Eles permaneceram firmes
como se vissem o invisível
(At 12,1-11; Sl 33/34; 2Tm 4,6-8.17-18; Mt
16,13-19)
Para coroar este mês recheado de
memórias de santos populares, temos a festa de São Pedro e São Paulo. Como
sempre, é preciso escutar o testemunho das Escrituras e chegar à vida real, com
suas possibilidades e desafios. Se é verdade que Pedro é o primeiro líder dos
cristãos e Paulo é o apóstolo dos povos, não podemos esquecer que ambos, cada
um a seu modo, foram discípulos de Jesus e passaram por sucessivas crises e
dificuldades, provaram a prisão e foram martirizados. Eles fazem parte daquela
‘nuvem de testemunhas’ da qual fala a Carta aos Hebreus (12,1). Eles viveram e
morreram firmes na fé, como se vissem o invisível (cf. Hb 11,13.27). Acolhamos
com reverência o testemunho destas colunas que sustentam e vidas que interpelam
as comunidades cristãs de hoje.
“Enquanto Pedro
era mantido na prisão...”
O primeiro Papa foi presidiário! Esqueçamos por um instante a cena contada por
Mateus e centremos nossa atenção no acontecido narrado nos Antos dos Apóstolos.
Herodes maltratava os cristãos e mandara matar à espada Tiago. Percebendo que
isso agradava aos judeus, aproveitou para aumentar sua baixa popularidade e
mandou prender Pedro, providenciou uma guarda competente e de confiança e
permitiu-se festejar tranquila e cinicamente a páscoa judaica.
Para que serviam as chaves
prometidas por Jesus Cristo se não ajudavam a soltar as algemas que o prendiam
ou abrir a porta da prisão, mantida sob rigorosa vigilância? Pedro estava
imerso na penumbra destas e outras perguntas quando uma luz iluminou a cela,
uma mão tocou seu ombro e uma voz ordenou que se levantasse depressa. As
algemas que o prendiam caíram no chão, os guardas que vigiavam não viram nada e
as portas que separavam a cela da cidade se abriram sozinhas...
Em vez de centrar nossa atenção nos
aspectos miraculosos, fixemo-nos na condição de vida de Pedro e dos demais
irmãos na fé. Acusados publicamente, apedrejados nas praças, trancafiados nas
prisões, degolados a fio de espada... Mas nada disso tinha o poder de calar a
voz ou deter a ação. Que diferença de uma Igreja que faz o sucessor de Pedro
desfilar no papa-móvel sob aclamações como ‘Cristo venceu, Cristo reina, Cristo
impera’ e procura protegê-lo hermeticamente das críticas da imprensa... Às
vezes penso que o sucessor de Pedro é prisioneiro da própria Cúria e suas
tradições...
“Chegou o tempo da minha partida...”
Paulo, por sua vez, foi denunciado, perseguido,
encarcerado e finalmente executado. Depois de ter sido um fariseu zeloso e
violento e de ter acumulado muitos méritos e honras por causa disso, ele fez a
experiência de ser conquistado por Jesus Cristo e, diante do bem supremo desta
acolhida gratuita e imerecida, considerou tudo como lixo e déficit na contabilidade
da vida (cf. Fil 3,1-14) e se lançou incansavelmente no anúncio desta boa
notícia, especialmente às pessoas de origem pagã.
O zelo e o ardor que Paulo
demonstrara pelo judaísmo se transformou em zelo pela fé em Jesus Cristo. Mas
isso provocou desconfiança por parte dos próprios cristãos e ódio por parte dos
seus irmãos judeus. Para resumir esta história que conhecemos bem, depois de
sucessivos enfrentamentos e perseguições, Paulo
também acabou na prisão. Sendo cidadão romano, exigiu o direito de ser
julgado decentemente em Roma, e para lá foi conduzido.
Mas ninguém conseguiu colocar sob
algemas aquilo que o fazia livre: a Boa Notícia de Jesus Cristo. “Por ele, eu
tenho sofrido até ser acorrentado como um malfeitor. Mas a Palavra de Deus não
está acorrentada” (2Tm 2,9). Paulo sabia muito bem em quem colocara sua
confiança, não se envergonhava de compartilhar a sorte dos encarcerados e pedia
que ninguém se envergonhasse dele e de testemunhar a favor de Jesus Cristo, que
também foi preso e condenado (cf. 2Tm 1,8).
“A Igreja orava continuamente a Deus por ele.”
Pedro e Paulo são filhos, irmãos e pais da fé numa Igreja que confirmou
com a vida aquilo que anunciou com as palavras. De um lado, Pedro, Paulo e os demais cristãos
detidos mantinham contato com as suas comunidades de base, inclusive através de
cartas às suas principais lideranças; de outro, as comunidades não ficavam
indiferentes, apesar da crise de fé provocada por uma perseguição feita em nome
de Deus e da religião e dos riscos políticos e sociais que que estas relações
implicavam.
O vínculo entre a comunidade dos
discípulos e discípulas e seus líderes presos se mostra de um modo singelo e
comovente no relato dos Atos dos Apóstolos. “Enquanto Pedro era mantido na
prisão, a Igreja orava continuamente por ele.” Um pouco antes, quando Pedro e
João haviam sido liberados da prisão, a comunidade pedia em oração: “Agora,
Senhor, olha as ameaças que fazem, e concede que teus servos anunciem
corajosamente a tua Palavra” (At 4,29). Pedia coragem, e não tranquilidade.
Pedro faz a profunda experiência da presença fiel de Deus na prisão. Saindo do cárcere, vai à casa da
mãe de João Marcos, onde a comunidade estava reunida em oração. Quando
Rosa, a mãe de Marcos, abriu a porta e viu que era Pedro, foi
tomada de tamanha alegria que o deixou plantado do lado de fora e foi anunciar
à comunidade reunida, a qual pensou que Rosa estava doida. Aberta a porta,
Pedro entrou e contou entusiasmado o que havia acontecido, e depois recolheu-se
num lugar escondido.
“Tu és o Messias, o Cristo, o Filho do Deus vivo!”
O que sustenta as Igrejas e comunidades cristãs é o encontro com Deus em Jesus Cristo. O que o evangelho de hoje nos propõe é substancialmente
isso. Num lugar marcado pela influência e pelo domínio estrangeiro (a cidade se
chamava Cesaréia e depois Neronias), Jesus faz uma pergunta que é central no
terceiro bloco narrativo de Mateus (11,2-16,20). E esta é a primeira vez que um
discípulo o reconhece e proclama Messias, embora um pouco antes, depois da
tempestade acalmada, todos os discípulos haviam proclamado, de joelhos:
“Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus” (Mt 14,33).
Não esqueçamos que, mesmo sem
rejeitar a confissão de Pedro e dos demais discípulos, Jesus chama a si mesmo Filho do Homem, e não Filho de Deus (cf. Mt 11,19; 12,8; 12,32),
acentuando assim seus vínculos com a humanidade. Só quem está aberto e sintonizado com a lógica de Deus pode reconhecer
a presença de Deus nas ações e palavras deste filho da humanidade e irmão de
todos os seres humanos, e esta é a base sólida sobre a qual Jesus Cristo
constrói a comunidade cristã, literalmente, a assembléia dos chamados. “Não foi
um ser humano que te revelou isso...”
Da experiência de fé e de adesão a Jesus Cristo brota a missão. As lideranças e comunidades que
conseguem dar este passo recebem as chaves do Reino de Deus, ou seja: a missão
de continuar a tarefa libertadora de Jesus. A imagem das chaves e a metáfora ligar-desligar
estão relacionadas a esta missão de construir o Reino de Deus na perspectiva
das Escrituras e do caminho trilhado e proposto por Jesus Cristo, enfrentando
conflitos mas jamais sucumbindo. Quem recebe as chaves da porta do Reino de
Deus não teme as portas do inferno. Até a prisão se torna uma oportunidade de
evangelização.
“O Senhor veio em meu auxílio e me deu forças.”
Crer, confiar, partilhar e anunciar: estes são os verbos essenciais da
gramática dos cristãos. Só chega à meta estabelecida quem conjuga estes verbos em todos os
tempos e pessoas e percorre estas etapas. Escrevendo a Timóteo desde a cela da
prisão, Paulo faz um balanço da sua vida, e suas palavras são eloquentes e
comoventes: “Chegou o tempo da minha partida. Combati o bom combate, terminei a
corrida, guardei a fé.” Um pouco antes ele havia escrito: “Estou suportando
também os sofrimentos presentes, mas não me envergonho. Sei em quem acreditei”
(2Tm 1,12).
Os santos e santas são filhos da Igreja, os mais belos entre
seus muitos frutos: profetas, mártires, confessores/as, construtores/as de uma
terra renovada na qual a Justiça faz morada (cf. 2Pd 3,13). Mas são também pais e mães da Igreja, gente que aceita
gerar no sofrimento e na alegria uma assembléia de irmãos e irmãs, de homens e
mulheres convocados/as e convocadores/as, amigos/as entre si e solidários/as
com todas as vítimas e sofredores, em permanente ritmo de missão.
A glória dos santos e santas não vem
das honras e aplausos encomendados, mas do Deus vivo, e por isso os humildes que
os vêm podem se alegrar. Quem reconhece o Filho de Deus encarnado na humanidade
não está livre das dificuldades, mas sabe que “o anjo de Deus acampa em volta
dos que o temem”, como diz o Salmo. Por isso, feliz quem nele crê e espera:
viverá firme e forte, como quem vê o invisível.
Pe. Itacir Brassiani msf