O enorme e precioso legado do Papa Francisco
Eu estava em
Roma naquela tarde fria e chuvosa de outono. Era o dia 13 de março de 2013. No
fim da tarde, saindo de uma palestra, atravessei a Praça de São Pedro lotada de
fiéis e curiosos, deixei algumas cartas no correio do Vaticano e voltei para
casa. O Padre Edmund, já abrindo a porta para sair, anunciou que o Conclave
havia eleito um novo Papa. Todos os outros quatro colegas já haviam saído para
receber o anúncio ao vivo...
Eu não tinha
muitas expectativas, e permaneci em casa sozinho. Foram quase duas horas de
espera até o anúncio se tornar público e o novo Papa aparecer na sacada da
Basílica. Fiquei surpreso quando foi anunciado que Dom Jorge Mário Cardeal
Bergóglio era o nome escolhido. A surpresa foi ainda maior, agora recheada de
esperança e expectativa, quando ouvi que escolhera o nome de Francisco.
Os breves
minutos que se seguiram me levaram às lágrimas. Um Papa que se apresenta como
Bispo de Roma, “pescado” pelos “irmãos cardeais” no “fim do mundo”, que se
inclina e pede ao povo cristão oração e bênção, que termina suas alocuções
desejando “boa noite” e “bom almoço” e que deseja se inspirar no “Pobre de
Assis” não é algo trivial, nem costuma ocorrer amiúde. Perguntava-me se isso
tudo era verdade ou era um sonho.
Passados doze
anos – um tempo curto para uma instituição bimilenar como a Igreja católica –
posso testemunhar que foi um sonho, sim. Mas foi um sonho que começou a se
realizar, uma semente que germinou e lançou tenras e frágeis raízes que precisam
ser cuidadas. Sonho de uma Igreja simples e radicalmente cristã, em dia com os
tempos, parceira dos pobres e das vítimas, alegre no testemunho e ousada nos
compromissos.
O que se
insinuou e eu vislumbrei naquela noite romana de outono não foi um “sonho de
verão”. A imagem de um líder religioso mundial no corpo de um idoso
fragilizado, em vestes civis e cadeira de rodas que o mundo viu a alguns dias
não nos acordou de um sonho, mas nos permitiu tocar o seu realismo. Ali estava
um irmão da humanidade, próximo e vizinho, pequeno e grande, como todos
desejamos ser.
O sonho não
acabou, ele se tornou semente e legado entregue aos homens e mulheres de boa
vontade, sem diferença de nação, de idade, de credo ou de condição social. Que
nossas instituições, agregações e organizações sejam enfermarias de campanha,
largas e frágeis tendas capazes de acolher e cuidar de todas as vítimas. E que
não sejam empreendimentos que lucram com as catástrofes, com a indiferença e
com a violência.
Que este
sonho continue em projetos e empreendimentos que fascinam e engajam na
construção de pontes e não de muros. Que nossa vida não seja tempo que passa,
mas tempo de encontro. Que os homens e mulheres não sejam lobos uns dos outros,
mas todos irmãos e irmãs. Que o planeta seja uma casa comum que cuidamos como à
nossa mãe, e não um quintal entulhado de dejetos de uma vida feia e de lutas
fratricidas.
E, ainda
mais: que nossas relações familiares sejam expressão da alegria do amor, e não
de vínculos superficiais, cinzentos e dominadores; que nossas Igrejas não se
afoguem em narcisismos doentios, caminhem em saída às periferias, peregrinem na
esperança e não no medo, “sujem as mãos” nas causas humanitárias mais urgentes.
E que ninguém tema atravessar as noites escuras do nosso tempo com os olhos
fixos em Jesus de Nazaré.
Dom
Itacir Brassiani msf
Bispo
Diocesano de Santa Cruz do Sul
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