Nosso Deus tem um coração,
grande e humano!
(Ez 34 11-16; Sl 22/23; Rm 5,5-11; Lc 15,3-7)
A tentação de fazer de Deus uma
imagem abstrata e de propor a mensagem cristã como se fosse somente doutrina
está sempre nos rondando. O fé num Deus uno e trino, celebrada na festa da
Trindade, pode virar uma questão de matemática. A boa notícia recordada na
solenidade de Corpus Christi pode
descambar numa discussão polêmica e fisicista. E acabamos representando o
mistério de Deus mediante figuras abstratas ou ameaçadoras, como o triângulo, a
lei, o olho. Até a cruz corre o risco de passar uma idéia parcial e doentia de
um Deus sedento de sacrifícios. Imagens como o Cordeiro, a Mesa, o Pastor e o Coração
não seriam mais adequadas?
“Procurarei a ovelha perdida, reconduzirei a
desgarrada, emfaixarei a quebrada...”
De certo modo, a maior parte da
humanidade vive em uma situação de exílio
e dispersão. Exílio, dispersão, fratura, falta de referência e de
horizonte, sentimento de vazio e de
carência não supõem necessariamente transgressão ou culpa. Trata-se mais de uma
situação, da condição humana na história.
Somos sempre menos do que desejamos ser. Nossos passos e projetos nem sempre
nos levam à meta que nos atrai. Mas este
é o chão no qual Deus vem ao nosso encontro e se deixa experimentar.
Cresce sempre mais a cosciência de
que estamos em situação de
vulnerabilidade: como a de uma ovelha que se perde do rebanho e se torna
presa fácil da voracidade dos lobos; como rebanho que, na busca de pastagens
cada vez mais raras e inacessíveis, é surpreendido pela escuridão da noite em
pleno deserto; como ovelhas que se descobrem abandonadas ou manipuladas por
aqueles que deveriam ser seus pastores e defensores. Esta é a terra na qual Deus vem nos procurar.
Ao peso inerente à própria condição
humana se acrescenta o fardo produzido por um modo de vida que considera o ser
humano como lobo do outro, por sistemas que geram ovelhas fortes e gordas às
custas do trabalho e da desnutrição de outras, por decisões que priorizam a
fabricação de armas de guerra ao cultivo de alimentos para o bem comum. Não dá
para esquecer que nos últimos 10 anos os EUA aumentaram em 75% os gastos
militares, chegando a 3% do PIB? E que no ano 2009, apesar de a economia
mundial ter encolhido em 06,%, os gastos militares cresceram 4,9%?
“Quando éramos inimigos de Deus...”
Às vezes esta situação de dispersão, abandono e risco é agravada também pelas
imagens de Deus viuculadas pelas religiões e ideologias. Precisamos superar
imagens abstratas e distorcidas de Deus. Que consolação podemos encontrar
naquela representação de Deus como um triângulo, composto de linhas e ângulos
absolutamente simétricos, mas carentes de vida? Que orientação pode nos vir de
conceitos herméticos como união hipostática, duas pessoas em uma natureza?
Algumas elaborações teológicas mais
recentes fizeram esforços significativos na hercúlea tarefa de trazer a noção
de Deus para dentro da cultura moderna. Mas o que significa concreta e
existencialmente conceitos como Absoluto, Transcendente, Divindade? Correm o
risco de passar mensagens ambíguas ou incompletas, como os antigos conceitos de
Altíssimo, Onipotente e Senhor. E às vezes não fazem outra coisa que cavar um
abismo entre Deus e ser humano, exluir de Deus qualquer traço de humanidade e
reforçar a idéia de que somos inimigos de Deus.
“Fortalecerei a ovelha doente e vigiarei a ovelha
gorda e forte.”
A Sagrada Escritura nos apresenta a
imagem de um Deus vivo e caracterizado
pela compaixão, e é isso que a solenidade do Sagrado Coração de Jesus quer colocar em evidência. Não
precisamos ter medo de reconhecer traços antropomórficos em nossas imagens de
Deus. Nunca nos livraremos disso! O que
precisamos evitar é projetar na nossa idéia de Deus elementos de uma
antropologia que exclui aspectos fundamentais como a croporeidade, a relação, o
sentimento e a solidariedade.
Quando a tradição bíblica nos
apresenta Deus como Pastor, está destacando a compaixão, o cuiadado, a proteção
e a orientação que o caracterizam. Via de regra, Deus realiza este modo de ser
mediante os homens e mulheres que chama a tomar conta dos seus semelhantes. E,
segundo o profeta Ezequiel, se trata de se colocar no meio do povo, inclusive
nos lugares em que estão exilados; de resgatá-lo das mãos daqueles que o
dominam; de conduzi-lo a um lugar no qual se sinta em casa e tenha boas condições de vida; de criar
condições para que tenham o necessário repouso; de cuidar das ovelhas fracas e
doentes; de vigiar para que as ovelhas fortes e gordas não dominem sobre as
demais...
“A prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por
nós, quando éramos ainda pecadores.”
A solenidade de hoje quer sublinhar
que Deus tem um rosto humano, tem um
coração que ama apaixonadamente a humanidade. Convicto de que as
dificuldades levam à perseverança e à virtude, que, por sua vez, desabrocha na
esperança, Paulo insiste que Cristo deu
sua vida por nós, sem levar em conta nossas fraquezas e impiedades. É difícil
encontrar alguém que queira dar a vida por uma pessoa boa e meritória, mas “Cristo
morreu por nós quando ainda éramos pecadores...”
Esta é a prova de que Deus nos ama,
diz Paulo. Seu amor não se conjuga apenas
no tempo passado e no tempo futuro, mas também no tempo presente, e em todas as
pessoas. Mais que conceito, princípio, idéia ou equação, Deus é coração humano e humanizador. E é
nisso que se baseia a firme esperança de que nosso destino é a plenitude feliz
e não a nulidade vazia, assim como nossa certeza de que os oprimidos e
excluídos serão conduzidos a uma situação de vida em abundância.
“Deixa as noventa e nove e vai atrás daquela que se
perdeu...”
A imagem do pastor bom/belo nos
ajuda a compreender por quem é que bate o coração de Deus. Com a parábola do
bom bastor Jesus responde aos fariseus que o acusam de ter um coração
demasiadamente generoso e de ser ingênuo com os pecadores. Por definição, os
fariseus são o grupo dos judeus que se consideram justificados pela própria
condição ou pelo cumprimento literal e cego de algumas prescrições legais e,
por isso, se separam e tomam distância do comum dos mortais.
Diante deles, Jesus faz questão de
afirmar com palavras e ações que Deus não
se alegra com os puros e separados. Para ele, uma só daquelas criaturas
vistas como perdidas, desorientadas, em situação de risco, à margem do sistema
religioso e político judaico, vale mais que noventa e nove crentes
auto-indulgentes e separados. É por isso que, como um verdadeiro e bom bastor, Jesua vai em busca dos últimos, sem
cansar e sem levar em conta se merecem ou não seu amor.
O coração de Jesus bate forte pelos últimos da escala social, pelas
pessoas arruinadas por causa de escolhas mal feitas ou de sistemas que excluem. Longe de cair na armadilha de uma
generosidade ingênua, Deus escolhe muito
bem aqueles a quem dirige seu amor preferencial e ocupam um lugar nobre no seu
coração. Ele sai premurosamente ao encontro dos perdidos, reconduz os
desgarrados, cura os machucados, fortalece os doentes e vigia atentamente os
fortes. Deus tem um coração grande e um
amor universal, mas não tem medo de fazer opções concretas por quem mais
necessita.
“Alegrai-vos comigo!”
Deus nos livre da auto-justificação,
do sentimento de superioridade moral e espiritual, do distanciamento e da
indeferença em relação aos pobres e sofredores. É terrivelmente anti-cristã a
presunção de que a pureza das intenções e a nobreza das atividades espirituais
desenvolvidas por religiosos/as e sacerdotes é que fazem a alegria a Deus. Não é possível conjugar o sentimento de
superioridade e a atitude de separação com a fé em Jesus Cristo!
Mais que na celebração de cultos
solenes, na elaboração de doutrinas eruditas e na obediência formal a leis
minuciosas, a alegria de Deus consiste em
buscar e proteger as pessoas indefesas e ameaçadas e preparar para elas uma
mesa farta bem na cara dos inimigos que as perseguem implacavelmente. E
isso na proporção de 1 por 99! Este é o caminho e a proposta de Jesus. Não
deveria ser outro o caminho das Igrejas e de todos/as aqueles/as que crêem que
Deus tem um coração.
Jesus de Nazaré, amado e humano coração de Deus num mundo sem coração! Restaura nossas forças de discípulos/as e
missionários/as e guia-nos pelos caminhos da vida. Unge nosso rosto com o óleo
perfumado que nos proteger do calor ardente dos desertos. E faz com que saiamos
da igreja com o propósito de prosseguir a caminhada, certos de que tua graça e tua
felicidade nos acompanham. Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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