quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Maria Rainha

Maria é a imagem da pessoa tal como Deus a quis

813 | 22 de agosto de 2025 | Lucas 1,26-38

No contexto da caminhada do tempo comum, poucos dias depois da solenidade da Assunção de Nossa Senhora, celebramos a festa de Nossa Senhora Rainha, mesmo que o título ressoe estranho e ultrapassado. E o texto do evangelho segundo Lucas ilumina esta solenidade mariana. Há pessoas cheias de graça que gostam de tratar Maria de Nazaré como “a Comadre Graciosa”, mas sem esquecer que essa graça ela a recebe do Filho e compartilha conosco.

Nesta cena, o papel central é desempenhado pelo Anjo Gabriel, e o clima é de intenso júbilo. O Mensageiro de Deus saúda Maria com uma expressão que pode ser traduzida por “Esteja bem!” ou “Tudo de bom!” O anjo prossegue dizendo que o “charme” (graça) dela encantou o próprio Deus, e que ele gosta de estar com ela. Mas isso terá suas consequências, pois Maria terá que mudar os planos que traçara, e participará da dor e da glória do seu filho.

É claro que o anjo Gabriel não está se referindo à eventual formosura física de Maria de Nazaré. Ele fala de sua humanidade, original e sem pecado, como a criação perfeita sonhada e saída das mãos de Deus. Ela é a imagem da humanidade como Deus imaginou, a pessoa humana na qual brilha a sua imagem: uma pessoa sem dobras, sem ambiguidades, inteira e íntegra, sempre e em tudo o que faz.

Acolhedora, disponível e serviçal, Maria não é mulher passiva, um ser humano sem personalidade e sem iniciativa. Antes, mostra-se uma pessoa atenta e reflexiva. Ela pede explicações, quer compreender, interroga até o próprio mensageiro de Deus. E descobrirá lentamente a bela ação que Deus realiza nela e através dela, dando prioridade e grandeza aos humildes e marginalizados.

Dizendo que “o poder do altíssimo a cobrirá com sua sombra”, o Anjo se refere à nuvem que escondia e manifestava a glória de Deus no êxodo, e apresenta Maria como tenda da presença de Deus no mundo. E o filho que dela nascerá – o fruto bendito do seu ventre – abrirá o caminho de um novo êxodo para uma nova terra.

E o próprio anjo antecipa traços do filho de Maria: ele será grande, será chamado filho do altíssimo, santo, filho de Deus, e herdará o espírito do pastor Davi. No nome que lhe será dado, está sua missão: Deus é salvação. Isso significa que, em Jesus, Deus não se mostrará juiz ou legislador, mas libertador dos oprimidos.

 

Sugestões para a meditação

§ Observe o que o anjo antecipa sobre Jesus de Nazaré, o filho recém-anunciado a Maria, razão de ser da nossa espera e da nossa alegria

§ Deixe ressoar em você as palavras do Mensageiro: “Alegra-te, cheia de graça! O Senhor está contigo! Não tenhas medo! Encontraste graça diante de Deus!”

§ Acolha estas palavras como fundamento da sua vocação de ser íntegro e irrepreensível e da missão na Igreja e no mundo

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Os convidados para a festa

A alegria do Pai é que todos tenham lugar à mesa

812 | 21 de agosto de 2025 | Mateus 22,1-14

O calendário litúrgico-pastoral omite quase dois capítulos do evangelho de Mateus, e nos propõe para hoje o início do capítulo 22. Esta parábola faz parte do quinto bloco narrativo do evangelista. Jesus percorreu um longo caminho e chegou a Jerusalém. Ali ele travará um duro confronto com a instituição do templo e com seus defensores e controladores. Este confronto começa com sua entrada no templo com chicote na mão, e se prolonga em várias parábolas. 

A parábola dos convidados para a festa de casamento é um confronto aberto de Jesus com os fariseus e os mestres da lei, que representam a elite religiosa do judaísmo. Os protagonistas são um rei que convida seus amigos para a festa de casamento do filho (uma alusão a Jesus). Como sabemos, para o mundo e a cultura oriental, comer e festejar significa participar da vontade de Deus e do seu Reino, e evoca as refeições de Jesus com as pessoas excluídas.

Os convidados preferenciais para a festa declinam do convite reiterado do rei, e tratam com violência os mensageiros que ele envia. Na verdade, rejeitam tanto a autoridade de Jesus como enviado e mensageiro do Pai como a participação no dinamismo do Reino de Deus, no qual há lugar para todos. Mesmo vendo seu convite rejeitado e seus enviados tratados com violência, o rei não reage de modo violento, nem pune aqueles que não o reconhecem.

Então, o rei deixa de convidar os que vivem nos templos e nos corredores dos palácios e das cúrias e se dirige às pessoas e grupos que vivem nas encruzilhadas (lugares de mendicância), abrindo a porta do seu Reino a todos, sem exclusão: homens e mulheres, judeus e pagãos, doentes e pecadores, adultos e crianças, bons e maus. É nisso que consiste a alegria do rei, e é nisso que ele se parece com Deus Pai. Sua alegria e seu prazer é ver todos os filhos e filhas reunidos fraternalmente.

A parábola termina fazendo referência a alguém que aceitou o convite, mas não se apresentou à festa com as vestes adequadas e é punido duramente. Trata-se de um sujeito que pretende ser discípulo de Jesus sem assumir um novo jeito de viver, e não de alguém que tenha alguma culpa moral. Os últimos da escala social e aqueles que se dispõem a seguir a Jesus precisam assumir seus valores e suas práticas: dar gratuitamente aquilo que de graça receberam.

 

Sugestões para a meditação

§ Como você vem respondendo a este convite para participar da festa da vida que acolhe quem sempre foi relegado à margem?

§ Você acolhe esse convite com alegria e compromisso, ou “com dor de cotovelo”, como se você e sua classe fossem preteridos?

§ E você está usando a roupa adequada para uma festa de núpcias (prática da justiça) e não se preocupa com a coerência?

terça-feira, 19 de agosto de 2025

A irritante igualdade

A justiça reconhece a igualdade de todos!

811 | 20 de agosto de 2025 | Mateus 20,1-16

Quem quiser ser discípulo de Jesus precisa ter sabedoria e decisão para encarnar o reino de Deus em todas as suas relações. No horizonte da utopia de Jesus, justiça e a bondade não estão no mérito e na aplicação da lei do “cada um recebe o que merece”. A lógica do Reino de Deus inverte os valores, e estabelece a prioridade dos últimos e desprezados sobre os ricos e privilegiados.

Na parábola de hoje, o personagem central é um chefe de família patriarcal. A primeira cena trata da contratação de diaristas para trabalhar no seu campo. Mas tudo está focado na segunda cena, ou seja, no acerto de contas pelo trabalho realizado pelos trabalhadores contratados em diferentes horas do dia. A todos o chefe da família prometera pagar o que seria justo, e não um valor estabelecido.

As pessoas contratadas na primeira hora assistem ao pagamento das que foram contratadas no fim do dia, que recebem, por poucas horas de trabalho, um valor que permitia a subsistência diária, e isso alimenta a expectativa de que receberiam bem mais, pois haviam feito por merecer. Mas o contratante não se orienta pela meritocracia, e sim pela justiça e pela bondade, e retribui a todas igualmente.

O grupo que se julga merecedor de uma retribuição maior se irrita por ter sido igualado aos demais. De fato, o pai de família não age conforme o costume, não reforça a competição e a distinção de classes. A irritação brota da inconformidade por terem sido igualados aos mais necessitados. Eles protestam contra a igualdade fundamental de todos os trabalhadores!

Com esta parábola, Jesus nos convoca a tomar uma posição radical, como ele mesmo o fez: assumir um estilo de vida alternativo também na economia, agindo na perspectiva do Reino de Deus, guiando-nos pela necessidade das pessoas e pela gratuidade, ou pela economia do dom, como a chama o Papa Francisco.

Será que também nós, depois de dois mil anos de cristianismo, caímos na armadilha de nos sentir melhores que os outros? Em que medida ainda tratamos as pessoas, grupos, religiões e classes sociais a partir daquilo que achamos que ‘merecem”? Será que ainda defendemos a velha moral econômica que recomenda dar a cada um o que merece? Chegamos a perceber que a lógica de Deus é outra, é diferente?

 

Sugestões para a meditação

§ Com esta parábola, Jesus provoca fortemente as pessoas, tanto os judeus como seus discípulos, a superar a lógica do mérito

§ Deixe ressoar em você a afirmação clara e provocativa de Jesus mediante a parábola do patriarca generoso e solidário

§ Peça a Jesus a graça de se comprometer e se alegrar com os pequenos e grandes sinais de emancipação dos pobres

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

A agulha e o camelo

O discípulo de Jesus não acumula créditos!

810 | 19 de agosto de 2025 | Mateus 19,23-30

Ontem meditamos o instigante episódio do jovem religioso e rico que se candidatou a discípulo de Jesus. Diante da exigência de distribuir os bens aos pobres e se colocar a caminho com os demais discípulos, ele voltou atrás, e preferiu ficar com os bens a seguir Jesus. Na verdade, os bens o possuíam e impediam de ser livre para.

A atitude desse jovem leva Jesus a sublinhar que o apego aos bens e a alguns vínculos que aparentemente dão segurança são entraves à adesão ao Reino de Deus. A metáfora da agulha e do camelo não deixa dúvidas: que uma pessoa rica aceite o desafio do Reino de Deus não é apenas difícil, mas impossível, a menos que se desapegue e corrija suas práticas injustas para acumular bens e os partilhe com os pobres, os verdadeiros “proprietários” daquilo que nos sobra.

Os discípulos ficam assustados com esta afirmação de Jesus. Eles bebem da ideologia religiosa que considera a riqueza um sinal da benção divina, e os ricos, já socialmente privilegiados, como muito amados e favorecidos por Deus. Por isso, pensam que se os ricos não se salvam (não entram no Reino, não são perfeitos) ninguém poderá se salvar. Mas Jesus crê que a fé sincera pode produzir mudanças: quem descobre o valor do Reino, arrisca tudo, como aquele trabalhador que vendeu tudo para comprar o campo, ou aquele negociante, que faz o mesmo pela pérola preciosa.

Então Pedro, em nome dos demais discípulos, observa que eles, diferentemente daquele jovem apegado às suas coisas, deixaram tudo e estão seguindo Jesus. De fato, deixaram a família e os contratos de trabalho de pesca, e entraram no caminho da busca do Reino, embora não tenham distribuído os bens aos pobres. Eles perguntam que benefício terão, pois acham que merecem. Por isso, podemos dizer que Pedro se mune de coragem e, em nome dos colegas, cobra a conta de Jesus.

Jesus responde acenando para o futuro, quando o Reino de Deus será plenamente realizado. Então aqueles que hoje são colocados em último lugar serão reconhecidos em sua dignidade e grandeza, terão influência e atrairão outros por seu testemunho de vida. Mas sem seguimento radical de Jesus, os que hoje são badalados podem se ver no último lugar, como uma simples nota de rodapé no livro da história.

 

Sugestões para a meditação

§ Há algo que ainda amarra você e o impede de entregar-se à aventura de criar novos céus e nova terra, sem regatear nada?

§ Em que medida você também participa da ideologia que considera os estudados, ricos e poderosos como abençoados por Deus e os pobres como culpados?

§ Qual é o obstáculo faz com que a vida dos cristãos não tenha hoje grande poder de influência e exerça pouca atração?

§ Você já ouviu sermões que tentam amenizar a metáfora do camelo e da agulha, fazendo possível conjugar o apego aos bens com a fé em Jesus?


domingo, 17 de agosto de 2025

O que fazer?

Não basta cumprir bem as leis e os mandamentos!

809 | 18 de agosto de 2025 | Mateus 19,16-22

Nos últimos dias, estamos meditando trechos do Evangelho nos quais Jesus nos apresenta o dinamismo inovador, transformador e provocador do reino de Deus nos diversos campos das relações humanas: nas relações entre as classes sociais, nas relações no interior das famílias, nas relações entre homem e mulher, na relação com Deus e a religião, etc. Hoje, o foco é a relação do discípulo com os bens.

Ao que parece, o jovem que busca Jesus faz parte da elite de Israel. Ele tem muitos bens e, conforme o que ele mesmo afirma, pratica fielmente os mandamentos, e isso desde a mais tenra juventude. Está preocupado com a felicidade individual, trata Jesus como os mestres da lei o tratavam, mas parece estar no caminho certo e bem-intencionado. Ele pergunta a Jesus o que deve fazer de bom, ou como ser bom.

Vida eterna equivale a perfeição ou justiça, a ser salvo, a entrar no Reino de Deus. Mas este jovem busca um caminho seguro para “possuir” a vida eterna, e não para “deixar-se possuir” e conduzir por Deus e seu Reino. Jesus responde a ele sublinhando que não há nada (coisa) perfeitamente bom, mas apenas Alguém que é bom, e faz uma referência indireta ao que o profeta Miquéias já havia dito (respeitar o direito, amar a felicidade e caminhar humildemente com Deus (cf. 6,8) e aos mandamentos, enfatizando as relações justa e equitativas com os irmãos.

Sem dar ouvidos à afirmação de Jesus, o jovem demonstra que se considera bom e perfeito, escondendo que os muitos bens que possui poderiam ser resultado de exploração e roubo. Mas, para Jesus, a prática dos mandamentos não é suficiente para ser bom. Por isso, leva o jovem dar-se conta que lhe falta a justiça e o amor aos pobres. Trata-se do amor que leva à partilha e à restituição daquilo que por direito pertence aos necessitados, condição essencial para seguir Jesus.

O jovem não está disposto a fazer isso, nem a caminhar com os demais discípulos. Ele é possuído pelos bens que pensa possuir, não é livre, não é bom, não ousa iniciar um caminho de despojamento e conversão. Na verdade, ele não é capaz de considerar o reino de Deus como seu único tesouro. A riqueza o sufoca, como os espinheiros sufocam parte da semente (cf. Mt 13,22). E isso ressoa como advertência quando caímos na tentação de considerar-nos justos e bons. “Conversão, justiça, comunhão e alegria, no cristão, é missão de cada dia!”

 

Sugestões para a meditação

§ Com que intenções você procura Jesus e a vida cristã? O desejo de perfeição, de renovação total e profunda é o que move você?

§ Como você se avalia em relação aos preceitos da Igreja? Você os considera suficiente para ser bom, e se acha bom praticante?

§ O que ainda impede você de entregar-se na aventura de criar novos céus e nova terra, com Jesus e todos aqueles que o seguem?

sábado, 16 de agosto de 2025

Semana Nacional da Família

Deus conhece a dor e a delícia de ser família

No mês de agosto, dedicado inteiramente às vocações, as comunidades católicas celebram a Semana Nacional da Família. E quando tratamos do tema da família, é recorrente a referência à bíblia, particularmente à família biológica de Jesus. Mas esse recurso pode se tornar arriscado se ignoramos a distância histórica e cultural entre a família oriental do tempo de Jesus e as famílias ocidentais do século 21. Consideremos brevemente essa questão.

Nos evangelhos, a Sagrada Família de Nazaré aparece como uma autêntica família judaica, herdeira fiel das esperanças messiânicas que alimentavam a vida dos pobres, guardiã fiel e praticante das orientações religiosas do judaísmo. Ao mesmo tempo, os evangelhos mostram a família de Jesus como o gérmen da nova família humana, sustentada e orientada pela utopia do Reino de Deus como graça que congrega as pessoas e derruba as barreiras.

Por estar radicada em Nazaré, na Galiléia, e por desempenhar trabalhos artesanais, no olhar das famílias de Jerusalém, a Sagrada Família carregou a marca da suspeita e do menosprezo. O domicílio em Nazaré sublinha a inserção da Sagrada Família no povo de Israel, como numa espécie de grande família étnica. O crescimento de Jesus ocorre nessa interação viva. Ele aprende e ensina, unindo a relação com Deus e a relação com os homens e com o seu povo.

Em relação à família tradicional, Jesus foi uma espécie de transgressor. Rompeu com ela e afastou-­se das suas expectativas, que consistia em casar, cuidar da família e lutar pela sobrevivência. Vivendo o celibato, Jesus transgrediu também a obrigação de casar e gerar filhos, algo impensável para um rabino. Viveu a partir do sonho do reino de Deus, interessou­-se pelas pessoas simples da Galiléia, identificou­-se com seus problemas e esperanças.

Esta opção de Jesus pela utopia do Reino de Deus e pela defesa vida das vítimas está na raiz do conflito com sua família. Seus parentes tiveram dificuldades de acreditar nele e até pensaram que havia enlouquecido. O desfecho deste conflito foi o distanciamento da família de sangue e uma opção por uma vida itinerante. A comunidade que nasceu da sua pregação também foi crítica em relação aos laços familiares, como testemunham es escrituras.

Este distanciamento de Jesus em relação à sua família de sangue, especialmente no período de sua missão pública, não significa que as experiências afetivas e familiares da infância e da juventude não tenham permanecido vivas. Tudo o que ele aprendeu, amou e sonhou em Nazaré aflorou mais tarde na sua pregação: o valor das coisas pequenas e escondidas, a solidariedade com os vizinhos, o caráter paterno e próximo de Deus.

No que se refere a José e Maria, podemos dizer que eles realizaram de modo exemplar a participação na família nova, inaugurada pelo filho Jesus Cristo, em obediência ao Pai. Também eles cumpriram com prontidão a vontade do Pai. Marcada pelo ambiente simples e desprezado de Nazaré, a Sagrada Família, foi protagonista e modelo na busca e no cumprimento da vontade do Pai. Mas aqui já não temos mais a simples família tradicional.

Jesus ocupa um lugar central na Sagrada Família de Nazaré. Sua presença se irradia sobre Maria e José: eles se comovem, impressionam e maravilham diante da novidade; acolhem e recebem seu mistério do Reino de Deus, embora, por vezes, fiquem atrapalhados e desorientados. Jesus transcende seus próprios pais, e isso os estimula ao crescimento na compreensão do mistério de Deus na sua vida. Eles se tornarão discípulos do próprio filho!

Dom Itacir Brassiani msf

Bispo Diocesano de Santa Cruz do Sul

Assunção de Maria

O Senhor Deus é fiel e fez por nós maravilhas!

808 | 17 de agosto de 2025 | Lucas 1,39-56

O texto do evangelho de hoje é escolhido para iluminar a solenidade da Assunção de Maria de Nazaré, a Mãe do Filho de Deus, ao céu, em sua integridade e unidade pessoal. É uma afirmação recente da Igreja católica (1950), que recolhe uma tradição milenar e indicativos esparsos nas Escrituras e na Tradição. Com esta celebração sublinhamos a vocação humana à vida plena e a dignidade do corpo, especialmente a dignidade e a corporeidade das mulheres.

O episódio evangélico que nos é proposto traduz de modo plástico e poético a presença libertadora de Deus na história, assim como a serena alegria que ela desperta na oração e no cântico dos pobres. Não se trata de um sonho utópico e inalcançável, mas de uma esperança segura, que se fundamenta na fidelidade de Deus revelada ao longo da história do povo de Israel e das comunidades cristãs. É uma esperança que não engana.

A primeira parte da cena é uma ampliação do evento da anunciação do anjo Gabriel a Maria e, ao mesmo tempo, uma confirmação dos sinais indicados por ele.  Recebendo a graciosa e inesperada visita de Maria, que nos ensina a não tardar a ir ao encontro de quem precisa de nós, Isabel proclama e saúda a presença do Messias amado e esperado no seio dela, com a mesma surpresa e alegria com as quais Davi e o povo de Israel saudaram a presença fiel e libertadora de Deus na Arca da Aliança.

O próprio João Batista, ainda no ventre profético de Isabel, antecipa essa alegria messiânica, e, com a mãe, reconhece e celebra a presença de Deus no meio do povo. Maria é aclamada por Isabel e pela Igreja nascente como bem-aventurada porque acreditou na verdade e na força fecunda da Palavra de Deus. Nas suas palavras e a seu modo, Isabel desvenda o significado profundo da maternidade de Maria. E assegura, com força feminina, que as promessas de Deus serão cumpridas.

Maria intervém com um cântico profético no qual celebra a ação de Deus no passado e no presente, e assegura a fidelidade da sua misericórdia no futuro. Nesse cântico ela, serva humilde e humilhada, representa todos os pobres e peregrinos agraciados por Deus que visualizam um mundo novo, que vence e supera forças as estruturas que dominam e excluem. Em Maria elevada ao céu e em seu cântico profético, o êxodo se renova e as bem-aventuranças são antecipadas.

 

Sugestões para a meditação

·    Reconstrua a cena, acompanhando Maria na sua caminhada de Nazaré à Judéia, ao seu encontro alegre e revelador com sua parenta Isabel

·    Deixe-se envolver pela alegria messiânica que ilumina e renova Maria, Isabel e João Batista e as comunidades apostólicas

§ Repita, com Isabel, a saudação mística e profética com a qual recebe e celebra a visita de Deus ao seu povo

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Ser como as crianças

No Reino de Deus, todos somos irmãos e aprendizes

807 | 16 de agosto de 2025 | Mateus 19,13-15

Do início ao fim dos seus relatos, os quatro evangelistas são unânimes em sublinhar a atenção e a sensibilidade de Jesus para com as pessoas e grupos sociais tratados como insignificantes e, por isso, mais vulneráveis. Estrangeiros, mulheres, crianças, doentes e pecadores representam esses grupos. Mas aos próprios discípulos custa muito aceitar e assimilar essa maneira revolucionária de ver e de tratar as pessoas.

O episódio do evangelho de hoje ilustra isso na relação com as crianças. Na sociedade de então, elas não tinham direitos, deviam obedecer e se submeter, estavam à margem. Elas não tinham lugar numa cultura patriarcal. Quando algumas pessoas, encorajadas pela compaixão de Jesus com os fracos, levaram crianças para que ele as abençoasse, os discípulos interviram e repreenderam-nas, pois viam a presença delas como um incômodo. Eles reagiram dentro do estreito no horizonte do patriarcalismo no qual haviam sido formados e viviam.

Jesus censura duramente esta atitude dos discípulos, e declara que o Reino de Deus pertence às crianças. Para Jesus, as pessoas frágeis e marginalizadas, como são as crianças, nos ensinam e, por isso, em outras alocuções, ele pede que seus discípulos sejam como elas. Elas são uma metáfora do autêntico e alegre seguimento de Jesus! E se elas participam do Reino de Deus, obviamente devem ter um lugar também no interior da comunidade cristã. Não há dúvida!

Como as pessoas que vêm de baixo e das margens acolhem a mensagem do Reino e reconhecem Jesus como enviado do Pai, também os discípulos devemos aceitar nossa condição de grupo socialmente marginalizado e insignificante, mas também alternativo e gerador de uma nova sociedade. Como o Reino de Deus e as crianças, a comunidade dos discípulos e discípulas vive neste mundo um caminho de transição para um futuro maduro e pleno.

Na comunidade sonhada e iniciada por Jesus, todos somos discípulos e irmãos. Não há pai ou patriarca. Todos são iguais em dignidade, sem nenhuma distinção. Os bispos do Brasil já diziam, e o último Sínodo da Igreja confirmou: a dignidade dos cristãos não está no ministério (ordenado ou extraordinário) que exercem, mas na sua condição de batizados e ungidos pelo Espírito Santo. Ser cristão é a razão da nossa alegria e a fonte da nossa missão.

 

Sugestões para a meditação

§ Em que medida estamos à margem das badalações, partilhando as lutas e esperanças das pessoas e grupos marginalizados e tratados como um incômodo?

§ Ajudamos a abrir brechas para que essas pessoas se encontrem com o Evangelho de Jesus e sejam socialmente reconhecidas?

§ Como essas pessoas e grupos sociais são acolhidas e tratadas em nossas comunidades cristãs e seus organismos e serviços?

Eu vim espalhar o fogo!

O FOGO DO AMOR

Dá medo pronunciar a palavra «amor». É uma palavra tão prostituída que nela cabe o melhor e o pior, o mais sublime e o mais mesquinho. No entanto, o amor está sempre na fonte de toda a vida sã, despertando e fazendo crescer o melhor que há em nós.

Quando falta o amor, falta o fogo que move a vida. Sem amor, a vida apaga-se, vegeta e acaba extinguindo-se. O que não ama fecha-se e isola-se cada vez mais. Gira loucamente sobre os seus problemas e ocupações, fica aprisionado nas armadilhas do sexo, cai na rotina do trabalho diário: falta-lhe o motor que move a vida.

O amor está no centro do Evangelho, não como uma lei que há que cumprir disciplinadamente, mas como o «fogo» que Jesus deseja ver arder sobre a terra, para além da passividade, da mediocridade ou da rotina da boa ordem. Segundo Jesus de Nazaré, Deus está próximo de nós procurando fazer germinar, crescer e frutificar o amor e a justiça do Pai. Esta presença de um Deus que não fala de vingança, mas de amor apaixonado e justiça fraterna, é o mais essencial do Evangelho.

Jesus vê o mundo como cheio da graça e do amor do Pai. Esta força criadora é como um pouco de levedura que há de fermentar a massa, um fogo aceso que há de fazer arder o mundo inteiro. Jesus sonha com uma família humana habitada pelo amor e pela sede de justiça, com uma sociedade que busca apaixonadamente uma vida mais digna e feliz para todos.

O grande pecado dos seguidores de Jesus será sempre deixar que o fogo se apague: substituir o ardor do amor pela doutrina religiosa, a ordem ou cuidado do culto; reduzir o cristianismo a uma abstração revestida de ideologia; deixar que se perca o seu poder transformador. No entanto, Jesus não se preocupou primordialmente em organizar uma nova religião ou inventar uma nova liturgia, mas encorajou um «novo ser», o nascimento de um homem novo radicalmente movido pelo fogo do amor e da justiça.

José Antônio Pagola

Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Sobre o divórcio

Jesus propõe uma alternativa à família patriarcal

806 | 15 de agosto de 2025 | Mateus 19,3-12

Há alguns dias estamos lendo e meditando as orientações de Jesus para a encarnação da novidade do Reino de Deus nas relações comunitárias e sociais. Hoje, a atenção se volta para as relações no interior da família, especialmente para as relações conjugais. A reflexão de Jesus é oportunizada por mais uma pergunta provocadora vinda da boca dos fariseus, que se posicionam como adversários de Jesus.

O ensino de Jesus é uma contundente defesa da dignidade das mulheres, no contexto de uma cultura patriarcal, na qual o marido tem direito de vida e de morte sobre a mulher. A família nascida da cruz de Jesus e reconfigurada pelo Reino de Deus rejeita de forma inequívoca as relações patriarcais, que eram aceitas como normais e normativas no mundo cultural romano e judaico. Mas essa aceitação e defesa volta de modo inesperado nos albores do século XXI.

Para Jesus, o matrimônio deve ser entendido em outra perspectiva, sem o domínio da figura masculina. Os fariseus tinham dificuldades de entender e aceitar isso. Para eles, a mulher fazia parte das propriedades do homem e a ele deveria ser submissa. Mas, para Jesus, as relações matrimoniais devem ser pautadas pela igualdade, pela reciprocidade, pela solidariedade e pela unidade. Este é o querer de Deus sobre o casal humano. Esta é a família verdadeiramente cristã e tradicional!

No enfrentamento com Jesus e no ensino ao povo, os fariseus e doutores da lei fazem uma leitura distorcida da Lei, e dizem que é ordem para todos aquilo que Moisés permitiu apenas como exceção. Mesmo fazendo essa concessão à dureza dos homens, Moisés pediu garantias à mulher divorciada, limitando o “direito ao despejo”. Jesus, por sua vez, propõe uma releitura da vida conjugal a partir da vontade original de Deus, sublinhando que homem e mulher se tornam uma unidade profunda, e nada deve desfazê-la.

Isso escandaliza os discípulos, contaminados também eles pela ideologia patriarcal. Jesus não se incomoda, e radicaliza ainda mais: além de tomarem como modelo as crianças, seus discípulos podem também se espelhar nos eunucos, outro grupo de pessoas desprezadas e marginalizadas pela excludente cultura patriarcal.

 

Sugestões para a meditação

§ Como você vive a vocação de ser uma só carne (comunhão, reciprocidade e solidariedade) na vida conjugal?

§ Em que medida vocês conseguem superar as relações ditadas pelo patriarcalismo e pelo individualismo?

§ Você tem conseguido superar uma compreensão machista e excludente da Palavra de Deus?

§ Como são tratadas as mulheres, as crianças e as pessoas homo afetivas na sua família e na sua Igreja?