Fomos libertados para
viver o Amor e a Justiça.
(1Rs 19,16.19-21; Sl 15/16; Gl
5,1.13-18; Lc 9,51-62)
Os jogadores de futebol, assim como
todos os demais atletas que se preparam para uma Olímpiada ou Copa do Mundo,
sabem muito bem o que isso custa: muitas semanas e meses de treinamento e de exercícios
exigentes; disciplina física, sentimental e moral; distanciamento momentâneo da
família; respeito e obediência ao treinador; enfrentamento leal com os
adversários esportivos; empenho para dar o melhor e tudo de si por um êxito
coletivo... De modo semelhante, o seguimento de Jesus Cristo supõe uma decisão
firme, tomada no passado e mantida no presente, e a disposição para tomar
distância de tudo aquilo que, mesmo sendo bom, possa comprometer a liberdade
fundamental. As cenas narradas no livro dos Reis e no evangelho deste domingo,
assim como a exortação de Paulo, querem nos orientar nesta disputa que dura uma
vida e vale uma eternidade.
“Jesus tomou a firme decisão de partir para
Jerusalém...”
Professar e viver a fé cristã hoje supõe uma decisão pessoal e refletida. Uma decisão que não tem como única
referência os próprios desejos e sonhos, mas toma a sério uma meta: seguir e imitar Jesus na sua paixão pela humanidade, na
sua solidariedade com os últimos, no seu enfrentamento com os poderes que se
opõem ao projeto de um mundo onde todas as criaturas tenham seu lugar. Entre o
amor a Deus e a ação para melhorar o mundo não se interpõe um ‘ou’ excludente
mas um ‘e’ conjuntivo.
Ser discípulo/a de Jesus Cristo numa
sociedade líquida, que rejeita
referências sólidas e duradouras, enrijece a lógica que tudo transforma em
mercadoria, assimila a exclusão como destino inexorável e estabelece a
indiferença como sinônimo de liberdade, é uma atitude que pede uma decisão firme. É paradimático que, frente à tentação do
integralismo e à discussão sobre quem dos discípulos era o maior e (cf. Lc
9,46-50), “Jesus tomou a firme decisão
de partir para Jerusalém”.
Esta decisão de Jesus é uma
referência indireta à palavra escutada outrora pelo profeta Ezequiel: “Filho do
homem, volta o teu rosto para Jerusalém
e vaticina contra o santuário deles,
profetiza contra a terra do Israel”
(Ez 21,7). Como Jesus, a decisão que se
pede aos cristãos de hoje não é de voltar os olhos ao céu ou contemplar
extasiados o explendor dos impérios, mas perceber e denunciar com sabedoria e
ousadia suas contradições e suas injustiças. Fomos libertados para a
prática do amor e da justiça.
“Mas os samaritanos não o queriam receber...”
Perseverar com coerência e criatividade
no caminho de Jesus Cristo exige renovada
coerência com o Evangelho, imbatível firmeza diante das resistências e
ânimo indestrutível frente às possíveis decepções. Como os discípulos daquele
tempo, somos enviados à frente de Jesus
como mensageiros/as que também se ocupam de preparar-lhe um lugar, cientes das
possíveis resistências “Mas os samaritanos não o queriam receber, porque
mostrava estar indo para Jerusalém.”
Esta reação dos samaritanos - um
grupo social que recebe uma atenção privilegiada de Jesus – é compreensível diante de um anúncio
possivelmente insuficiente por parte dos discípulos. Assim como os discípulos haviam
proibido o trabalho daqueles que faziam o bem mas não estavam com eles, é
possível que tenham anunciado aos samaritanos um Jesus nacionalista,
identificado com os poderes e doutrinas que diminuíam e excluíam os samaritanos,
omitindo que Jesus estava subindo a Jerusalém para enfrentar a rejeição e o
martírio.
Não seria exatamente esta a
principal causa da resistência que o mundo ocidental e moderno opõe ao
cristianismo? Será que não temos
identificado demasiadamente Evangelho e poder? Será que não temos renegado culpavelmente
a defesa humilde e decidida dos direitos de todos os humanos? Será que não temos esquecido perigosamente a
profecia e o martírio? Pouco adianta ameaçar os ateus e as (indevidamente
chamadas) seitas com o fogo que desce do céu ou sobe do inferno. O que
precisamos mesmo é de conversão ao Evangelho de Cristo, abandonando a pretensão
do monopólio da verdade.
“Eu te seguirei
aonde quer que vás...”
Aceitemos a advertência de Jesus e partamos para outros povoados e periferias,
cientes de que seguir Jesus Cristo nos caminhos da história de hoje é a vocação
de todos os homens e mulheres que aderem ao cristianismo. Se nosso caminho
tiver uma direção clara e permanece fiel à prática de Jesus, é possível que
muitas pessoas, pertencentes tanto dos setores sociais mais abastados como aos
grupos populares, se sintam fortemente
interpaladas ao discipulado também hoje.
É verdade que aqueles que procuram
nossas comunidades cristãs trazem as contradições e ambivalências das quais nem
a Igreja e seus prelados conseguem se livrar. O Evangelho de hoje apresenta três casos paradigmáticos de discipulado
(dois se aproximam espontaneamente e um é chamado por Jesus). E isso nos lembra
que Jesus atrai discípulos, inclusive num ambiente desprezado e suspeito de
heresias como a Samaria. Essa gente não é menos perfeita que os demais
discípulos...
Mas estes três casos são simbólicos e oferecem a oportunidade para uma
reflexão séria a todos aqueles/as que se
colocam no caminho com Jesus Cristo. Firme
na decisão de subir para Jerusalém e mostrar um Messias humano e servo, Jesus
apresenta claramente as consequências da opção de estar com ele. À exortação
a não ter medo e à promessa de fazer do discípulo um pescador de gente (cf. Lc
5,10), Jesus já acrescentara prudentemente a bem-aventurança da perseguição
(cf. Lc 6,22) e a prevenção contra o aparente sucesso (cf. Lc 6,26). Agora
avança na exposição da ética do
seguimento.
“É para a liberdade que Cristo nos libertou!”
As rupturas e renúncias que Jesus propõe a quem o segue são uma
pedagogia da liberdade. Assim como exigira um distanciamento
consciente e decidido do fanatismo – pois o fanatismo é sempre um
fechamento que filtra perigosamente a Palavra de Deus e distorce a imagem do
outro – agora Jesus pede uma ruptura com
alguns costumes que, mesmo conservando um certo valor, podem limitar a
liberdade, e enfatiza a prioridade absoluta
e a urgência de engajar-se no advento do Reino de Deus.
Pedir e celebrar o batismo expressa
a decisão de seguir Jesus Cristo, ou seja: compartilhar sua utopia, reinventar
sua prática, imitar sua forma de vida e compartilhar seu destino. E aqui
devemos evitar o erro de imaginar um Jesus vitorioso, elevado aos céus,
indiferente e distante em relação às lutas e dilemas humanos. A história de
Jesus é essencial para o/a discípulo/a,e
ela nos mostra que Jesus vive sem
estabilidade alguma, na incerteza e na precariedade, sujeito ao desprezo, à
perseguição e à morte.
O que Jesus enfatiza no Evangelho de
hoje é que o seguimento dos seus passos e
o compromisso com o Reino de Deus deve estar acima de todos os demais deveres,
lealdades e atividades. Ele pede que ponderemos bem as consequências, pois
não promete sucesso, mas confronto. Até
mesmo as lealdades próprias do âmbito familiar e os deveres religiosos
tradicionais estão subordinados à urgência das ações que constroem um mundo
mais humano e inclusivo. Trata-se daquela liberdade vivida e anunciada por
Paulo: somos vocacionados à liberdade para livremente colocarmo-nos a serviço
dos irmãos e irmãs.
“O Senhor é
minha parte na herança e meu cálice.”
Aqui também o que está em jogo é o
verdadeiro tesouro, o único que os ladroões não podem roubar e a ferrugem não
pode arruinar: o Reino de Deus (cf. Lc 12,33). Este foi o sonho que deu sentido
e razão à vida de Jesus e que deve ser o único absoluto na vida dos seus
discípulos e discípulas. Se é um tesouro precioso, os esforços para conquistá-lo
devem provocar mais alegria que tristeza. Como diz o salmo, esta é a mais bela
herança que podemos desejar e administrar responsavelmente.
Com palavras diferentes, Paulo repete
este ensinamento de Jesus: “Toda a lei se resume neste único mandamento: amarás
o teu próximo como a ti mesmo.” Eis a liberdade bela e preciosa à qual somos
chamados e à qual não podemos renunciar sem descer ao nível dos mortos: não a
autonomia, a indiferença e a superioridade mas o respeitoso reconhecimento da dignidade do próximo e o livre serviço
às suas necessidades. Nisso consiste a razoável obediência devida a Deus e
o amor maduro que de nós ele tem direito a esperar. Fomos libertados para a prática do amor e da justiça.
Jesus de Nazaré,
peregrino que caminha decidido a enfrentar o poder, mestre de exigentes lições:
queremos caminhar contigo, aprender aquilo que realmente conta e alcançar a
liberdade profunda e radical. Queremos aprender de ti e dos profetas que te
precederam e seguiram a profecia e o ardor pelos direitos de Deus. Dá-nos a coragem
e a disciplina para romper com todos os compromissos que reduzem ou adiam nossa
autêntica liberdade. E que nada nos
impeça de caminhar contigo. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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