucos. Naquela noite do primeiro dia da semana, as portas da sala, onde se encontravam os discípulos desiludidos e assustados, estavam firmemente trancadas. O ambiente externo era hostil, e aquele punhado de sonhadores, cheios de ambiguidades, sentia-se desamparado. Era noite por fora e por dentro, e nem mesmo a Boa Notícia anunciada por Maria Madalena conseguira arrancá-los daquela prostração.
Este ambiente noturno e fechado contrasta com a manhã luminosa, solar e aberta na qual Maria Madalena se encontrara com Jesus ressuscitado (cf. Jo 20,1-18). Os discípulos vivem a mesma sensação de escuridão e ameaça que haviam experimentado ao atravessar o lago, depois da tentativa frustrada de transformar Jesus em rei (cf. Jo 6,16-21). Mas as trevas da noite costumam ser proporcionais à luz da aurora que se esconde no seu ventre, como aquela noite na qual Deus fez vigília e iniciou a libertação do povo do Egito (cf. Ex 12,42; Dt 16,1), e como em tantas outras noites da história da humanidade.
É assim que, superando todos os obstáculos, Jesus irrompe no meio dos discípulos. E não o faz para advertir e acusar. Os discípulos se alegram quando Jesus, mostrando-lhes as mãos e o lado, se apresenta como Cordeiro com o qual se inicia a memória do êxodo libertador. Ele faz questão de mostrar as mãos nas quais o Pai tinha posto tudo (cf. Jo 13,3); as mãos que realizaram as ações libertadoras de Deus (cf. Jo 3,36); as mãos firmes das quais nenhuma ovelha pode ser arrancada (cf. Jo 10,28). Estas mãos perfuradas simbolizam a historicidade e a concretude humana da sua presença ressuscitada na comunidade de fé.
Jesus quer, porém, evitar a tentação de uma paz que consola e acomoda. Como Deus havia feito no início da criação, Jesus transmite seu Sopro aos discípulos e os constitui agentes vivificadores, sinais e instrumentos de uma nova criação. “Então soprou sobre eles e falou: ‘Recebei o Espírito Santo’.” Assim, a experiência pascal é êxodo corajoso e libertador de todos os fechamentos e redis para prosseguir o caminho trilhado por Jesus. Não encontraremos nem conheceremos verdadeiramente Jesus Cristo ressuscitado enquanto não estivermos situados num horizonte de esperança e de ação missionaria.
Somos enviados como ele foi enviado pelo Pai, como Cordeiros que carregam o pecado do mundo, pois perdoar é libertar uma pessoa de um peso que prende e impede de viver plenamente, como Jesus fizera com a mulher samaritana (cf. Jo 4,1-42), com o homem que sofria há 38 anos (cf. Jo 5,1-18), com a mulher acusada de adultério (cf. Jo 8,1-11), com o cego de nascença (cf. Jo 9,1-41). Conduzidos e fortalecidos pelo Espírito de Jesus, somos enviados para construir uma comunidade de homens e mulheres que procuram romper com o espírito do mundo e tomar distância das estruturas de pecado.
A primeira expressão da missão que brota da experiência pascal é o testemunho de vida fraterna e solidária, diante do qual a sociedade é obrigada a tomar posição. E a segunda é, como nos mostra o evangelista João, o anúncio de que isso é feito em nome de Jesus, “o primeiro e o último, Aquele que vive”, a pedra rejeitada pelos construtores e escolhida por Deus como pedra principal. É em Jesus que se fundamenta nosso novo viver e nossa irrenunciável missão. Mas desde sempre, como nos mostra Pedro, a missão dos cristãos é também ação transformadora: todos os que se aproximavam dele eram curados.
Hoje a missão continua, e vai sendo tecida pelos fios do testemunho, do diálogo, do anúncio e o serviço que defende e promove a vida. Partindo do encontro com o Ressuscitado, o anúncio e o testemunho são vividos não apenas no cuidado dos doentes, mas também nas diversas iniciativas e cuidados pastorais em favor das crianças, dos encarcerados, dos migrantes, dos operários, da mulher marginalizada, da juventude, da terra, da família, da nossa casa comum, enfim: na defesa de políticas públicas em favor do povo. As pessoas têm o direito de sentir em nós a mão do próprio Jesus Cristo tocando seus ombros cansados e espantando o medo!
Jesus de Nazaré, Cordeiro de Deus. Na tua mesa somos nutridos e encorajados a partir em missão e tirar o pecado do mundo, amar e servir incondicionalmente. E o faremos tornando-nos uma bênção que de mil formas toca, desperta, cura, liberta. Não permitas que, como ocorreu com Tomé, nos separemos do corpo eclesial e, assim, sejamos incapazes de te reconhecer vivo entre nós. E dá-nos a graça de crer em ti apoiando-nos no testemunho daqueles que provaram teu amor e tocaram tuas chagas. Assim seja! Amém!
                                                                                                    Itacir Brassiani msf

Atos dos Apóstolos 5,12-16 | Salmo 117 (118) | Livro do Apocalipse de São João 1,9-10| Evangelho de São João 20,19-31

quinta-feira, 18 de abril de 2019

O Evangelho dominical - Festa da Páscoa


ENCONTRARMO-NOS COM O RESSUSCITADO

Segundo o relato de João, Maria Madalena é a primeira que vai ao sepulcro, quando ainda está escuro, e descobre desconsolada que está vazia. Falta-lhe Jesus. O Mestre que a havia compreendido e curado. O Profeta que ela tinha seguido fielmente até o fim. A quem seguirá agora? Assim, se lamenta perante os discípulos: «Levaram do sepulcro o Senhor e não sabemos onde o colocaram».
Estas palavras de Maria podem expressar a experiência que muitos cristãos estão experimentando hoje: o que fizemos com Jesus ressuscitado? Quem o levou? Onde o pusemos? É o Senhor em quem cremos, um Cristo cheio de vida ou um Cristo cuja memória gradualmente desaparece dos corações?
É um erro que procuremos provas para acreditar com mais firmeza. Não basta recorrer ao Magistério da Igreja. É inútil investigar as exposições dos teólogos. Para nos encontrarmos com o Ressuscitado, devemos antes de tudo fazer uma jornada interior. Se não o encontrarmos dentro de nós, não o encontraremos em nenhum lugar.
João descreve, um pouco mais tarde, Maria correndo de um lugar para outro para procurar alguma informação. Mas quando vê Jesus, cega pela dor e as lágrimas, não consegue reconhece-Lo. Pensa que é o encarregado do jardim. Jesus apenas lhe faz uma pergunta: «Mulher, por que choras? a quem procuras?».
Talvez devêssemos também perguntar-nos algo semelhante. Por que é que a nossa fé por vezes é tão triste? Qual é a causa final dessa falta de alegria entre nós? Que procuramos, os cristãos de hoje? O que sentimos falta? Estamos procurando um Jesus que necessitamos sentir cheios de vida em nossas comunidades?
Segundo o relato, Jesus está a falar com Maria, mas ela não sabe que é Jesus. É então que Jesus a chama pelo seu nome, com a mesma ternura que colocava na Sua voz quando caminhavam pela Galileia: «Maria!». Ela volta-se rápida: «Rabbuní, Mestre».
Maria encontra-se com o Ressuscitado quando se sente pessoalmente chamada por Ele. É assim. Jesus revela-se cheio de vida, quando nos sentimos chamados pelo nosso próprio nome e ouvimos o convite que faz a cada um de nós. Então a nossa fé cresce.
Não reacenderemos a nossa fé em Cristo ressuscitado, alimentando-o somente de fora. Não nos encontraremos com Ele, se não procurarmos contato íntimo com a Sua pessoa. É o amor a Jesus, conhecido pelos Evangelhos e procurado pessoalmente nas profundezas do nosso coração, que nos pode conduzir ao encontro com o Ressuscitado.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

ANO C | TRÍDUO PASCAL | FESTA DA PÁSCOA | 21.04.2019


A sepultura de Jesus se transformou em sementeira de vida!
Chegamos à festa que preparamos com tanto empenho nas últimas seis semanas. Trazemos a memória agradecida da aliança realizada na última ceia e nas muitas e solidárias ceias penúltimas. Trazemos nos olhos o sinal luminoso das mãos perfuradas e dos braços abertos em forma de cruz, prontos a abraçar a humanidade inteira. Partilhamos com Madalena o vazio de uma ausência querida. Trazemos na mente e no ventre o trabalho das mulheres e homens, comunidades e movimentos que, no escuro da noite, prepararam tecidos e perfumes para cuidar da casa comum e não permitir que a vida se perca.
A Páscoa celebra o reconhecimento de Jesus – o profeta perseguido e assassinado, o irmão e servidor da humanidade – como Filho de Deus. Proclama que nele Deus vence todas as formas de morte, desde a morte física até a morte progressiva e massiva que resulta das estruturas iníquas e dos poderes despóticos. Anuncia que Jesus, considerado uma pedra sem utilidade e problemática na manutenção do mundo, é por Deus reconhecido e apresentado como pedra fundamental da construção de um mundo novo. Afirma que nossa esperança, embora ainda dance na corda bamba, é teimosa e tem futuro.
A Páscoa de Jesus de Nazaré e dos cristãos celebra as milhares de possibilidades escondidas na vida de cada pessoa e da humanidade. Afirma que a última palavra não será sempre do discurso frio daqueles que impõem sua injusta ordem, lincham midiaticamente os líderes populares e mandam calar os profetas. Proclama que a ação realmente eficaz e grávida de futuro é aquela que estabelece a absoluta superioridade do outro necessitado. Evidencia que a direção certa e o sentido da vida está no cuidado da terra, no fazer-se semente de um mundo outro e de uma outra vida, tão possível quanto urgente.
Ademais, a ressurreição não é algo que se manifesta apenas depois da morte. Paulo nos surpreende afirmando que os cristãos já foram ressuscitados. Ele se refere ao dinamismo pascal do nosso batismo, que possibilita e pede a passagem de uma vida individualista a uma vida plena e solidária. “Procurem as coisas do alto”, exorta Paulo. E isso significa assumir um estilo de vida centrado no amor, no serviço e na partilha, na busca de uma segurança que tenha a justiça como mãe. O pecado ainda não perdeu totalmente sua influência, mas está mortalmente ferido, e não domina mais sobre nós.
É verdade que a ressurreição de Jesus não é algo que se impõe com força de evidência, não vem acompanhada de manifestações potentes. O dia já havia amanhecido, mas, na cabeça de Maria Madalena e dos apóstolos a experiência do fracasso pairava como escuridão. Só muito lentamente eles foram percebendo que os lençóis estendidos não estavam lá para cobrir um morto mas para acolher as núpcias de uma nova aliança de Deus com a humanidade. O sudário sim, depois de ter coberto a cabeça de Jesus, agora estava à parte e envolvia totalmente o templo, o lugar onde a morte fora tramada e decretada.
Lembremos que a Páscoa de Jesus de Nazaré inaugura uma Nova Criação. Ressuscitando e trazendo no corpo as feridas dos pregos e da lança, ele é o Homem Novo, o Novo Adão, o Irmão primogênito e solidário de todos os homens e mulheres. Os discípulos e discípulas se reúnem em torno da sua memória e organizam comunidades que continuam seu sonho e seu caminho. E as pessoas acolhidas nestas comunidades estabelecem vínculos que formam um Novo Povo de Deus, a comunhão dos grupos e movimentos de cuidadores e servidores, de gente que luta por vida abundante para todos.
Pedro diz que Jesus andou por toda parte fazendo o bem e agindo sem medo, apesar da violência que havia levado João Batista à morte. Enfatiza que Deus estava com ele, inclusive no vazio escuro da cruz, quando parecia havê-lo abandonado. Ensina que Deus o ressuscitou dos mortos, e transformou em juiz aquele que fora réu. E lembra que os discípulos e discípulas, apesar da dificuldade de acreditar nele e da permanente tentação de abandoná-lo, são constituídos testemunhas e pregadores dessa Boa Notícia. Ora, essa é uma notícia tão boa e tão nova que, para acolhê-la, precisamos de uma profunda mudança de mentalidade.
Jesus de Nazaré, filho amado de Deus, irmão querido da humanidade! Aqui estamos reunidos para celebrar contigo a festa dos pequenos, daqueles que se desvelam no cuidado pelas vítimas. O mistério da vida ressuscitada se dissemina discretamente em tantas pessoas e grupos, inclusive naqueles que não te reconhecem explicitamente. Por isso, celebramos nossa páscoa na tua páscoa, e saímos apressados a testemunhar que a vida é mais forte que a morte e que o amor é imortal. Assim seja! Amém!
                                                                                                    Itacir Brassiani msf
Atos dos Apóstolos 10,34-43 | Salmo 117 (118) | 1ª Carta de Paulo aos Colossenses 3,1-4| Evangelho de São João 20,1-9

quarta-feira, 17 de abril de 2019

ANO C | TRÍDUO PASCAL | VIGÍLIA PASCAL | 20.04.2019


A pedra rejeitada tornou-se princípio e alicerce de tudo!
Reunimo-nos hoje em vigília, marcados pela dor da perda, recapitulando a história da salvação, regando as frágeis sementes de esperança que nos restam. Acompanham-nos muitas testemunhas que nos antecederam nessa travessia. Mas a vigília sempre nos possibilita também assumir a herança humana e espiritual de quem partiu, levantar o olhar e encontrar forças para continuar a caminhada. Aqui estamos, acariciando o pequeno fio de esperança: “Eu sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente...”
A ação criadora de Deus é sempre lenta, e avança numa luta sem tréguas contra o vazio, o caos e o abismo. Como os hebreus fugindo do Egito, quem luta se vê frequentemente encurralado, com o mar intransponível à frente e as tropas ameaçadoras atrás. Nossa experiência ainda hoje é de que existem pessoas lutadoras e iniciativas promissoras, mas são frágeis e estão muito dispersas, como o povo de Israel no cativeiro da Babilônia. E sem falar nas perseguições e linchamentos judiciais e midiáticos, que querem abortar mesmo os mais frágeis brotos de mudança e de justiça verdadeira. Onde estão os sinais da páscoa?
O vazio da sepultura não é prova da ressurreição, mas convida a perceber que as marcas dos pregos e o corpo torturado não são a última palavra de Deus sobre a história. Na tumba vazia, anjos e mulheres estão anunciando que o caos do lixo pode dar lugar a uma criação harmoniosa, que o mar ameaçador pode ser atravessado a pé enxuto, que os grupos dispersos podem ser reunidos, que os crucificados caminham à nossa frente e vislumbram novidades em gestação. Precisamos abrir-nos às novas possibilidades escondidas no segredo do átomo, no íntimo das pessoas, nos caminhos da história...
Aquelas mulheres madrugadoras, as poucas conhecidas e as muitas anônimas, estão a nos dizer que, para entender o mistério da vida e da morte, precisamos retomar a Palavra de Jesus, o dinamismo da sua compaixão e doação. Como discípulos seus, não podemos insistir em buscar entre os mortos aquele que está vivo, em enclausurar no passado aquele que é presente e futuro. A admiração diante do túmulo vazio é apenas o começo, e não pode ser um convite a ‘voltar para casa’, ignorando solenemente nossa responsabilidade com as políticas públicas. É preciso morrer para o pecado e renascer para o cuidado!
Como cristãos, completamos em nossos corpos os sofrimentos de Jesus Cristo, ostentamos as marcas de quem vive a misericórdia e cuida da casa comum. A ressurreição se multiplica como semente no testemunho e nas iniciativas de discípulos e discípulas, comunidades e Igrejas, grupos e movimentos. Como na ressurreição de Jesus, os sinais pequenos e desprezíveis passam a ser reais e promissores. O batismo, recordado e celebrado comunitariamente na vigília pascal, expressa este dinamismo na vida de cada um de nós e da comunidade eclesial. Morreu o velho homem, nasceu uma nova criatura!
Já vivemos e sofremos o bastante para saber que esta passagem não é nem automática, nem evidente. Trata-se de um projeto de vida que, para ser realizado, exige disciplina e empenho sem tréguas. Porque a luta não é apenas contra inimigos externos, mas pede vigilância sobre nós mesmos e sobre a permanente tentação de sermos sempre os primeiros e os merecedores, deixando a ninguém o cuidado do que é de todos. Mas esta não é uma luta inglória, pois Jesus de Nazaré, nosso irmão maior, já venceu a batalha, removeu muitas pedras, derramou sobre nós seu Espírito e nos fez capazes de compaixão.
Os primeiros cristãos resgataram uma imagem preciosa para falar da ressurreição de Jesus: Ele é como uma pedra que os construtores jogaram na caçamba de entulhos e que Deus transformou em pedra de ângulo, pedra que sustenta todo o teto em forma de abóbada. Por isso, a páscoa pede que abramos os olhos e as portas às pessoas e grupos sociais descartados como desnecessários ou eliminados como incômodos. Se não os tivermos no coração das nossas preocupações, celebrações e projetos eclesiais, nossa fé poderá ser como casa construída sobre a areia, e nossa utopia pode se deteriorar em simples ideologia.
Senhoras da madrugada, mulheres-coragem: humildemente pedimos a vocês ajuda para caminhar na noite que nos envolve, para ver com nossos próprios olhos que o mestre de vocês e nosso nos precede na periferia e no deserto. Segurem nossas mãos cansadas e acompanhem nossos passos inseguros. Emprestem-nos um pouco do perfume que vocês souberam conservar, a fim de não chegarmos de mãos vazias ao encontro com Aquele que vive para sempre. E então anunciaremos de mil modos que a carne amada e amante de Jesus vivifica todos os sonhos e esperanças que habitam nossa humanidade. Assim seja! Amém!
                                                                                                    Itacir Brassiani msf

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Uma parábola pascal


Conversa de girassol
Nasci, senhoras e senhores. Nasci e, ao abrir os olhos, deparei-me de imediato com a face radiosa do sol. Seu brilho iluminou e aqueceu meu corpo. Transmitiu-lhe vida. Foi amor à primeira vista, paixão recíproca. Logo pus-me a acariciar os raios dessa cabeleira dourada, seguindo sua rota diurna. Daí a origem do meu nome: Girassol! Sou, vivo e caminho em função desse amor. É ele que confere razão, significado e profundidade à minha existência.
Desde nosso primeiro encontro, o amor só faz crescer e reforçar entre nós os laços. A cada dia, desde a aurora, o grande astro rejuvenesce meu ser. Toda manhã sinto na pele o toque caloroso seus dedos apaixonados. Nossa relação torna-se, ao mesmo tempo, sempre mais íntima e sempre mais nova. Novidade que não envelhece, reencontro diário que não esgota a vontade de estar juntos. Proximidade que não degenera em tédio, não satura e nem enferruja a rotina. De minha parte, procuro vestir-me com as melhores roupas que pude encontrar. Eu mesmo as teço com os fios mais coloridos, entrelaçando cores e tons. Enfeito minha cabeça com o que há de mais belo e perfumado. Meu corpo se mimetiza ao verde vivo da natureza. Tudo faço acompanhar de perto a trajetória cotidiana do amado. Nossa existência consiste em um misto de alegria, troca de beijos e festa. Pouco me importa o quanto durará, ou quando terei de voltar ao pó da terra. Importa que, enquanto vivos, sejamos inteiros um para o outro.
Antes de nascer, entretanto, senhoras e senhores, passei por sofrimentos inauditos. Conheci nas entranhas as dores e contrações do parto. Depois aprendi que, além de nascer, também o ato de crescer é doloroso. Exige escolhas e renúncias, aproximações e despedidas. Meus primeiros passos tropeçaram no terreno acidentado do ciúme e da vingança. Mal conseguia balbuciar, era difícil juntar palavra com palavra. Até que entendi a linguagem muda da cor e do gesto, do olhar e do sorriso, dos braços abertos, do estar lado a lado com quem se ama. 
Verdade que existem as noites, longas e por vezes vazias. O amado se retira, se ausenta. Mas sua ausência, ao deixar-me só, permite que minha memória seja povoada com nossas mais belas recordações. A noite então se reveste de estrelas. E estas viram pérolas de nosso comum. Curvo a cabeça e admiro o brilho e a beleza de cada pérola. Assim, não me sinto só em meio ao deserto. Além disso, sei que ele voltará com o passar da madrugada. Volta mais quente e renovado. E encontra igualmente renovada a minha vida pois, no silêncio, pude visitar o íntimo de minha alma, descobrindo nela novos segredos que hão de enriquecer a ligação.
Dia e noite, a paixão toma o coração, a mente e o espírito. Ao calor do sol, acabei por murchar e queimar minhas vestes. Meu corpo franzino e alquebrado ficou exposto à luz crua do meio dia. Em lugar de vergonha, porém, tive ocasião de penetrar mais fundo o mistério da vida. Descobri as sementes que em mim se ocultam. Trazem em germe meu corpo recriado. Aos punhados, atirei-as ao vento, certo de que uma ou outra cairá em terra fértil. Haverei, pois, de renascer para reencontrar o sol e retomar nosso amor temporariamente interrompido… 
Mas a breve interrupção, senhoras e senhores, não deixa de ser penosa. Antes de erguer-me do chão, tenho que mergulhar as raízes na terra fria, escura e úmida. Antes de levantar a cabeça em direção ao ar livre, tenho que dobrar os joelhos diante dos vermes que, sobre o próprio ventre, rastejam no pó e na lama. Antes de correr nas asas do amor ao encontro do sol, tenho que ver com os olhos e tocar com as mãos inúmeros seres vivos que não sabem o que é um dia de júbilo.
Antes de encontrar o amado, tenho que levar esperança aos pobres, migrantes e excluídos, que nunca ouviram falar de amor, nunca foram tocados pelo brilho de um rosto amigo. Por isso, teimosamente aguardam um toque de solidariedade. Tenho que submergir nos “infernos do sofrimento humano” e visitá-los, para que possam levantar-se. Nessa tentativa de subir com eles, ou parte deles, será bem mais festivo meu reencontro com a face radiante do sol.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
São Paulo, 14 de abril de 2019

terça-feira, 16 de abril de 2019

ANO C | TRÍDUO PASCAL | PAIXÃO DO SENHOR | 19.04.2019


Jesus Cristo é o homem perfeito e o caminho para a plenitude.
Um clima estranho envolve pessoas e cidades na sexta-feira santa. Até as pessoas mais indiferentes intuem que algo inexplicável acontece nesse dia. Uma multidão se reúne nos templos: gente experimentada na dor, gente que percebe que neste dia se revela o que há de mais profundo no ser humano e que há de mais belo no coração de Deus. O mistério da iniquidade humana atinge sua força e sua expressão mais terrível. A humanização de Deus atinge seu ponto mais luminoso. A entrega do ser humano a Deus se expressa em seu grau máximo. A fidelidade de Deus à sua aliança atesta que sua misericórdia passa de geração em geração.
Como todos os escravos e excluídos, Jesus não tem aparência nem beleza que possa atrair os olhares. Ele é como uma raiz em terra seca, como uma pessoa frente à qual escondemos o rosto. “Não parecia gente, tinha perdido a aparência humana”, diz o profeta. Mas muitos cremos que sua vida é semente, tem futuro! O Servo fiel não perde sua vida, pois a dá livremente e, por isso, recupera sua existência. Ele carrega nas costas a exclusão e o desprezo de muitos, e, por isso, a luz brilha em seu rosto e em todo seu corpo de servo. Ele confia seu destino nas mãos daquele que é tem segredo da vida, e assim vive naqueles que lutam.
Conhecemos bem as tramas e traições, as manhas e as manipulações que levaram à prisão e condenação de Jesus. São decisões e atitudes que revelam o mistério da iniquidade e sua força nas pessoas e nas estruturas sociais. É um mal muito concreto, nada abstrato, que se expressa nos costumes, nas leis, nos medos, em todas as formas de ambição. Um mal que assume feições de cinismo, como quando as autoridades religiosas, tendo decidido matar Jesus, não entram no palácio do governador para não se tornarem impuras.  É este inexplicável mistério da iniquidade que faz com que seja noite às três horas da tarde!
Jesus não parece disposto a se defender. Ele tem consciência de que nasceu livre e veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para tornar palpável e digna de crédito a fiel compaixão de Deus pelas pessoas negadas em sua dignidade. Pilatos manda torturá-lo e, depois, o apresenta ao povo: “Eis o homem!” Bem ou mal, Pilatos nos convida a fixar o olhar neste personagem que realiza plenamente a vocação de todo ser humano. Nele descobrimos que a pessoa humana atinge sua plenitude quando não recua no propósito de dar a vida e de servir, quando não abre mão da solidariedade com as pessoas desacreditadas e agredidas.
O ser humano maduro e liberto não é o ‘amigo de César’, a pessoa que age sem autonomia, nem a autoridade religiosa, que ordena por medo, mas Aquele que transcende os interesses individuais e se mantém a serviço de Deus e do seu projeto. Por isso, do alto da cruz, Jesus diz que, no seu corpo feito dom, a criação chega ao seu ápice: “Tudo está consumado.” Nele Deus chega ao máximo de si mesmo e se supera no esvaziamento. Nele o ser humano vence todos os limites e se faz dom e semente fecunda nas mãos de Deus.
“O que é que vocês estão procurando?”, pergunta Jesus aos primeiros discípulos (Jo 1,38). E hoje, nesta sexta-feira da paixão, o que esperamos de um Deus crucificado? Aqui só é licito buscar forças para caminhar na fé e perseverar no seguimento de Jesus, o rosto da misericórdia de Deus. Do alto da cruz ele se dirige a Maria e lhe confia João: “Mulher, eis aí teu filho!” E, dirigindo-se ao discípulo, diz: “Eis aí tua mãe!” Assim, aos pés da cruz, nasce uma nova família, não mais limitada pelos laços de sangue ou de interesses mesquinhos, mas cuidadora da vida e compassiva com todos os humanos seres que querem viver e promover a vida.
É por isso que nesta santa sexta-feira nossa oração se abre em uma universalidade que não deveria estar ausente de nenhuma celebração cristã: rezamos pela Igreja, pelo papa e todos os ministros, mas também pela união das diferentes Igrejas cristãs, pelos judeus e pelos não-cristãos, pelos que não acreditam em nada, pelas autoridades e pela humanidade sofredora. Diante do crucificado, filho da humanidade e filho de Deus, aprendemos que os muros e fronteiras religiosas, políticas, econômicas e culturais não fazem o menor sentido e estão arruinadas. Pertencemos à humanidade, temos uma casa e um destino comuns.
Diante de ti, Jesus de Nazaré, Irmão da humanidade sofredora, prostramo-nos agradecidos e comprometidos. Nossas chagas doem na tua carne e nossas culpas pesam sobre teus ombros, mas o dom do teu amor sem fronteiras nos regenera. Tua mãe e teu amigo nos acolhem numa comunidade-semente de um mundo novo, e a água que brota do teu lado aberto nos lava de todos os medos. Beijamos enternecidos tuas chagas, pedindo que teu Espírito não permita que este beijo seja de traição. E assim seremos capazes de beijar, abraçar e acompanhar a imensa caravana dos sofredores que só podem esperar em ti. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Profecia de Isaías 52,13-53,12 | Salmo 30 (31) | Carta de Paulo aos Hebreus 4,14-15.5,7-9| Evangelho de São João 18,-19,42

segunda-feira, 15 de abril de 2019

ANO C | TRÍDUO PASCAL | CEIA DO SENHOR | 18.04.2019


Superamos a miséria através da doação irrestrita de nós mesmos!
Hoje nos reunimos para celebrar a Aliança nova de Deus conosco, filhas e filhos queridos, família na qual o Filho de Deus se faz irmão. A mesa está pronta, e há lugar para todos, inclusive para pecadores como nós, porque a misericórdia de Deus é eterna e incondicional. O próprio Jesus de Nazaré nos diz que preparou e desejou ardentemente celebrar este momento conosco (cf. Lc 22,15). E não recusamos o convite porque intuímos que não temos outra honra senão esta de trazer em nossos sonhos, projetos, ações e relacionamentos as marcas da cruz de Cristo, do seu amor compassivo e sem fronteiras.
Na mesa que reúne pessoas que desejam ardentemente viver uma fraternidade sem fronteiras recordamos coisas maravilhosas e animadoras. Esta celebração é um memorial dos inúmeros êxodos e travessias que percorremos ou somos convidados a empreender: travessias de um eu fechado em si mesmo para uma comunidade aberta e solidária; de uma mesa grande e vazia para uma mesa farta e partilhada; de projetos estreitos e ancorados no sucesso pessoal para utopias coletivas; de poderes subordinados às exigências do mercado a políticas verdadeiramente públicas e a serviço das pessoas e classes mais vulneráveis.
Nossas ceias eucarísticas são memória de Jesus e dos discípulos que, tendo atrás as memoráveis experiências das refeições partilhadas com toda sorte de pecadores e à frente a ameaça dos poderes que não toleram mudanças, compartilham suor e sangue, vinho e pão. A eucaristia é alimento para quem está na estrada, e não privilegio de quem se sente perfeito. Sentamos à mesa e celebramos esta refeição prontos a empreender travessias mais que urgentes e necessárias: com cintos que diminuem os embaraços; com sandálias que agilizam os passos; com cajados com os quais defendemo-nos e apoiamo-nos nos vales escuros.
No centro desta magnífica refeição não está um cordeiro, mas um corpo humano feito inteiramente dom. Jesus Cristo oferece a totalidade concreta da sua vida como ceia, partilha e aliança. É sua vida, o que ele mesmo é, que ele nos dá sem reservas e sem impor condições. E o faz numa ceia ordinária, numa refeição marcada pelo afeto fraterno, num contexto de ameaça de morte, pedindo insistentemente que façamos o mesmo para manter viva sua memória. “Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado...” A eucaristia faz da Igreja uma comunidade aberta, em saída, dom àqueles que estão fora ou estão “longe”.
Jesus ilustra o sentido da sua vida feita aliança no gesto de lavar os pés. Ele havia dito e repetido que viera para servir e não para ser servido, como Servo e não como Senhor. Demonstrara isso numa dedicação sem cansaço aos últimos da sociedade. Pois agora, depois de repartir pão e vinho, deixa a mesa e assume o serviço então atribuído a mulheres e crianças, lavando os pés daqueles que estavam à mesa. Nele, é o próprio Deus que se inclina diante da humanidade e, de joelhos, como servidor, lava nossos pés. E não o faz para demonstrar humildade, mas para desfazer as hierarquias e afirmar a absoluta igualdade de todos.
Pedro, porta-voz dos discípulos, reage diante do gesto/lição de Jesus. Não lhe parece bem mudar as coisas assim tão radicalmente. Para ele, senhores e superiores devem ser honrados; servos e inferiores devem ser desfrutados; esta é a ordem, e nada deve ser mudado. A ele e a nós, é difícil aceitar que esta não seja a ordem querida por Deus, que participar da Eucaristia implica em fazer-se memória viva da vida de Jesus Servo. Como custa à Igreja e a cada um de nós assimilar esta lição: Deus não se identifica com o soberano, mas com o servo; somente quem hipoteca sua vida pelos outros a ganha verdadeiramente.
Esta é uma lição é difícil e nada óbvia. É por isso que, depois de comer e de lavar os pés dos discípulos, Jesus nos interroga: “Vocês compreenderam o que eu acabei de fazer?” E, para não deixar dúvidas, explica: “Eu lhes dei um exemplo... E vocês serão felizes se o puserem em prática...” Precisamos passar da memória, do rito e do gesto teatral à vida. Precisamos dar conteúdo e concretude à Eucaristia na autodoação sem reservas pelos outros, na luta sem tréguas na luta sem tréguas pela manutenção e ampliação das políticas sociais em favor dos mais pobres, como dizem os Bispos do Brasil (cf. Texto-Base da CF, nº 137).
Jesus de Nazaré, peregrino nas estradas de um mundo desigual, arauto de um tempo novo e promissor. Ajuda-nos a levar para fora do templo a toalha que nos dás como hábito e identidade. Abre nossa mente e nossas mãos para que o serviço aos irmãos e irmãs se realize nas estradas e esquinas do mundo. Faz que superemos os ritos e transformemos teu gesto em prática cotidiana. Guia e sustenta a Igreja no esvaziamento que a faz livre e capaz de servir, sem outra parcialidade que não seja a preferência pelos últimos. Amém! Assim seja!
                                                                                                    Itacir Brassiani msf
Livro do Êxodo 12,1-14 | Salmo 115 (116) | 1ª Carta de Paulo aos Coríntios 11,23-26| Evangelho de São João 13,1-15

quinta-feira, 11 de abril de 2019

O Evangelho dominical - 14.04.2019 - Domingo dos Ramos


DIANTE O CRUCIFICADO

Preso pelas forças de segurança do Templo, Jesus não tem mais dúvidas; o Pai não escutou seus desejos de continuar a viver; os seus discípulos fogem procurando a sua própria segurança. Está sozinho. Os Seus projetos desaparecem. Espera-O a execução.
O silêncio de Jesus durante as Suas últimas horas é esmagador. Contudo, os evangelistas recolheram algumas das Suas palavras na cruz. São muito breves, mas às primeiras gerações cristãs ajudava-as a recordar com amor e gratidão o Jesus crucificado.
Lucas recolheu as que diz enquanto está a ser crucificado. Entre estremecimentos e gritos de dor, ele consegue pronunciar umas palavras que descobrem o que está no Seu coração: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. Assim é Jesus. Pediu aos seus que amassem seus inimigos e rezassem pelos que os perseguissem. Agora é ele quem morre perdoando. Converte a Sua crucificação em perdão.
Esta petição ao Pai por aqueles que o crucificam deve ser ouvida como o gesto sublime que revela a misericórdia e o perdão insondável de Deus. Esta é a grande herança de Jesus à Humanidade: Nunca desconfieis de Deus. A Sua misericórdia não tem fim.
Marcos recolhe um grito dramático do crucificado: Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” Estas palavras pronunciadas no meio da solidão e o mais total abandono são de uma sinceridade esmagadora. Jesus sente que o Seu amado Pai O está a abandonar. Por quê? Jesus queixa-se do Seu silêncio. Onde está? Por que se cala?
Este grito de Jesus, identificado com todas as vítimas da história, pedindo a Deus alguma explicação de tanta injustiça, abandono e sofrimento, permanece nos lábios do Crucificado, reivindicando uma resposta de Deus para além da morte: Deus nosso, por que nós abandonas? Nunca irás responder aos gritos e gemidos dos inocentes?
Lucas recolhe uma última palavra de Jesus. Apesar da Sua angústia mortal, Jesus mantém até o fim a Sua confiança no Pai. As Suas palavras são agora quase um sussurro: “Pai, nas tuas mãos entrego o Meu espírito”. Nada nem ninguém foi capaz de O separar Dele. O Pai tem animado com o Seu Espírito toda a Sua vida. Terminada a Sua missão, Jesus deixa tudo nas Suas mãos. O Pai quebrará o Seu silêncio e O ressuscitará.
Esta semana santa, vamos celebrar nas nossas comunidades cristãs a paixão e a morte do Senhor. Podemos também meditar em silêncio ante Jesus crucificado, mergulhando nas palavras que ele mesmo pronunciou durante a Sua agonia.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

ANO C | SEMANA SANTA | DOMINGO DOS RAMOS | 14.04.2019


Jesus não está acima de todos, mas a serviço da humanidade!
Com ramos e flores, faixas e bandeiras e cânticos reunimo-nos nas ruas e templos para aclamar nosso líder manso e humilde, nem mito, nem capitão. “Bendito aquele que vem em nome do Senhor!” Só alguém infinitamente grande é capaz de fazer-se tão pequeno e próximo. Na celebração que abre a Semana Santa somos convidados acompanhar Jesus no seu caminho de fidelidade, de oferta generosa de si mesmo e realização plena da vontade do Pai. Deus se recusa a dar uma esmola à humanidade: ele se dá inteiramente e sem reservas em Jesus de Nazaré e, no seu corpo e sangue, assina uma parceria com prazo indeterminado.
Para entender o relato da entrada de Jesus em Jerusalém precisamos abandonar todas as fantasias de poder e de sucesso que nos seduzem e cegam. Não há nada de triunfal. Jesus vem da Galileia e entra na capital do seu país, econômica e politicamente dominado por Roma, montado num jumento. Nada de cortejos de honra, nem de generais e cavalos vistosos ou de gestos de cortesia a grandes senhores. Como diz o hino de Paulo, Jesus chega a Jerusalém como sempre foi: um servidor, um simples homem, esvaziado de ambições e grandezas, radicalmente obediente às necessidades dos outros.
Depois de uma longa caminhada, o profeta galileu chega à capital do país caminhando à frente de um numeroso, entusiasmado e, às vezes, desconcertado grupo de seguidores e admiradores. O povo do campo e da zona periférica da capital o aclama como filho e herdeiro de Davi. “Bendito o Rei que vem em nome do Senhor!” Era um coro de pessoas que, como o velho Simeão, sabiam reconhecer num indignado e revolucionário Aquele que vem em nome de Deus para atualizar sua ação libertadora. Mas isso contrasta com a fria acolhida por parte do povo de Jerusalém e com o medo indisfarçável dos próprios discípulos.
O grupo que acolhe e acompanha Jesus na entrada nada triunfal em Jerusalém saúda o despontar do reino messiânico inspirado em Davi e a chegada do líder enviado por Deus. Ele, porém, não realiza as ações impressionantes que muitos esperavam. Chegando perto da capital, amada e cantada em prosa e verso, Jesus a contempla de longe e chora, lamentando seu fechamento à profecia e seu apego às leis e demais instituições. Ele é o servo paciente e o ouvinte atento da Palavra do qual fala Isaías. E é dessa escuta que brota uma palavra que desperta as pessoas adormecidas e encoraja as pessoas acorrentadas pelo medo.
Entrando em Jerusalém montado num jumento, Jesus faz uma poderosa sátira aos libertadores militares, conhecidos no passado, temidos no presente ou esperados para o futuro. O entusiasmo suscitado num pequeno grupo de gente que morava no entorno da capital não durará muito tempo. Os gritos de ‘hosana’ logo serão substituídos pelo insolente ‘crucifica-o’, fruto da frustração do povo e da manipulação das autoridades. O grupo mais exaltado dos discípulos solta a voz e o proclama o Messias esperado, mas Jesus faz questão de demonstrar seu messianismo radicalmente diferente, pobre e manso.
A divisão entre os discípulos e a possibilidade de traição não fazem Jesus mudar seu plano. É verdade que ele se sente abatido e chega a se perguntar qual direção deveria tomar. No momento crucial, depois da festa de acolhida e da ceia de despedida, enfrenta um discernimento difícil e pede aos discípulos que fiquem com ele e vigiem.  É um exercício de confronto profundo com a vontade do Pai, com a missão escrita em caracteres confusos e exigentes. Para os discípulos de todos os tempos, a oração continua sendo um espaço para discernir com retidão e coerência os caminhos que levam à vida em abundância.
Aclamemos com jovial alegria e convincente esperança o mestre e profeta Jesus de Nazaré. Acompanhemos de perto seus passos, acolhamos seus gestos, escutemos suas palavras. Superemos a tentação de segui-lo de longe e de evitar riscos, como fizeram Pedro e os outros. Não esqueçamos que tantos outros discípulos, pelos séculos a fora, permaneceram com ele, comungaram seu destino e se tornaram semente. Não se trata simplesmente de participar das celebrações, mas de converter-se ao Evangelho de Jesus de Nazaré.
Jesus de Nazaré, filho e herdeiro de Davi, messias servidor e humilde: diante de ti dobramos os joelhos e estendemos nossas vestes e ramos. Abrimos as portas para que entres hoje em nossas praças e cidades, para anunciar com timbre de sino políticas públicas em favor dos cidadãos mais pobres. Ensina-nos de novo a sagrada lição da Ceia e da Paixão: não existe maior prova de amor que lutar pela dignidade das vítimas e doar a vida por quem amamos. E dai-nos a graça da vigilância e da perseverança. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Profecia de Isaías 50,4-7 | Salmo 21 (22)| Carta de Paulo aos Filipenses 2,6-11 | Evangelho de São Lucas 19,28-40

quinta-feira, 4 de abril de 2019

O Evangelho dominical - 07.04.2019


TODOS NECESSITAMOS PERDÃO

Segundo seu costume, Jesus passou a noite sozinho com seu amado Pai no Monte das Oliveiras. O novo dia começa, cheio do Espírito de Deus que o envia para «proclamar a libertação dos cativos... e dar liberdade aos oprimidos». Rapidamente se verá rodeado uma multidão que vai à esplanada do templo para O ouvir.
De repente, um grupo de escribas e fariseus irrompe trazendo uma mulher apanhada em adultério. Não os preocupa o destino terrível da mulher. Ninguém a interroga sobre o que quer que seja. Já está condenada. Os acusadores deixam-no bem claro: “Na Lei de Moisés é ordenado que se apedrejem as adúlteras. E tu, que dizes?”
A situação é dramática: os fariseus estão tensos, a mulher angustiada, as pessoas estão na expectativa. Jesus mantém um silêncio surpreendente. Tem diante de si aquela mulher humilhada, condenada por todos. Em breve será executada. É esta a última palavra de Deus sobre esta sua filha?
Jesus, que está sentado, inclina-se e começa a escrever alguns traços na terra. Certamente procura luz. Os acusadores pedem-lhe uma resposta em nome da Lei. Ele lhes responderá a partir da sua experiência da misericórdia de Deus: aquela mulher e os seus acusadores, todos eles, necessitam do perdão de Deus.
Os acusadores estão pensando apenas no pecado da mulher e na condenação da Lei. Jesus mudará a perspectiva. Colocará os acusadores ante o seu próprio pecado. Ante Deus, todos devem reconhecer-se pecadores. Todos necessitamos do Seu perdão.
Como continuam a insistir cada vez mais, Jesus levanta-se e diz-lhes: “Aquele de vós que não tenha pecado, pode atirar a primeira pedra!” Quem sois vós para condenar aquela mulher à morte, esquecendo os vossos próprios pecados e a vossa necessidade do perdão e misericórdia de Deus?
Os acusadores retiram-se, um após o outro. Jesus aponta para uma convivência onde a pena de morte não pode ser a última palavra sobre um ser humano. Mais tarde, Jesus dirá solenemente: “Eu não vim para julgar o mundo, mas para salvá-lo!”
O diálogo de Jesus com a mulher lança nova luz sobre a Sua atuação. Os acusadores retiraram-se, mas a mulher não se move. Parece que necessita de ouvir uma última palavra de Jesus. Não se sente todavia liberada. Jesus diz-lhe: “Nem eu te condeno. Vai e, a partir de agora, não voltes a pecar!”
Oferece-lhe o Seu perdão e, ao mesmo tempo, convida-a a não voltar a pecar. O perdão de Deus não anula a responsabilidade, mas exige conversão. Jesus sabe que Deus não quer a morte do pecador, mas se converta e viva.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 3 de abril de 2019

ANO C | TEMPO DE QUARESMA | QUINTO DOMINGO | 07.04.2019


A luta contra a corrupção não pode ser cínica nem hipócrita!
Deus está fazendo hoje coisas novas! A fé vivida e testemunhada pelas gerações que nos antecederam serve para acender nossas utopias e iluminar a estrada que devemos percorrer. Paulo deixa bem claro que quem encontra e acolhe Jesus Cristo não tem medo de jogar no lixo costumes, sistemas e doutrinas que hierarquizam, desprezam e escravizam. Iluminados pelo encontro de Jesus com a mulher acusada na praça, assumamos, com força renovada, a luta por políticas públicas em favor da população mais frágil.
Pelo profeta Isaías, é Deus que nos convida a não ter saudades do passado. “Eis que estou eu fazendo coisas novas...” Não é uma promessa: é uma ação em curso, no tempo presente. E Paulo completa, provocando-nos com seu itinerário pessoal: “Esquecendo o que fica para trás, lanço-me para o que está à frente.” Nossas celebrações, assim como a catequese e a pregação, devem pôr em relevo a vida presente, à luz do mistério de Jesus Cristo, e não podem ser reduzidas a uma memória morta de fatos de um passado remoto.
Assim, não podemos ceder à tentação de ler o episódio relatado por João como coisa do passado. Os escribas e fariseus não dão tréguas no zelo pela lei e agem de noite, madrugada adentro: nas altas horas da noite, prendem uma mulher adúltera e a trazem para o centro do círculo que se formara em torno de Jesus, no templo. O centro, que era o lugar da Lei, fora invadido por Jesus e agora é ocupado pela mulher acusada. Até parece que os pobres e oprimidos só ocupam o centro das atenções e sistemas quando são réus.
O cinismo da elite religiosa é impressionante: acusam uma pobre mulher com o objetivo de atingir o próprio Jesus. “Esta mulher foi flagrada cometendo adultério. Moisés, na Lei, nos mandou apedrejar tais mulheres. E tu, o que dizes?” Jesus evita a armadilha, e não lhe passa despercebida a leitura tendenciosa que os escribas e fariseus fazem da Lei de Moisés, pois no Levítico está escrito: “Se um homem cometer um adultério com a mulher do próximo, o adúltero e a adúltera serão punidos com a morte” (Lv 20,10).
Onde foi parar o adúltero, o primeiro citado pela Lei? No fundo, aqueles senhores que se apresentam como zelosos defensores dos direitos de Deus não passam de ferozes agressores dos direitos humanos. E assim como era no passado é também no presente! Em nome do maldito e absoluto direito à propriedade privada, aquela que nos priva de viver e de amar, criminaliza-se os sem-terra, os índios e aqueles que os apoiam. E em nome de um suposta combate a corrupção, foi reconstituído um sistema que privilegia os fortes e o comando do país foi àqueles que mais sabem conviver com a corrupção e se beneficiar dela.
Diante da insistência dos agentes da tradição, dispostos a executar a sentença capital contra a mulher e a denunciá-lo como subversivo diante da Lei, Jesus pronuncia sua sentença: “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra.” Aquela pobre e frágil mulher é transformada numa espécie de espelho no qual todos podem ver suas próprias debilidades, frustrações e transgressões. É como se Jesus dissesse que não faz sentido transformar uma pessoa ou um grupo social em bode expiatório. Mas, infelizmente, continuam sendo muitas as vítimas acusadas sumariamente por detratores que carregam pedras mortais nas mãos e pronunciam palavras ofensivas nos meios de comunicação e redes sociais.
A liberdade lúcida e solidária de Jesus é uma memória e um sonho que, como a recordação do êxodo para os hebreus, enche nossa boca de sorrisos, faz nossa língua cantar de alegria e nos desafia a mudar conceitos e práticas tradicionais. Paulo não brinca quando diz que, por causa de Jesus Cristo, perdeu tudo e jogou no lixo aquilo que sempre lhe parecera precioso e certo. Para ele, diante da pessoa e do projeto de vida de Jesus Cristo, todos os sistemas e ideologias, inclusive religiosas, perderam o sentido. O que resta é a dignidade e a igualdade de todos os humanos. A humanidade acima de tudo e de todos, e precisamos contribuir para a resolução de situações que limitam ou ameaçam os direitos sociais (cf. Texto-base da CF, nº 253).
Jesus de Nazaré, nós te agradecemos pela madura e bela lição que nos ensinas hoje. O que são nossos privilégios, costumes e doutrinas diante da humana solidariedade e da incrível liberdade que nos propões? Que tua Igreja nos inicie na coragem de pôr no centro dos nossos projetos e decisões a defesa e a promoção da dignidade da pessoa humana. Ajuda-nos a desmascarar a hipocrisia e a violência, mesmo quando aparecem maquiadas de luta contra a corrupção. Abre nossas mãos para que não cansemos de semear o teu Reino de liberdade e solidariedade, e possamos esperar abundantes colheitas. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Profecia de Isaías 43,16-21 | Salmo 125 (126)| Carta de Paulo aos Filipenses 3,8-14 | Evangelho de São João 8,1-11