quinta-feira, 8 de setembro de 2016

O Evangelho dominical - 11.09.2016

UMA PARÁBOLA PARA OS NOSSOS DIAS

Em nenhuma outra parábola Jesus nos faz penetrar tão profundamente no mistério de Deus e no mistério da condição humana. Nenhuma outra parábola é tão atual para nós como esta do «Pai bom».
O filho mais novo diz ao seu pai: «dá-me a parte que me toca da herança». Ao reclamar, está a pedir de alguma forma a morte do seu pai. Quer ser livre, romper obrigações. Não será feliz até que o seu pai desapareça. O pai cede ao seu desejo sem dizer uma só palavra: o filho tem de escolher livremente o seu caminho.
Não é esta a situação atual? Muitos querem hoje ver-se livres de Deus ser felizes sem a presença de um Pai eterno no seu horizonte. Parece que Deus deve desaparecer da sociedade e das consciências. E, o mesmo que na parábola, o Pai guarda silêncio. Deus não condiciona ninguém.
O filho parte para «um país longínquo». Necessita viver noutro país, longe do seu pai e da sua família. O pai vê-o partir, mas não o abandona; o seu coração de pai acompanha-o; em cada manhã o estará esperando. A sociedade moderna afasta-se mais e mais de Deus, da Sua autoridade, da sua memória… Não estará Deus acompanhando-nos enquanto o vamos perdendo de vista?
Prontamente se instala o filho numa «vida desordenada». O termo original não sugere apenas uma desordem moral mas também uma existência insana, demente, caótica. Ao fim de pouco tempo, a sua aventura começa a converter-se em drama. Vem uma «fome terrível» e só consegue sobreviver tratando de porcos como escravo de um desconhecido. As suas palavras revelam a sua tragédia: «Eu aqui morro de fome».
O vazio interior e a fome de amor podem ser os primeiros sinais do nosso afastamento de Deus. Não é fácil o caminho da liberdade. Que nos falta? O que nos poderia encher o nosso coração? Temos quase tudo, por que sentimos tanta fome?
O jovem «entrou dentro de si mesmo» e, afundado no seu próprio vazio, recordou o rosto do seu pai associado à abundância de pão: em casa do meu pai «têm pão» e aqui «eu morro de fome». No seu interior desperta-se o desejo de uma liberdade nova junto do seu pai. Reconhece o seu erro e toma uma decisão: «Ponho-me a caminho e voltarei ao meu pai».
Iremos pôr-nos a caminho em direção a Deus nosso Pai? Muitos o fariam se conhecessem esse Deus que, segundo a parábola de Jesus, «sai a correr ao encontro do seu filho, atira-se ao seu pescoço e beija-o efusivamente». Esses abraços e beijos falam do seu amor, melhor que todos os livros de teologia. Junto a Ele poderíamos encontrar uma liberdade mais digna e ditosa.
José Antonio Pagola
Tradutor: Antonio Manuel Álvarez Perez

ANO C – VIGÉSIMO-QUARTO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 11.09.2016

É digno de fé o Evangelho da misericórdia de Deus!

A Palavra e a ação de Jesus trazem à tona uma divisão tão real quanto inaceitável: de um lado estão os chamados ‘publicanos e pecadores’, e, do outro, estão os considerados ‘justos’, aqueles que se dispensam de qualquer movimento de conversão. Na ideologia religiosa de Israel, os primeiros são da parte do mal, os ímpios ou impuros; os segundos são os piedosos e puros, ‘gente de bem’. Fiel à sua experiência de Deus, no horizonte da tradição profética, Jesus se aproxima e se coloca ao lado do grupo dos pecadores e impuros, e afirma que, na lógica do Reino de Deus, os últimos são os primeiros...
É isso que Jesus quer ilustrar com as três parábolas do evangelho de hoje. As pessoas tachadas de pecadoras são como a ovelha perdida, procurada com incomparável empenho pelo pastor, como uma pequena moeda extraviada e procurada incansavelmente pela dona de casa, como um filho amado que caiu no fundo do poço da degradação e da exclusão. O que importa não é o que levou ao extravio, mas a alegria do pastor, da dona de casa e do pai. “Alegrai-vos comigo! Encontrei a minha ovelha que estava perdida... Encontrei a moeda que tinha perdido... Meu filho estava morto e voltou a viver!”
Mas tenhamos muita atenção com a interpretação da terceira parábola! Falando de dois filhos, Jesus estabelece uma clara correspondência com os dois grupos que se dividem em relação a ele: os pecadores e excluídos, que se aproximam para escutá-lo; os fariseus, que murmuram contra ele. A parábola começa aparentemente dando razão aos fariseus e escribas. O filho mais novo pede sua parte da herança, vai embora, gasta tudo sem o menor controle e acaba empregado na criação de porcos em terra estrangeira. Aqui, a parábola ressalta mais sua situação de miséria, exploração e marginalização que sua culpa!
A situação desse filho é tão desesperadora que ele acaba se convencendo de que perdeu todos os direitos e se resigna a ser tratado como empregado na casa do próprio pai. Esta é a experiência subjetiva dos doentes, estrangeiros, pecadores, mulheres e tantos outros no tempo de Jesus. Mas Jesus sublinha que, aos olhos de Deus, não há gente de primeira classe e gente desclassificada, filhos cheios de direitos e filhos deserdados. Para Deus a humanidade é indivisível! Avistando de longe o filho miserável, e antes de qualquer palavra de arrependimento, o pai vai ao encontro dele absolutamente comovido.
Eis a boa notícia! Deus se recusa a aceitar uma humanidade dividida entre uns poucos que se presumem irrepreensíveis, merecedores de todos os bens, e uma multidão que deve repetir o refrão das culpas que lhe atribuem e mendigar até a simples sobrevivência. Deus rompe com as regras de uma justiça estreita e escancara as portas da sua casa aos necessitados e pecadores. As ações aparentemente exageradas do pai sublinham exatamente isso. Deus não se contenta e possibilitar apenas que o filho sobreviva! O pai não lhe dá uma roupa qualquer, mas a melhor túnica; não mata um simples novilho, mas o mais gordo...
E uma ação de resgate da cidadania e inclusão social como essa precisa ser solenemente festejada, sem dar atenção aos que murmuram e se recusam a participar. Na postura e nas palavras do filho mais velho ressoam os protestos e a presunção dos fariseus e escribas de todos os tempos e latitudes. Para eles, os pobres sofrem por própria culpa, e os ricos vivem bem porque merecem. Como não perceber aqui o eco do desconforto e da raiva das elites brasileiras que, a golpe de mídia e de falsas legalidades, querem impedir o bem-estar mínimo que os pobres conseguiram recentemente em terras brasileiras?
Jesus Cristo é a Palavra de Deus feita carne, o ‘sim’ irrevocável de Deus à humanidade. Nele todas as promessas de Deus se unificam e recebem concretude. Nele o Verbo deixa de ser conceito e se torna ação. Nele Deus liberta falando e fala libertando. Sua ação libertadora se condensa no resgate da cidadania dos excluídos, e a Palavra vivificante se resume no anúncio do início de um tempo, regido pela gratuidade e pela compaixão. É essa a experiência que vira a vida de Paulo de cabeça para baixo e que ele descreve na sua carta o amigo Timóteo.  “É digna de fé e de ser acolhida por todos esta Palavra...” 
Tem paciência conosco, Senhor, mas não permitas que nos fechemos em nós mesmos e nos interesses do nosso próprio e pequeno grupo. Tu vieste ao mundo para salvar os pecadores, e nós somos os primeiros entre eles. Tu vieste para libertar os oprimidos, e são tantos os que ainda só podem contar conosco para terem sua dignidade reconhecida. Vem ao nosso encontro, regenera-nos no teu abraço, toma-nos pela mão e faz com que entremos na tua casa e participemos da festa de acolhida daqueles que estavam perdidos e foram encontrados, estavam mortos e voltaram a viver. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Livro do Êxodo 32,7-14 * Salmo 50 (51) * 1ª Carta a Timóteo  1,12-17 * Evangelho de São Lucas 15,1-32)

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Preparando o domingo - 11.09.2016

A ovelha, a moeda e o filho, perdidos e achados (Lucas 15,1-32)


O rosto de Deus em uma só palavra
O Evangelho de Lucas prima pela sua ênfase na misericórdia de Deus. Se fosse para classificar numa só palavra o rosto de Deus em Lucas, poderíamos sem hesitação assinalar “misericórdia”. Talvez nenhum capítulo saliente esta convicção tanto como o capítulo 15, que hoje lemos na sua totalidade.
As três parábolas aqui relatadas são entre as mais conhecidas da Bíblia, geralmente chamadas (com razão ou não) “A Ovelha Perdida”, “A Moeda Perdida” e “O Filho Pródigo”. Talvez devamos ter um pouco de cuidado com esses títulos, pois já indicam uma possível interpretação, não necessariamente a mais adequada, do ponto central de cada parábola.
De fato, cada parábola poderia ficar independente, e ter a sua interpretação fora do contexto da sua colocação em Lucas. Mas para que sejamos fiéis à intenção do evangelista, devemos interpretá-las dentro do seu esquema teológico e literário. A Parábola da Ovelha também existe em Mateus, mas dentro de outro contexto e com outros destinatários, tornando-se a parábola da “Ovelha Desgarrada”. Em Mt 18,12-14, a parábola é dirigida aos discípulos, enquanto em Lc é contada para os fariseus e escribas. Como os destinatários são diferentes, também a sua mensagem é diferente nos dois contextos.
Esse homem acolhe os pecadores e come com eles! 
Para entender melhor o que Lucas quer ensinar, devemos dar muita atenção aos primeiros dois versículos do capítulo 15, pois, estes versículos nos fornecem o motivo pelo qual Jesus contou as parábolas, e, por conseguinte, uma chave valiosa de interpretação. Funcionam como um gancho sobre o qual se pendura o resto do capítulo: “Todos os cobradores de impostos e pecadores se aproximavam de Jesus para escutá-lo. Mas, os fariseus e os doutores da Lei criticavam a Jesus, dizendo: “Esse homem acolhe pecadores, e come com eles!” (vv.1-2). Depois, vem a chave de interpretação: “Então Jesus contou lhes esta parábola” (v . 3).
Ou seja, Jesus contou estas parábolas porque os fariseus e doutores da Lei o criticavam por associar-se com gente de má fama! Então a chave de interpretação é a atitude dos fariseus e doutores, contestada pelo ensinamento de Jesus.
Neste sentido podemos interpretar a parábola conhecida como a parábola da “Ovelha Perdida”. Jesus, diante da intransigência dos fariseus, pergunta: “Se um de vocês tem cem ovelhas e perde uma, será que não deixa as noventa e nove no campo para ir atrás da ovelha que se perdeu, até encontrá-la?” (v. 4). A resposta razoável é “não”: nenhum pastor, com a cabeça no lugar, deixaria noventa e nove ovelhas à deriva para tentar encontrar uma ovelha perdida. Seria loucura!
Mas, exatamente aqui está o sentido da parábola. Deus faz loucuras por amor a nós! Ele é capaz de fazer o que nenhuma pessoa humana faria: ir atrás da ovelha perdida, custe o que custar, até achar e trazer de volta! Aqui a parábola funciona não por comparação, mas por contraste: Deus é o oposto dos homens, que só agem através de decisões calculistas. Faz loucura, e a loucura do amor consegue o que a razão jamais conseguiria, a volta da ovelha perdida!
Assim, se faz contraste entre a atitude de Deus e a atitude dos fariseus e doutores da Lei! Nos questiona sobre as nossas atitudes diante das “ovelhas perdidas” das nossas comunidades e famílias! Agimos como os fariseus, com censuras e moralismos? Ou, como Deus, com a loucura do amor?
Para as/os pobres, até uma moeda pequena faz falta!
Retoma-se a mensagem na segunda parábola, a parábola da “moeda perdida”. Não que ela fosse de tão grande valor. Mas para a pobre, até uma moeda pequena faz falta! Então, a mulher faz questão de virar a casa (as casas não tinham janelas, por isso precisava acender uma lâmpada) até achá-la.
É assim com Deus! Talvez a gente ache que uma pessoa não tenha grande valor, mas para Deus faz falta, e Ele é capaz de “exagerar” para recuperar a pessoa perdida, por tão insignificante que possa parecer. Mais uma vez, um contraste com a atitude elitista dos fariseus - e quem sabe, de muitos cristãos hoje!
O processo de conversão
Por fim, chegamos à parábola do “Filho Pródigo”, ou do “Pai que perdoa”, ou dos “Dois Irmãos”, conforme a interpretação e o gosto de cada um. Fiquemos somente com o texto sagrado e não com os subtítulos! Podemos ler este texto a partir do filho perdido, ou do pai, ou do irmão mais velho. O título tradicional implica uma leitura a partir do “pródigo” (esbanjador). Assim, ressaltaria o processo de conversão: sentir a situação perdida, decidir a pedir reconciliação, ser aceito pelo pai, reativar os relacionamentos perdidos e estragados. Sem dúvida, uma leitura válida do texto como tal, mas diante dos primeiros três versículos do capítulo, não a interpretação primária que Lucas queria dar.
Outra possibilidade é de ler a história a partir do pai. Sem dúvida, também válido. Assim, o pai representa o próprio Deus, que em primeiro lugar, respeita a liberdade de decisão do filho, não impedindo que ele seja “sujeito” da sua vida; depois não espera a volta do “pródigo”, mas corre ao seu encontro, numa atitude não “digna” de um patriarca oriental idoso, preocupado mais com a reconciliação do que com o prejuízo, e que se alegra com a volta de quem estava morto! Mais uma vez, uma leitura mais do que aceitável!
Mas, o contexto do capítulo 15, à luz dos primeiros versículos, sugere uma leitura diferente: ler a parábola a partir do irmão mais velho. Jesus conta a parábola para contestar a atitude dos fariseus e doutores da Lei, que o reprovam porque Ele acolhe os pecadores! Então, o filho mais velho é imagem dos fariseus, “gente boa”, fiel na observância da Lei, mas cujos corações estão fechados, a ponto de serem incapazes de alegrar-se com a volta de um irmão perdido. Assim, embora observem minuciosamente todas as prescrições da Lei, a sua atitude contradiz claramente a atitude de Deus! 
No fundo a questão é, em que Deus acreditamos? Um Deus que age com critérios humanos, não buscando nem acolhendo pecadores, ou o Deus de Jesus, “enlouquecido” pelo amor que faz “loucuras” para que ninguém se perca!  Aqui temos ecos de Isaias 55, 10-11, onde Deus afirma: “Os meus caminhos não são os caminhos de vocês e os meus pensamentos não são os pensamentos de vocês”.
Jesus questiona todos nós que somos “praticantes”. Somos capazes de reconhecer a nossa própria fraqueza e miséria espiritual, como fez o “pródigo”? Somos capazes de correr ao encontro de um irmão perdido, como fez o pai? Ou somos como o irmão mais velho, “gente boa”, gente de “observância”, mas gente incapaz de ter um coração de misericórdia, de alegrar-nos com a volta ao estado original do irmão ou irmã perdido/a?
O coração do Evangelho de Lucas        
Podemos até dizer que o capítulo 15 de Lucas é o coração do seu Evangelho. Pois Deus, o Deus de Jesus e o Deus de Lucas, é o Deus que não se alegra com a perda de quem quer que seja, mas com a volta do pecador. É o Deus que se encarnou em Jesus de Nazaré, para salvar quem estivesse perdido. É o Deus de misericórdia e do perdão. Como traduzimos esta visão de Deus em nossas vidas?
Thomas Hughes

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

ANO C – VIGÉSIMO-TERCEIRO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 04.09.2016

A Palavra de Deus orienta, desinstala e converte!

Estamos em plena ‘semana da pátria’, e ela que sempre traz consigo o risco de exaltação de um patriotismo vazio, ultrapassado e até cínico. Com o Grito dos Excluídos, as Igrejas pretendem evitar essa tentação. Ademais, o abominável e criminoso processo de cassação da Presidenta e de expropriação dos direitos sociais garantidos pela Constituição de 1988 nos deixa perplexos.  E Jesus Cristo, Palavra viva de Deus, irrompe chamando nossa atenção para as consequências da palavra dada e para os custos da realização das nossas decisões. Temos mesmo disposição de ir a fundo no seguimento de Jesus Cristo?
É verdade que a cultura que caracteriza nossa sociedade de consumo não costuma chamar a atenção para a prudência e para o planejamento. A caderneta de poupança, com seu apelo a economizar e planejar, é coisa do passado. Hoje, reina absoluto o cartão de crédito, com seu permanente e sedutor convite a gastar sem planejamento, a seguir apenas os insaciáveis desejos de consumo. O que predomina e se impõe como regra é curtir e saborear a fundo o momento presente, sem preocupação com princípios e hábitos formulados por outros no passado, nem com aquilo que acontecerá no futuro.
Nesse ambiente, o seguimento responsável e maduro de Jesus Cristo corre riscos. Precisamos nos perguntar se é consciente e consequente nossa decisão de seguir Jesus Cristo. É claro que, para a maioria dos fiéis, o início da caminhada na fé cristã não está ligada a uma decisão pessoal, consciente e madura. Recebemos a fé cristã e católica misturada ao leite da mãe, ligada aos hábitos da nossa vizinhança, conjugada com a cultura transmitida pela escola. Seguimos esta estrada porque nos parecia a única, e o fizemos como ovelhas indiferenciadas de um rebanho. Era difícil e custoso trilhar outras sendas.
Mas nós crescemos, e os tempos mudaram. O pluralismo das opções que batem à nossa porta ou se oferecem aos nossos olhos todos os dias nos interpelam à aventura noutras estradas ou a dar razões para permanecer naquela que sempre trilhamos. E hoje sabemos que o Evangelho nos pede prudência e avaliação crítica diante de atitudes e projetos que se travestem de sabedoria e se apresentam falsamente como evangélicos e fautores de libertação. Jesus Cristo, com seu projeto de vida para todos, pede uma ruptura radical com a busca de vantagens individuais ou restritas a pequenos grupos.
Estar com Jesus e seguir seus passos supõe a decisão por uma específica escala de valores: a honra pessoal, a aceitação pública, a segurança dos bens e os próprios vínculos familiares são secundários em relação à prioridade absoluta de acolher e praticar os valores do Reino de Deus. A Palavra viva de Deus, feita carne em Jesus, nos mostra por onde andar. Tomar a cruz e caminhar com ele significa estar disposto a enfrentar a rejeição dos grandes e poderosos, libertar-se da busca infantil de cargos e honras e contar com a possibilidade do fracasso dos empreendimentos pessoais e institucionais.
Preferir Jesus Cristo ao pai, à mãe, à mulher ou marido e aos filhos e filhas significa viver as relações familiares fora dos moldes patriarcais, no horizonte da geração de um mundo de irmãos (como testemunha Paulo em relação a Onésimo e Filemon). É o próprio Jesus quem adverte: “Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo.” Está claro que o problema não é possuir alguns bens ou consumir de modo maduro e consciente, mas deixar-se dominar totalmente pelos bens e pelo consumo, como se o sentido da nossa vida dependesse disso.
A necessidade de renunciar está ligada ao seguimento de Jesus. A renúncia aos bens limitados ou aparentes é um meio para percorrer com mais autenticidade um caminho que conduz à vida abundante, tanto para si mesmo como para os outros. Renunciar a tudo significa limpar a casa, abrir espaço, ordenar as prioridades e orientar-se pela compaixão misericordiosa proposta de Jesus. Ele é a Palavra de Deus que nos desinstala e chama à conversão. Sua proposta está longe de ser um anestésico barato. O caminho para a humanidade nova tem seus custos, e nós precisamos avalia-los e contabiliza-los!
Jesus de Nazaré, irmão maior nos caminhos que levam a uma humanidade irmanada e reconciliada, ensina-nos a conhecer e acolher os desígnios do teu e nosso Pai, a compreender o sentido dos nossos dias, a avaliar bem as possibilidades e exigências do nosso tempo. Alimenta-nos e ilumina-nos com a tua Palavra, para que nossa consciência não permaneça anêmica ou anestesiada diante dos imensos desafios que a situação do Brasil nos apresenta. Ajuda-nos a compreender as exigências do seguimento dos teus passos e a renunciar a tudo o que possa nos afastar de ti. E que teu apóstolo e nosso irmão Paulo nos estimule a lançar as sementes da igualdade na Igreja e no mundo, ainda tão divididos e tão desiguais. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro da Sabedoria 9,13-18 * Salmo 89 (90) * Carta a Filemon 9-17 * Evangelho de São Lucas 14,15-33)

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

O Evangelho dominical - 04.09.2016

REALISMO RESPONSÁVEL

Os exemplos utilizados por Jesus são muito diferentes, mas os Seus ensinamentos são os mesmos: o que empreende um projeto importante de forma temerária, sem avaliar antes se tem meios e forças para alcançar o que pretende, corre o risco de acabar fracassando.
Nenhum lavrador começa a construir uma torre para proteger as suas vinhas, sem antes ter tido tempo para calcular se a poderá concluir com êxito, não seja que a obra fique inacabada, provocando o escárnio dos vizinhos. Nenhum rei decide entrar em combate com um adversário poderoso, sem antes analisar se aquela batalha pode terminar em vitória ou se será um suicídio.
À primeira vista, pode parecer que Jesus está a convidar para um comportamento prudente e precavido, muito afastado da audácia com que fala habitualmente aos seus. Nada mais afastado da realidade. A missão que quer encomendar aos seus é tão importante que ninguém se deve comprometer nela de forma inconsciente, temerária ou presunçosa.
A Sua advertência ganha grande atualidade nestes momentos críticos e decisivos para o futuro da nossa fé. Jesus chama, antes de tudo o mais, para uma reflexão madura: os dois protagonistas das parábolas «sentam-se» para refletir. Seria uma grave irresponsabilidade viver hoje como discípulos de Jesus, que não sabem o que querem, nem onde pretendem chegar, nem com que meios hão de trabalhar
Quando nós iremos sentar para juntar forças, refletir juntos e procurar entre todos o caminho que temos de seguir? Não necessitaremos dedicar mais tempo, mais ouvir o evangelho e mais meditação para descobrir chamadas, despertar carismas e cultivar um estilo renovado de quem segue Jesus?
Jesus chama também ao realismo. Estamos a viver uma mudança sociocultural sem precedentes. Será possível contagiar a fé neste mundo novo que está a nascer, sem o conhecer bem e sem o compreender por dentro? Será possível facilitar o acesso ao Evangelho ignorando o pensamento, os sentimentos e a linguagem dos homens e mulheres do nosso tempo? Não será um erro responder aos desafios de hoje com estratégias de antigamente?
Seria uma temeridade nestes momentos atuar de forma inconsciente e cega. Seria expor-se ao fracasso, à frustração e até ao ridículo. Segundo a parábola, da «torre inacabada» só serve para provocar o escárnio das pessoas para com o construtor. Não devemos esquecer a linguagem realista e humilde de Jesus que convida os Seus discípulos a ser «fermento» no meio do povo ou punhado de «sal» que dá sabor novo à vida das pessoas.
José Antonio Pagola
Tradutor: Antonio Manuel Álvarez Perez

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Preparando o domingo - 04.09.2016

A prioridade e as renúncias para seguir Jesus (Lucas 14,25-33)
O evangelho da liturgia deste final de semana apresenta Jesus colocando as condições fundamentais para quem quer segui-lo no caminho da cruz. Diante da prioridade do seguimento, todo o resto se torna relativo.
Jesus está a caminho de Jerusalém. Virando-se para a multidão que o seguia, ele deixa claro que o caminho do seguimento é exigente e demanda renúncias. É uma opção radical. Nesse sentido, a proposta do discipulado não é para a multidão, a “massa”. A militância por vida plena é uma decisão para pessoas livres de tudo o que escraviza. Jesus diria que as pessoas que optam pelo reino são como o “fermento” que transforma a massa (Lucas 13,21). A decisão pelo reino não é de facilidades. Talvez seja por isso que poucas pessoas decidam seguir pelo caminho proposto por Jesus.

1. Seguir Jesus exige renúncias
1.1 Renunciar a família (Lucas 14,26)
Uma das cláusulas que Jesus estabelece para as pessoas que o querem seguir é desapegar-se dos laços afetivos com a família, da segurança que a família proporciona. A prioridade é o seguimento. A família é secundária. Conforme a comunidade de Lucas, Jesus usa o verbo “odiar” em relação aos familiares (Lucas 14,26). É palavra forte. Aqui, no entanto, odiar quer dizer colocar em segundo plano diante de algo prioritário. Para Jesus, as relações familiares não podem impedir a adesão ao projeto do reino. Este é a prioridade.
É Jesus mesmo quem nos dá o exemplo, ao dar preferência à missão. Quando sua mãe e seus irmãos querem vê-lo, Jesus afirma ter uma família mais importante. É a família de quem, como ele, vive o projeto do Pai. “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a praticam” (cf. Lucas 8,19-21).
1.2 Renunciar os interesses pessoais (Lucas 14,26)
Outra condição exigida por Jesus é colocar os interesses pessoais, a própria vida, em segundo lugar diante da prioridade, que é o projeto do reino e sua justiça.
Nosso mundo estimula o individualismo, os desejos egoístas e o bem-estar individual. Jesus, no entanto, propõe como critério para segui-lo no caminho da cruz a busca do bem-viver coletivo, o serviço na gratuidade, a ajuda solidária na luta por uma sociedade justa. Em outras palavras, decidir pelas relações do reino é imitar o próprio mestre.
1.3 Renunciar os bens (Lucas 14,33)
Seguir Jesus supõe também ser totalmente livre diante dos bens. Exige estar desapegado de tudo, isto é, do orgulho e da competição, das seguranças e das ambições, de todas as formas de riqueza.
Optar pelo reino é colocar os bens a serviço da vida. E Jesus recorda mais de uma forma de como fazer com que os bens nos ajudem a ser “ricos para Deus” (cf. Lucas 12,21). Os bens geram vida quando partilhados (Lucas 12,33-34; 14,15-24; 18,18-23; 19,1-10) ou quando investidos a serviço do reino, isto é, de projetos que têm em vista a igualdade, tal como fizeram as mulheres que o seguiam desde a Galileia (Lucas 8,1-3).
Jesus quer ajudar-nos a não colocar os bens como o mais importante, transformando-os em ídolos que escravizam. “Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Lucas 16,13). E servir a Deus, à vida, é ser verdadeiramente livre.

2. Seguir Jesus requer novas atitudes
2.1 Tomar a cruz e seguir (Lucas 14,27)
Seguir as relações do reino e da sua justiça é estar disposto a carregar a cruz. É tomar decisões que requerem desapego e geram conflitos que levam ao desprendimento, a sofrimentos. É uma opção de vida que supõe riscos e exige renúncias. Que renúncias?
Aqui, podemos lembrar as recusas do próprio Jesus. Primeiro, deixou sua família em Nazaré, priorizando a missão conferida pelo Espírito do Senhor no anúncio de uma boa notícia para os pobres (Lucas 4,16-31). Para priorizar o projeto do Pai, Jesus renunciou aos valores oferecidos por este mundo injusto, simbolizado pela figura do diabo. Diante dele, o nazareno rejeitou as riquezas, recusou o poder real e não aceitou a oferta de prestígio (Lucas 4,1-13). 
Isso significa que, para seguir Jesus na radicalidade, é necessário ser uma pessoa livre, que não se deixa escravizar pela propaganda consumista e pela oferta de bens, poder e fama como sentido de vida.
2.2 Ser prudente e realista (Lucas 14,28-32) 
Seguir o projeto do reino requer novas atitudes, exige que sejamos pessoas recriadas. Então, Jesus conta duas parábolas que ilustram o desafio para quem opta em segui-lo no caminho.
Na primeira (Lucas 14,28-30), ele mostra que o seguimento não é fruto de uma opção que se faz de uma hora para outra, mas é resultado de decisões bem pensadas, amadurecidas. Elas devem estar de acordo com a realidade de cada pessoa que quer assumir o discipulado na radicalidade. Somente assim pode haver fidelidade até o fim, evitando-se falsas ilusões, uma vez que não basta boa vontade. Diferente é uma decisão momentânea. Esta é como fogo de palha que logo se extingue e não persevera. Seguir Jesus é ser como o construtor de uma torre. Ele planeja sua obra e avalia se tem recursos para levar a obra até a sua conclusão.
Na segunda parábola (Lucas 14,31-32), Jesus apresenta o exemplo de um rei prudente ao se defender de outro rei que vem batalhar contra ele. A prudência leva a avaliar as condições que se tem para assumir a missão. É necessário ter sabedoria e humildade para assumi-la com coerência. É preciso também coragem e firmeza para suportar as consequências, as cruzes que resultam da opção pela justiça do reino. As parábolas insistem na clareza ao se fazer a opção em seguir Jesus na missão de viver as relações do reino.
E nós hoje?
Certamente, as exigências de Jesus nos questionam quando nossa ação evangelizadora está voltada mais para as “massas” e não tanto para o “fermento”, isto é, o engajamento radical em favor da democracia, da justiça e da partilha, da gratuidade e da superação de preconceitos.
É evidente que Jesus não recusa ninguém. Ele mesmo acolheu com ternura um homem muito rico. Porém, não deixou de lhe mostrar que o caminho da felicidade passa pela partilha (Lucas 18,18-23). Também foi comer na casa de um ladrão confesso. Mas deixou claro que ele se tornaria discípulo do reino na medida em que devolvesse o que roubara e partilhasse outro tanto com os pobres (Lucas 19,1-10). 
Com a narrativa da liturgia deste final de semana, a comunidade de Lucas quer encorajar as pessoas que, ainda hoje, decidem assumir fielmente o seguimento da proposta de Jesus. Quer animá-las a se manterem firmes diante das calúnias e das difamações, das perseguições por causa da justiça ou até da própria morte que vierem a sofrer por parte de indivíduos e instituições que servem às riquezas deste mundo.
Este evangelho nos convida a perseverarmos na fidelidade ao projeto do reino, custe o que custar, mesmo que a luta em favor da inclusão de mulheres, pessoas negras e pobres gere o ódio da Casa Grande contra nós. Importa que a vontade do Pai se torne realidade em nossas vidas (cf. Lucas 22,42). E isso será possível na medida em que abrirmos nossos corações ao mesmo Espírito que animou a missão de Jesus de Nazaré na intimidade com o Pai (Lucas 4,18).
Qual é a nossa atitude diante dessas condições exigentes que Jesus nos coloca? É de acolhida ou de indiferença? É de adesão ou de repulsa?
Ildo Bohn Gass

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

O Evangelho dominical - 28.08.2016

SEM ESPERAR NADA EM TROCA

Jesus está a comer convidado por um dos principais fariseus da região. Lucas indica-nos que os fariseus não deixam de espiá-Lo. Jesus, no entanto, sente-se livre para criticar os convidados que procuram os primeiros lugares e, inclusive, para sugerir ao que o convidou a quem há de colocar à frente.
É esta a interpelação ao anfitrião que nos deixa desconcertados. Com palavras claras e simples, Jesus indica-lhes como hão de atuar: «Não convides os teus amigos nem os teus irmãos nem os teus parentes nem aos vizinhos ricos». Mas, há algo mais legítimo e natural que estreitar laços com as pessoas que nos querem bem? Não fez Jesus o mesmo com Lázaro, Marta e Maria, seus amigos de Betânia?
Ao mesmo tempo, Jesus assinala em quem se há de pensar: «Convida os pobres, aleijados, coxos e cegos». Os pobres não têm meios para corresponder ao convite. Dos aleijados, coxos e cegos, nada se pode esperar. Por isso, ninguém os convida. Não é isto algo normal e inevitável?
Jesus não rejeita o amor familiar nem as relações amistosas. O que não aceita é que elas sejam sempre as relações prioritárias, privilegiadas e exclusivas. Aos que entram na dinâmica do reino de Deus procurando um mundo mais humano e fraterno, Jesus recorda-lhes que o acolhimento aos pobres e desamparados há de ser anterior às relações de interesse e aos convencionalismos sociais.
É possível viver de forma desinteressada? Pode-se amar sem esperar nada em troca? Estamos tão afastados do Espírito de Jesus que, por vezes, até a amizade e o amor familiar estão mediatizados pelo interesse. Não temos de nos enganar. O caminho da gratidão é quase sempre duro e difícil. É necessário aprender coisas como estas: dar sem esperar muito, perdoar sem exigir, ser mais paciente com as pessoas pouco agradáveis, ajudar pensando apenas no bem do outro.
Sempre é possível reduzir um pouco os nossos interesses, renunciar de vez em quando a pequenas vantagens, colocar alegria na vida do que vive necessitado, oferecer um pouco do nosso tempo sem reserva-lo sempre para nós, colaborar em pequenos serviços gratuitos.
Jesus atreve-se a dizer ao fariseu que o convidou: «Ditoso tu se não te podem pagar». Esta bem-aventurança ficou tão esquecida que muitos cristãos nunca ouviram falar dela. No entanto, contém uma mensagem muito querida para Jesus: «Ditosos os que vivem para o próximo sem receber recompensa. O Pai do céu os recompensará».
José Antonio Pagola
Tradutor: Antonio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

ANO C – VIGÉSIMO-SEGUNDO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 28.08.2016

A quem reservaremos os primeiros lugares em nossa Igreja?

Jesus não desperdiça nenhuma ocasião para ensinar aqueles que o seguem. Ele propõe uma inversão radical na escala dos valores da sociedade e da religião, e não se cala nem mesmo na casa de uma autoridade moral, em pleno jantar festivo para o qual havia sido convidado com especial deferência. Jesus apresenta a lição do evangelho de hoje num solene dia de sábado, na casa de um dos chefes dos fariseus, logo depois de afirmar que as necessidades de uma pessoa estão acima das leis. Vendo que os convidados disputam os primeiros lugares, propõe uma reflexão sobre o orgulho e a humildade.
Como modelo de evangelizador, Jesus não se permite ficar na periferia das coisas. Seu ensino hoje não é sobre as regras de boas maneiras numa refeição solene, mas sobre um princípio fundamental da vida cristã: quem é o maior ou o primeiro, o mais importante ou notável na vida cristã. Jesus começa pela crítica ao orgulho e aos privilégios e passa à questão dos beneficiários da nossa atenção. Ele conhece o costume quase universal de privilegiar, tanto nas festas quanto nas decisões e projetos mais essenciais, os familiares, parentes, amigos e vizinhos. Para Jesus, este é um círculo muito estreito.
Inicialmente, Jesus fala aos hóspedes que estão com ele à mesa, afirmando que “todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado”. Depois, dirige-se ao próprio anfitrião que o acolhe festivamente, questionando sua expectativa de retribuição. E deixa muito claro que orgulho e a busca de retribuição não são posturas enraizadas no Evangelho. O cristão deve rejeitar a busca de honras e vaidades e buscar decididamente o lugar reservado aos servidores. Da mesma forma a Igreja: ela precisa superar a velha pratica de servir, apoiar e defender as pessoas e instituições que podem retribui-la.
Prosseguindo, Jesus propõe a inversão dos grupos de pessoas que costumam aparecer no topo das nossas listas de honoráveis, presenças infalíveis nas listas de convidados das festas e solenidades: os pobres, aleijados, coxos e cegos devem ser os primeiros. É claro que aqui ele não quer estragar nossa festa, mas questionar a estreiteza das fronteiras que traçamos entre os ‘nossos’ e os ‘outros’. Jesus coloca em questão a busca de compensações que rege nossas pequenas e grandes ações. A verdadeira felicidade consiste em dar generosamente, sem cobrar dividendos, na terra ou no céu.
O saudoso Dom Helder Câmara ensinou que o maior perigo que nos ameaça é o desejo de sempre vencer e jamais fracassar, de sentir-se sempre querido e nunca sobrar. E chegou a advertir um colega no episcopado: “Mais grave do que ser apanhado pela engrenagem do dinheiro, é ser apanhado pela engrenagem do prestígio”. Na verdade, a busca privilégios e compensações é tão desgastante como infantilizadora: o caminho que dá acesso a eles geralmente passa pela subserviência e é acompanhado pelo medo do anonimato e pelo apego doentio aos bens e a toda sorte de títulos...
A recompensa para quem segue o caminho de Jesus é prometida para ressurreição dos justos. Em outras palavras: a felicidade que ninguém pode roubar é aquela que conquistamos – ou recebemos de graça! – entrando pela estreita porta da humildade, da generosidade e da solidariedade. É a alegria profunda que experimentamos quando ouvimos da boca dos porta-vozes da vida o convite: “Amigo, vem para um lugar melhor!” Enquanto caminhamos nesta direção, não há honra e alegria maiores que servir, compartilhar sonhos e lutas com aqueles que normalmente são ejetados para os últimos lugares.
Na carta aos Hebreus, a santa Palavra sublinha que, em Jesus e na comunidade daqueles que o seguem, torna-se visível a assembleia dos primogênitos, o verdadeiro povo de Deus, constituído de homens e mulheres que descobriram a grande honra de amar e servir. Esta é a verdadeira cidade de Deus, a manifestação e a morada de Deus no mundo. Fogo, tempestade, trevas, sons de trovões e trombetas são nada diante do sinal grandioso de homens e mulheres mansos e corajosos, humildes e generosos, ternos e fortes, humanos e compassivos. A estes Deus se revela, e no louvor dos seus lábios se alegra.
Jesus de Nazaré, servidor humilde, com tolha na cintura e jarra na mão:  queremos seguir teu caminho, acolher tua palavra forte e iluminadora e participar da tua ação libertadora. Tu nos pedes que, na mesa da história e nas mesas da Igreja, reservemos os primeiros lugares aos que são vistos e tratados como últimos. Ajuda-nos a assimilar coerentemente este mandamento para então escutarmos teu convite: “Vem para um lugar melhor!” Concede aos catequistas e a todas as lideranças leigas da nossa Igreja essa impagável alegria. Que todos nós – ministros ordenados, religiosos e religiosas, leigos e leigas – testemunhemos ao mundo a alegria do Evangelho e a santidade da compaixão. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Eclesiastico 3,19-21.30-31 * Salmo 67 (68) * Carta aos Hebreus 12,18-24 * Evangelho de S. Lucas 14,1.7-14)

Preparando o domingo - 28.08.2016

Convidar para espiar... (Lucas 14,1.7-14)


Parece que os convites que Jesus recebe para tomar refeição sempre têm uma intenção e que nem sempre é por amizade. Neste texto, a intenção é evidente: querem espiá-lo. 
A intenção de vigiá-lo, talvez seja por sua liberdade frente à lei, questionando profundamente o legalismo farisaico. Assim fora na casa do fariseu Simão (Lucas 7,36ss) e na casa de outro fariseu, quando se sentou à mesa sem antes lavar as mãos (Lucas 11,37ss). Na primeira vez, ele comparou o fariseu com a pecadora, e o fariseu saiu perdendo. Parece que Simão não sabia amar com a mesma intensidade daquela mulher. A outra vez, vendo o olhar espantado do fariseu, provocou uma discussão danada sobre a hipocrisia com que era praticada a lei. Referindo-se a fariseus, Jesus até usou esta expressão: “Sois túmulos disfarçados, sobre os quais se pode transitar, sem o saber!” Será que, ao escutar por cinco vezes “ai de vós”, a comida ainda continuou a descer saborosa por seu esôfago, ou ficou presa na garganta?
Diante disso, pergunto-me: por que o convidavam? Por que o Evangelho de Lucas faz tanta questão de apresentar-nos Jesus aceitando convites para comer?
No Primeiro Testamento, o banquete é sinal de que os tempos messiânicos do Reinado de Deus teriam chegado. Assim escreve o profeta Isaías: “Iahweh dos Exércitos prepara, sobre esta montanha, um banquete para todos os povos...” (Isaías 25,6).
Talvez seja a partir desta memória profética que o Jesus das comunidades lucanas esteja sempre a caminho, entrando nas casas, sentando à mesa para refeições. Assim, estas comunidades guardam-nos seu projeto de discipulado: o Caminho de Jesus é o Caminho da comunidade. A Casa é a comunidade que vai se formando ao longo do caminho. A Mesa torna-se o lugar para apreender e viver a proposta de relações novas com Jesus. 
A mesa nos ensina a superar a ambição pelo primeiro lugar (Lucas 14,7-11)
Antes de continuar minha reflexão, convido você a fazer um exercício. Visualize, em sua memória, os banquetes das comemorações de sua cidade, de sua comunidade, de suas festas, de suas quermesses. A quem é enviado o convite para participar do banquete? Quem senta à mesa? Qual a lógica da organização das mesas? Em qual das mesas há lugares com nome reservado? Quem cozinha? Quem serve à mesa? Quem fica espiando pela janela ou com disfarce em meio aos convidados para o banquete? Você mesmo poderá se fazer outras perguntas...
Agora, continuando nossa reflexão, voltamos à mesa onde Jesus está sentado e o escutamos contar uma parábola: “Quando alguém te convidar não sente no primeiro lugar...” (Lucas 14,8). Parece que Jesus está continuando uma conversa que já havia começado, sentado à outra mesa: “Ai de vós, fariseus, que apreciais o primeiro lugar nas sinagogas e as saudações nas praças públicas ...” (Lucas 11,43).
Jesus nos convida a não buscar lugares de honra, a não entrar no jogo da competição. É que essa atitude revela o desejo de ser mais, de exercer o poder do privilégio sobre outras pessoas. A competição gera divisões, ciúmes, invejas. Ao contrário, faz parte do seu projeto do Reino quem viver como irmã e como irmão, em relações de parceria. 
A mesa nos ensina a gratuidade da solidariedade (Lucas 14,12-14)
E, depois, Jesus se dirige diretamente para quem o convidara: “Ao dares um almoço, não convides teus amigos... Antes, convida os pobres que não têm como te recompensar...” (cf. Lucas 14,12-14).
Esta narrativa de Lucas leva-me a recordar o que escutei num encontro bíblico: fizemos da casa uma igreja; fizemos da mesa um altar; fizemos da partilha um sacrifício; fizemos de Jesus um sacerdote. Ao lembrar-me desta reflexão, vem-me este pensar: a Boa Notícia da inclusão tornou-se má notícia da exclusão.
Mais uma vez, convido você a visualizar cenas de sua vida em que a lei e a tradição, a moral e a teologia geraram exclusão do banquete, impediram de sentar-se à mesa.
“O amor é benigno, o amor não procura os próprios interesses, não se orgulha, não se alegra com a injustiça...” (1Coríntios 13,4-7). O amor é gratuito.
Por que convidar Jesus para uma refeição? Para espiar ou apreender a incluir?
A mesa é o lugar onde é colocada em cheque a nossa fidelidade ao caminho do discipulado. A mesa é o lugar que denuncia as estruturas excludentes da casa-comunidade-igreja. A mesa nos desafia a retomar e a praticar as palavras do Cântico de Maria (Lucas 1,46-55), bem como as palavras que Jesus proclamou na sinagoga de Nazaré (Lucas 4,18-19).
Caminho, Casa, Mesa de Jesus... Ainda hoje, o Caminho, a Casa e a Mesa continuam nos desafiando para fazer acontecer o Banquete do Reino...      
Tea Frigerio 

sábado, 20 de agosto de 2016

Resistência Constitucional ao Golpe

CARTA DE PORTO ALEGRE
AFIRMAR A RESISTÊNCIA CONSTITUCIONAL
Depois de tantos anos de ditadura e autoritarismo superados pelas lutas dos democratas brasileiros das quais se originou a Constituição de 1988, lamentavelmente estamos vendo dia a dia o enfraquecimento dos direitos sociais e das garantias de liberdades.
O impeachment, previsto na Constituição como um remédio para punir governantes que cometem crimes de responsabilidade, foi transformado em instrumento meramente político para golpear um mandato legítimo da Presidenta da República conferido por mais de cinquenta e quatro milhões de votos.
Sem provas do crime de responsabilidade exigido pela Constituição, o parlamento rasga a Constituição e cassa um mandato. E assim fazendo, põe em risco a democracia, duramente conquistada depois de mais de 20 anos de ditadura militar.
Diante disso, reunidos em Porto Alegre neste dia 18 de agosto, os democratas signatários chamam a atenção da nação brasileira para o processo de enfraquecimento, retirada e violação de direitos sociais e fundamentais previstos em leis e na Constituição.
E também denunciam o uso do direito contra o próprio direito. Em nome da Constituição, eliminam aquilo que nela está consagrado. Trata-se da legitimação dos retrocessos através do próprio direito. Por isso, hoje, além das ruas e das arenas políticas, boa parte das lutas contra os diversos golpismos deverão ocorrer nos tribunais e nas salas de audiência.
Por isso nos propomos a manter um fluxo regular de denúncias e relatos do que está acontecendo aos órgãos nacionais e internacionais de Direitos Humanos, além de instar o Judiciário e o Ministério Público a assumirem uma perspectiva propositiva de cumprimento do texto constitucional. Vamos anunciar ao "mundo jurídico" que há um processo de resistência constitucional em marcha e que estamos aqui, vigilantes e lutando. A resistência constitucional exige que todos os operadores do direito se comprometam com a Democracia, com o Estado Democrático de Direito e com os direitos consagrados do povo.
Se a Constituição estabelece que o Brasil é uma República que visa a erradicar a pobreza, fazer justiça social e construir uma sociedade justa e solidária, é preciso saber que esse dispositivo vale e é norma. Com a Constituição como arma é que poderemos enfrentar a parcialidade da mídia, a cumplicidade de amplos setores do Judiciário, do Ministério Público e das polícias para com a repressão, cada vez mais truculenta, aos setores vulneráveis da sociedade. E, sem facciosismos, ter claro que o combate à corrupção não se faz com a transformação da justiça em justiciamento. Como já afirmou uma associação de magistrados, não se combate a corrupção rasgando a Constituição.
Se o povo e os trabalhadores não se envolveram diretamente na discussão do processo de impeachment é porque viram o episódio como uma disputa interna das elites políticas. Mas agora que começa a ofensiva contra os direitos trabalhistas, previdenciários e sociais, o verdadeiro caráter do golpe se desnuda e é o momento de dar concretude ao processo de resistência constitucional. Direitos são cláusulas pétreas. É proibido retroceder.
Resistir significa denunciar que a Constituição está sendo rasgada em nome dela mesma. E gritar que, infelizmente, depois da promulgação da Constituição de 1988 que estabeleceu um conjunto de conquistas sociais, jamais se havia pensado que chegaria o dia em que seria revolucionário defender a legalidade constitucional.
Porto Alegre, 18 de agosto de 2016.

CARREIRAS JURÍDICAS PELA DEMOCRACIA
ADVOGADOS E ADVOGADAS PELA LEGALIDADE DEMOCRÁTICA