domingo, 14 de dezembro de 2025

Com que autoridade?

A autoridade só é legítima se promove e liberta

928 | 15 de dezembro de 2025 | Mateus 21,23-27

O que esta passagem do evangelho de Mateus tem a ver com a preparação para o Natal? Ela está localizada no final da peregrinação missionária de Jesus, já no espaço do templo central do país, em Jerusalém. Jesus havia chegado no templo e, com o chicote na mão, expulsado os vendedores que exploravam o povo. Ele quer que o templo seja um espaço de encontro, não um lugar de opressão.

Os sumos sacerdotes ficam incomodados com este gesto e com todo o ensino de Jesus, pois, com palavras e com ações, ele desafia e questiona a sacralidade do templo e a autoridade dos seus controladores. Sacerdotes e anciãos constituíam uma elite social, econômica, política e religiosa, baseada na origem, no saber, nas riquezas e nas alianças políticas. Esta elite era politicamente legitimada pelo império romano e moralmente pelo templo.

Os sumos sacerdotes não se importam com o fato de o templo ter deixado de ser casa de oração e de encontro e ter sido transformado numa espelunca de rapinadores. Eles preferem questionar a autoridade de Jesus para fazer o que ele faz, perguntam quem o legitima, com que licença ou autorização ele age. É claro que a autoridade e a liberdade de ação de Jesus incomodam a todos eles.

Por isso, em nome da instituição do templo, os sacerdotes apresentam a Jesus uma pergunta, que, na verdade, é uma armadilha. Jesus não pode basear sua autoridade na origem social, nos bens, no estudo ou em alguma aliança política. E se disser que sua autoridade vem de Deus, automaticamente ele deslegitima os sacerdotes e anciãos e, por causa disso, pode ser acusado de blasfêmia.

Jesus sabe que sua vida e missão estão intimamente ligadas à vida e missão de João Batista. Por isso, não sem uma certa astúcia, responde à pergunta deles com outra pergunta. Os examinadores passam a ser examinados; os buscadores de lã acabam tosquiados. Quem deveria demonstrar sua legitimidade é quem não se importa com a opressão!

Eles sabem a resposta, mas calam. Se reconhecem João como profeta, reconhecem. O nosso encontro com Jesus hoje também passa pelo reconhecimento dele como enviado de Deus para transformar as pessoas, as sociedades e as religiões. É nisso que qualquer autoridade é legitimada, e, fora disso, o poder, inclusive o poder religioso, desliza perigosamente e se aproxima da usurpação e do despotismo.

 

Sugestões para a meditação

§  Há quem hoje se comporte como os chefes dos sacerdotes e os saduceus, que “fazem olho grande” aos abusos contra os pobres?

§  Em que você baseia sua autoridade para anunciar o Evangelho e denunciar profeticamente os abusos contra os pobres e humildes?

§  O que precisamos “expulsar” de nossas preocupações e projetos para reconhecer Jesus e acolhê-lo de fato entre nós neste Natal?

§  Que desculpas e justificativas estamos apresentando hoje para não levar a sério o projeto de Jesus e lançar-nos na construção do Reino de Deus?

sábado, 13 de dezembro de 2025

Devemos esperar outro?

Anunciemos o que estamos vendo e ouvindo

927 | 14 de dezembro de 2025 | Mateus 11,2-11

A crise e o escândalo diante dos sinais aparentemente impotentes de Deus operados por Jesus Cristo se aninhou até no coração de João Batista e dos discípulos de Jesus. Na prisão, o Profeta que batizava recebe notícias sobre a ação de Jesus de Nazaré, daquele sobre quem ele vira descer o Espírito de Deus e de quem esperava ações cortantes como a do machado na raiz das arvores estéreis e peneira que separa os grãos e a palha. Mas João só ouvia falar de perdão, acolhida e compaixão solidárias. Seria esse o Messias prometido pelos profetas e esperado ansiosamente pelo povo, ou a espera deveria continuar?

Também nós, quando olhamos para aquilo que já é passado, ou quando voltamos nossa atenção aos frágeis e ambíguos sinais que a Igreja realiza hoje, perguntamo-nos: É essa a comunidade que Jesus escolheu e a quem confiou sua missão? É ela Sal da terra e Luz do mundo? E quando contemplamos o mundo, palco de guerras intermináveis, de violências insuportáveis, de dominações injustificáveis e de parlamentes deploráveis, perguntamo-nos onde está a força do fermento e da pequena semente do Reino de Deus, que Jesus anunciou estar próximo e em ação no meio de nós. O que podemos continuar esperando?

Jesus responde às dúvidas de João Batista, e de todos aqueles que não escondem a frustração diante dos pequenos sinais que realiza, chamando a atenção para o significado eloquente e para a força transformadora que neles se esconde. O profeta da Galileia nos convida a alegrar-nos com os sinais de resgate da vida dos pobres, por pequenos e impotentes que possam parecer:  cegos que recuperam a vista, paralíticos que voltam a caminhar, leprosos reinseridos na convivência social, surdos que recuperam a audição, mortos que revivem, e pobres que recebem boas notícias. Passemos, pois, do escândalo que desilude ao júbilo que ilumina e potencializa a criatividade e a esperança!

Por fim, Jesus aproveita a ocasião para chamar a atenção dos discípulos para o testemunho profético de João. Sua atitude firme e corajosa levou-o à prisão, o que não deixa de ser sinal de fragilidade. Sua vida foi como um caniço agitado pelo vento, e ele se apresentou vestindo-se modestamente. Porém, João foi um verdadeiro e grande profeta que aceitou ser enviado à frente para preparar caminhos, aceitando desaparecer para que o Esperado se revelasse. Também dele aprendemos a permanecer firmes e a sofrer as consequências por cultivarmos Sonhos que a história não consegue dar à luz.

 

Sugestões para a meditação

·    Releia atentamente esta cena, prestando atenção aos personagens e àquilo que eles falam, especialmente a Jesus

·    Qual é causa da crise de João Batista e seus seguidores? Quais eram os sinais que não “batiam” com suas expectativas?

·    Será que também nós não guardamos meio secretamente algumas frustrações com a fraqueza dos sinais realizados por Jesus?

·    Em que medida nossa fé assimilou e leva a sério a manjedoura e a cruz, ícones de um Deus despojado de poder?

O Advento de Maria e José

 A caminhada de uma família de Nazaré

Convido quem quiser vir comigo e acompanhar imaginariamente a Sagrada Família de Nazaré na sua caminhada de fé, do primeiro domingo do Advento ao primeiro anúncio missionário de Jesus. O profeta Isaías ocupa um lugar central na liturgia do Advento, assim como na fé e na espiritualidade de José e Maria. E, obviamente, na vida de Jesus.

Parece que a Sagrada Família encontrou em Isaías indicações para sua vida cotidiana. “Abram um caminho no deserto. Aplainem uma estrada para o nosso Deus. Aterrem os vales e aplainem as colinas” (Is 40). “Ele me enviou para dar boas notícias aos pobres, curar os corações feridos, proclamar a libertação dos escravos” (Is 61).

Mais tarde, contemplando a fragilidade do Menino deitado na manjedoura, Maria e José se perguntaram onde estariam os sinais do Deus forte, o manto da realeza e a fogueira que queimaria as armas de guerra e as roupas manchadas de sangue (Is 9). Mas também se maravilharam com o que os pastores contavam sobre o que tinham ouvido.

A visita dos magos despertou-lhes medo e constrangimento. O que teria de tão especial aquele Menino para atrair gente de tão longe? E a presença daqueles pagãos não traria impureza para a família? Será que os pagãos também seriam abençoados por Deus? Como poderia a glória de Deus habitar numa criança e se manifestar a todos os povos?

O tempo foi passando, e o filho de Maria e José se mostrava absolutamente normal: crescia lentamente; aprendia a língua da sua gente e a religião dos seus pais; apreciava muito as esperanças que seu povo cultivava; crescia também em graça e sabedoria. Com 12 anos tomou distância dos pais e discutiu com os doutores da lei em Jerusalém.

Um dia, Jesus, Maria e José foram ao encontro de João Batista nas margens do rio Jordão e acompanharam atônitos o filho entrando na água para ser batizado. Viram o céu se abrindo e uma pomba pairando sobre ele. E ouviram uma voz que vinha do céu: “Tu és meu filho amado; em ti eu encontro meu agrado!” O que significaria tudo isso?

Com João Batista, Maria e José descobriram que o filho não lhes pertencia, que os superava em sabedoria e graça e os precedia nos caminhos de Deus. “Depois de mim vai chegar alguém que é mais forte do que eu... Eu não mereço sequer desamarrar a correia das sandálias dele...” Eles entenderam que Deus é grande porque valoriza os pequenos.

Depois do batismo, tudo mudou radicalmente. Jesus se afastou do núcleo familiar, passou a viver com um grupo de discípulos e a anunciar que o Reino de Deus estava chegando. Não sem dificuldades, Maria e José passaram a fazer parte da nova família que se formou em torno dele: a família dos que acolhem e vivem a Palavra de Deus.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Elias e Jesus

O nosso é um tempo no qual a esperança germina

926 | 13 de dezembro de 2025 | Mateus 17,10-13

Esta cena está literariamente localizada logo após a cena da transfiguração de Jesus diante dos discípulos no monte Tabor. Ao lado dele, apareceram o líder e legislador Moisés e Elias, modelo e inspiração da profecia. Por isso, ao descer da montanha, os discípulos interrogam Jesus em relação a Elias. Na liturgia do advento, a cena é proposta pela íntima conexão que Jesus estabelece entre Elias e João Batista, dois profetas que, cada um ao seu modo e no seu tempo, foram vozes orientadoras na espera do Messias.

Era ensino muito divulgado pelos escribas que Elias voltaria, e sua volta inauguraria os tempos messiânicos. Jesus não diverge dos escribas, mas completa e concretiza o ensino deles. Segundo ele, Elias já voltou na profecia de João Batista. Neste sentido, Jesus dá a entender que Elias pertence ao passado, é profecia corajosa, anúncio esperançoso, denúncia tenaz. Mas Elias não está no futuro. O futuro é o Messias, e esse futuro já raiou em Jesus de Nazaré.

O futuro prometido por Deus e esperado pelo povo começa com a vida e a missão de Jesus. Os tempos messiânicos são inaugurados por ele, e é preciso abrir os olhos e aguçar o entendimento, pois o reino de Deus não se manifesta em ações espetaculares e poderosas, como muitos ensinam. O Reino de Deus não se deixa ver no cumprimento minucioso da lei, mas na compaixão e na misericórdia incondicionais, à revelia da lei e até contra ela.

Mas Jesus dá um passo a mais, e relaciona o seu destino pessoal ao destino do profeta João: suspeita, perseguição, violência, morte são a herança do Batista que Jesus faz sua. João precede a Jesus também na rejeição! Este é o mistério da semente, o dinamismo escondido do Reino de Deus. Nesse dinamismo escondido, no tempo presente, a vontade de Deus está se realizando, e é preciso reconhecê-la e celebrá-la. Aquele que a propaganda promete e chama de “bom velhinho” não tem nada a ver com ele.

Os escribas tinham razão ao dizer que as escrituras falam do retorno de Elias. Mas Jesus ensina que é preciso lê-las e interpretá-las corretamente. Elias volta em cada profeta ou profetiza. O Reino de Deus se realiza em cada gesto de partilha e acolhida solidária. O fim deste mundo está em curso, e um novo mundo está nascendo. E aqui não há lugar para ameaça ou para o medo. O nosso é um tempo marcado pela convocação a peregrinar na esperança, e nós sabemos em quem pusemos nossa confiança.

 

Sugestões para a meditação

§  Releia atentamente esta cena, lendo também, se possível, os versos anteriores, que narram a transfiguração (17,1-9)

§  Você pode dizer, como o evangelista diz dos discípulos, que você entendeu o que Jesus disse neste texto?

§  Você espera a irrupção do Reino de Deus (dos novos céus e da nova terra) como um fato grandioso, terrível e destruidor?

§  O que esta cena e estas palavras de Jesus têm a ver com a nossa caminhada de preparação para o Natal do Senhor?

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Guadalupe

Felizes os que creem e peregrinam na esperança

925 | 12 de dezembro de 2025 | Lucas 1,39-47

O texto do evangelho de hoje é escolhido para iluminar a festa de Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira da América Latina. Esta manifestação de Maria a um indígena mexicano insignificante, no contexto da opressão colonial patrocinada pelos colonizadores espanhóis e católicos, tem grande significado para os povos desse continente, crente rico e sofrido. Entreguemo-nos, pois, a ele.

O texto de Lucas traduz de modo plástico a presença libertadora de Deus na história e a serena alegria que esse acontecimento desperta na oração e no cântico dos pobres. Não se trata de um sonho utópico, mas de uma esperança segura, que se fundamenta na fidelidade de Deus revelada ao longo da história do povo de Israel e das comunidades cristãs. O encontro festivo de duas mulheres retrata a alegria que toma conta dos pequenos e pobres quando experimentam a fidelidade de Deus.

Inicialmente, a cena é uma ampliação do episódio da anunciação e uma confirmação dos sinais indicados pelo anjo Gabriel a Maria.  Isabel saúda Maria e proclama a presença do Messias no seu seio com a mesma surpresa e a mesma alegria com as quais Davi e o povo de Israel saudaram a presença fiel e libertadora de Deus na Arca da Aliança. Diante dessa exultação, Maria se pergunta pelas razões que movem Deus a fazer-se presente em sua humilde casa e na sofrida história do seu povo e compartilha a resposta no seu cântico.

João Batista, ainda no ventre de Isabel, antecipa a alegria dos tempos messiânicos, e, com a futura mãe, reconhece a presença de Deus no meio do povo. Maria é aclamada por Isabel como bem-aventurada, ou feliz, porque acreditou na verdade e na força fecunda da Palavra de Deus, e não unicamente por ser a mãe do messias esperado. Assim, a seu modo, Isabel desvenda o significado profundo da maternidade de Maria. O que lhe aconteceu não é mérito seu, mas pura graça e iniciativa do amor gratuito de Deus.

Na sequência, Maria toma a palavra e intervém com um cântico um cântico profético no qual celebra a intervenção de Deus no passado e assegura sua misericórdia no futuro. Ela, serva humilhada, representa todos os pobres agraciados por Deus que visualizam um mundo novo, que desfaz dominações e exclusões. Em Maria, que se manifesta ao índio Diego com traços indígenas e grávida, o êxodo do povo de Deus se renova, e as bem-aventuranças são antecipadas. E os humildes e os pobres são os privilegiados.

 

Sugestões para a meditação

§  Reconstrua a cena, acompanhando Maria na sua caminhada de Nazaré à Judéia, inclusive no seu encontro com sua parenta Isabel

§  Deixe-se envolver pela alegria messiânica que ilumina e comove Maria, Isabel e João Batista

§  Repita, com Isabel, a saudação mística e profética com a qual recebe e celebra a visita de Deus ao seu povo

§  Reflita sobre o significa dessas palavras na cabeça e no coração dos índios explorados e caçados pelos colonizadores espanhóis

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

João e Jesus

Exultemos no Senhor, e alegremo-nos nele!

924 | 11 de dezembro de 2025 | Mateus 11,11-15

João Batista sempre gozou da admiração dos cristãos, e isso desde os primórdios. Embora não tenha feito parte da comunidade dos discípulos de Jesus, ele ocupa um lugar proeminente na galeria das primeiras testemunhas. O tempo dele foi o tempo da profecia, não o tempo do discipulado. Ele chegou a conhecer Jesus, e conduziu a ele seus discípulos, mas a violência de Herodes o impediu de ver a novidade exuberante e graciosa do Reino de Deus.

Nos dias que antecedem e preparam o Natal de Jesus, a liturgia cristã recorre frequentemente à pregação e ao testemunho de João Batista. Como Maria e José, ou até mais que eles, João prepara o povo para acolher Jesus, não como Menino, mas como Messias esperado. É impossível ouvi-lo e não colocar as mãos à obra para preparar e endireitar os caminhos e aplainar os torrões, para que a justiça e a paz se abracem. E é impossível não colocar os pés na estrada para conhecer Jesus e assimilar o seu projeto.

João é um sinal que aponta para o Reino que está próximo, como o dedo do pai que mostra a estrela-guia ao filhinho. Permanecer discípulo de João seria como olhar para o dedo e não perceber a estrela. João sabia que sua missão de precursor era transitória e breve, que sua pregação e seu lugar não eram definitivos. Ele sempre enfatizou que era menor que Messias que ele anunciava, e desejava diminuir para que o Messias aparecesse.

É nessa perspectiva que Jesus reconhece a imponência de João, sua coragem de falar sem medo: “Dentre os nascidos de mulher, nenhum é maior que ele!” Mas Jesus também sublinha a radical novidade do Reino que se inaugura e o valor supereminente dos discípulos que o seguem. “O menor no Reino dos céus é maior que ele”, ajuntou Jesus. É isso mesmo: João Batista é um mensageiro, um precursor, ele anuncia a chegada de Outro, do Maior. Ele é a Voz que grita no deserto, e Jesus é a Palavra que se faz carne. João prepara a estrada; Jesus é o Caminho.

É isso que preparamos no Advento e celebramos no Natal: o reconhecimento e a acolhida de Jesus na pobreza da manjedoura como o Enviado do Pai para inaugurar novos céus e nova terra. Mas sem esquecer que hoje também o Reino de Deus é atacado violentamente. Poderosos violentos, agarrados aos seus ‘podres poderes’ querem se apropriar dele e esvaziá-lo. Também a isso precisamos ficar atentos. “Quem tem ouvidos, ouça!”, insiste Jesus.

 

Sugestões para a meditação

§  São poucas as pessoas que conseguem pensar evangelicamente no advento sem visualizar a voz e o personagem de João Batista

§  Se Isabel e Zacarias, e Maria e José, são exemplos de espera ansiosa, João encarna o precursor que prepara

§  Abracemos também nós o caminho do seguimento de Jesus, pois é assim que estaremos à altura de João Batista

§  Você é capaz de diminuir para que outros cresçam, de viver com alegria a condição de quem prepara e não usufruiu?

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

A tragédia do feminicídio

“Livrai o oprimido das mãos do opressor” (Jr 22,3)


Queridos irmãos, louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

No dia 25 de novembro, a comunidade internacional se dedicou à reflexão sobre a eliminação da violência contra as mulheres. Movido pelo impulso desse dia e, também, por uma preocupação séria e inadiável – a violência contra as mulheres -, tomei a liberdade de chegar até vocês por meio desta carta. Em primeiro lugar, quero lembrá-los de que o tema não é apenas um drama social; é uma ferida moral, espiritual e humana, que marca famílias, destrói vidas, traumatiza crianças e humilha a dignidade dada por Deus a cada mulher. No rosto de cada mulher violentada, vemos o rosto Cristo Crucificado, da Igreja ferida.

Os números oficiais revelam que a gravidade do que enfrentamos é uma realidade que clama aos Céus. Em 2024, o Espírito Santo registrou 15.954 atendimentos por violência contra a mulher no canal Ligue 180 – um aumento de 44% em relação ao ano anterior (BRASIL, 2024). As denúncias formais chegaram a 2.670 registros (BRASIL, 2024).

§  Segundo o Observatório Mulher ES, somente em 2023, houve milhares de casos de violência física, psicológica, sexual, moral e patrimonial;

§  Em 2024, 41% dos homicídios de mulheres no ES foram feminicídios;

§  Em 2025, graças ao esforço conjunto do governo e da sociedade, vem se registrando uma pequena queda nos feminicídios, embora cada caso ainda seja uma tragédia que não deveria existir;

Mas números não consolam. Porque, por trás de cada um, há uma mulher com nome, rosto, história — e, muitas vezes, filhos traumatizados pelo que viram ou sofreram. A violência, como nos alertou o Papa Francisco, é “uma chaga que desfigura a humanidade” (EVANGELII GAUDIUM, n. 217).

A masculinidade que o mundo ensina – baseada em poder, silêncio, agressividade, descuido e violência -, fere o Evangelho. Um estilo de masculinidade que gera medo não é cristão. Um homem que levanta a mão para ferir uma mulher, nega o batismo que recebeu.

O fazer-se cristão começa nas relações cotidianas: no respeito, nos gestos de cuidado, na renúncia ao machismo, na vigilância sobre as atitudes e palavras.

Como homens cristãos, precisamos nomear claramente o mal que desejamos combater. A violência contra a mulher inclui: violência física: agressões, empurrões, tapas, estrangulamentos, lesões; violência psicológica: humilhações, ameaças, controle, insultos, manipulação emocional; violência sexual: coerção, estupro, abuso, exposição forçada; violência moral: calúnias, difamações, controle público da vida da mulher; violência patrimonial: impedir a mulher de trabalhar, controlar dinheiro, destruir objetos, reter documentos.

Toda violência é incompatível com o Evangelho. A Sagrada Escritura nos recorda: “Maridos, amai vossas esposas como Cristo amou a Igreja” (Ef 5,25); “Quem quiser ser o primeiro, seja o servo de todos” (Mc 9,35); “Enviou-me para libertar os oprimidos” (Lc 4,18).

A violência contradiz diretamente o mandamento do amor. Como o Papa Francisco afirmou: “A violência contra as mulheres é uma covardia que degrada toda a humanidade.” A Encíclica Amoris Laetitia denuncia a violência doméstica como “uma vergonha que precisa ser erradicada” (AL 54). São João Paulo II também recorda que a mulher possui “uma dignidade inalienável que deve ser respeitada em qualquer circunstância” (MULIERIS DIGNITATEM, 10).

Como pastor diocesano, também como homem, venho lhes fazer um apelo: Em nome de Jesus Cristo, convertamos as nossas atitudes, palavras e comportamentos. A masculinidade de acordo com os princípios cristãos não domina, não humilha, não controla, não grita, não ameaça, não impõe medo.

Ser homem, à luz do Evangelho, é ser cuidador, guardião, servidor, construtor de paz. Por isso, peço-lhes que examinem o coração. A raiz da violência muitas vezes está na dificuldade de lidar com frustrações, na herança de padrões violentos aprendidos na infância, no alcoolismo e no uso de drogas, na falta de diálogo, na incapacidade de expressar emoções. A conversão passa por reconhecer limites e buscar ajuda quando necessário.

Peço-lhes, ainda, com firmeza e fraternidade: caso vejam sinais de violência em um amigo, colega, vizinho ou parente, não se omitam. O amor ao Evangelho não nos permite neutralidade. Jesus tomou partido pela vida, sempre. Sigamos os seus passos. Aconselhem-no. Ofereçam ajuda. Mostrem a ele que existe outro caminho. Um homem ajudando outro homem a mudar pode salvar uma família inteira. Um homem cristão, por amor a Cristo, precisa falar com outro homem e dizer: “Isso não é certo.” “Procure ajuda.” “Pare antes que destrua sua família.” Uma conversa pode salvar vidas.

Convoco os homens – jovem, adulto, pai de família, trabalhador – participantes das nossas Comunidades Eclesiais de Base, dos Círculos Bíblicos, das pastorais, movimentos, grupos de oração, do terço dos homens- a falar sobre o assunto. Assumam essa missão como parte da própria fé vivida no dia a dia. Sejamos todos promotores da vida, e não cúmplices da violência. Uma comunidade que fala sobre o problema é uma comunidade que cura. O silêncio é cúmplice da violência; a palavra liberta. Para que isso aconteça, não é necessário formalidade, é preciso coragem.

Assim, sugiro que aprendamos a promover rodas de conversa sobre masculinidade saudável e discipulado; cuidado emocional; prevenção à violência; caminhos de superação do machismo; educação dos filhos no respeito; fé e cuidado com a vida. É sinal de maturidade cristã que um homem seja capaz de refletir e dialogar.

Cristo nos chama para agir, a tomar atitudes e práticas para proteger vidas. Se vocês presenciam ou suspeitam de violência, procedam assim:

1.  Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher.

2.  Ligue 190 – Emergência policial.

3.  Procure a Delegacia Especializada da Mulher (DEAM).

4.  Encaminhe a vítima para atendimento médico e psicológico.

5.  Ajude a garantir que a mulher não fique sozinha.

6.  Acolha sem julgar, sem pressionar e sem expor.

No território que compreende a Igreja particular de Cachoeiro de Itapemirim, proponho que assumamos em nossas comunidades: criar Grupos comunitários e paroquiais de enfrentamento à Violência; produzir materiais formativos para homens; implementar, em toda a Diocese, o Mês da Proteção da Mulher; oferecer formação para agentes de pastoral acolherem vítimas; promover encontros anuais sobre masculinidade cristã; integrar paróquias à rede municipal e estadual de proteção; fortalecer a Pastoral Familiar, a Pastoral da Escuta e a Pastoral da Mulher.

Precisamos, como cristãos, como homens de Deus, ouvir o clamor das mulheres, rezar por suas dores, suas histórias, suas resistências e sua esperança. Pedimos perdão pelo silêncio histórico que tantas vezes tolerou a violência. Não podemos esquecer que crianças expostas à violência doméstica, são vítimas invisíveis. Elas carregam traumas por toda a vida. Proteger a mulher é proteger os filhos.

Por fim, que São José, homem justo, ensine-nos a amar sem dominar, proteger sem controlar, servir sem esperar retorno. Que o Espírito Santo converta os corações endurecidos. E que o Deus da vida nos envie como defensores da dignidade de cada mulher.  Recebam minha bênção e meu cuidado pastoral.

Dom Luiz Fernando Lisboa, CP
Diocese de Cachoeiro de Itapemirim

Diocese de Cachoeiro de Itapemirim

Sobre fardos

Jesus nos liberta do jugo de acumular e consumir

923 | 10 de dezembro de 2025 | Mateus 11,28-30

Num contexto de rejeição de sua pessoa e sua mensagem, Jesus eleva seu louvor ao Pai pelos discípulos e discípulas que, entendem e acolhem o caminho do Reino de Deus. E sublinha que é resultado do querer de Deus que a elite do judaísmo nada consiga entender da sua proposta e que os segredos da sabedoria da vida sejam acessíveis aos pobres. Eles saíram do cansaço por causa da necessidade de cumprir um monte de leis que não lavavam a nada.

A alegria e o consolo de Jesus é ver que, para encontrar alívio dos fardos que carregamos, muitos homens e mulheres seguem os seus passos. Sua palavra e suas ações abrem a nós as portas da liberdade e da humanização, e todos precisamos aprender dele e com ele a promover, em palavras e ações, o Reino de Deus, que suscita e inaugura práticas, estruturas, relações, prioridades e perspectivas alternativas. Nada pode ser colocado fora ou acima disso.

O jugo de Jesus (uma das palavras que ele usa para falar do seu caminho ou da sua proposta) não é canga que pesa, prende e domina, mas leveza que nos torna mais humanos e mais capazes de viver e amar. E ele nos convida a aprender do seu coração a mansidão e a bondade, pois nele não há espaço para a indiferença, para a vingança ou para a violência. O coração de Jesus, ou o Reino que ele encarna e antecipa, é suave, bom e amável, é misericórdia e compaixão que afirma, reabilita e liberta os cansados e oprimidos.

É importante refletir sobre aquilo que hoje nos cansa ou nos deixa abatidos. Às vezes não demonstramos, mas a competição predatória, aquela que nos leva a querer sempre chegar em primeiro lugar, de dominar tudo, de ter e consumir tudo o que nos convencem que necessitamos, de tomar uma medrosa e crescente distância dos empobrecidos e diferentes, de bajular os poderosos e vencedores de plantão, de multiplicar orações e ritos sem fim, tudo isso nos cansa e nos deixa vazios, exaustos e prostrados.

O nascimento de Jesus e o Evangelho que ele nos entregou nos apontam outro caminho, mais realizador e mais humano, menos cansativo e menos pesado. Ele tem suas exigências, mas seus custos não são pagos pelo sacrifício do gosto de viver e conviver. A felicidade não consiste em possuir tudo, mas em necessitar pouco! A salvação é alcançada quando alargamos nossa tenda para que nela caibam todos os humanos seres.

 

Sugestões para a meditação

§  O evangelho de hoje nos orienta para uma atitude madura e adequada na preparação do Natal: aprender de Jesus

§  Você seria capaz de dar nome e descrever o que é que mais está cansando e pesando para você hoje?

§  Você consegue identificar os projetos e barreiras que pesam sobre as pessoas mais pobres e dificultam seu crescimento?

§  Como você, sua família e sua comunidade podem proceder para que as próprias festas natalinas não se tornem vazias e pesadas?