quarta-feira, 31 de julho de 2019

ANO C | TEMPO COMUM | DÉCIMO-OITAVO DOMINGO | 04.08.2019


Revestir-se do homem novo é buscar o Reino de deus!
Qual é a intenção do anônimo personagem do evangelho deste domingo quando chama Jesus de ‘mestre’? Depois da discussão sobre a autoridade de Jesus para expulsar demônios, da advertência sobre a busca obsessiva de sinais grandiosos e da crítica dura aos fariseus e doutores da lei, Lucas diz que “alguém do meio da multidão” pede a Jesus, sem esconder o habito de dar ordens: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo.”  Este sujeito não parece ser um dos discípulos que seguem Jesus no caminho a Jerusalém...
De fato, no evangelho segundo Lucas são sempre as pessoas estranhas a Jesus, ou os seus adversários declarados, que costumam chamá-lo ironicamente ‘mestre’: o fariseu que o criticou Jesus por deixar-se beijar pela mulher pecadora (7,40); os familiares de Jairo, cuja filha estava doente (8,49); o pai de um rapaz possuído pelo demônio (9,38); o doutor da lei, criticado por Jesus (11,45); um homem da elite judaica (18,18); os fariseus (19,39);  os espiões que querem denunciá-lo (20,21); os saduceus (29,28); os escribas (20,39). Estes exemplos deixam claro quem são os que chamam Jesus de mestre.
Chamando Jesus de mestre, este sujeito sem nome próprio não está expressando sua concordância nem sua adesão a ele. E Jesus percebe a ironia da saudação e as contradições do demandante, tanto que, respondendo, dá a entender que, se não for aceito como mestre, também não pode ser buscado como juiz. No fundo, Jesus percebe que este indivíduo está longe de estar no aperto ou ser um candidato a discípulo. Jesus percebe que se trata de alguém que corre o risco de ser devorado pela ganância. Mas essa situação concreta acaba proporcionando a Jesus a oportunidade de falar sobre a relação do discípulo com os bens.
“Atenção! Guardai-vos contra todo tipo de ganância, pois mesmo que se tenha muitas coisas, a vida não consiste na abundância de bens.” Esta é a reação de Jesus ao perceber que, por trás do pedido daquele sujeito, não está uma necessidade, nem um desejo de justiça, mas a fome insaciável de bens. E, para sublinhar a seriedade da sua exortação, Jesus propõe uma parábola na qual o protagonista é uma pessoa radicalmente voltada a si mesma, extremamente ambiciosa, que fala e decide tudo sozinha e não se interessa por mais ninguém. A linguagem usada pelo personagem é clara: ‘meus’ celeiros, ‘meu’ trigo, ‘meus’ bens.
No final de uma safra bem-sucedida, o personagem diz a si mesmo: “Meu caro, tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe e goza da vida.” Como não lembrar aqui a parábola do rico que festejava indiferente à miséria de Lázaro que jaz à sua porta (Lc 16,19-31)? Para Jesus, as pessoas que agem assim são tolas, desprovidas de qualquer resquício de razão, vazias de qualquer valor humano. São o tipo de gente que, com suas decisões, cavam abismos que os separam dos demais “simples humanos”. E acabam cavando também a própria ruína, pois são tão pobres que só tem dinheiro.
Mas, se o acúmulo desmedido de bens é tolice e pobreza humana, o que significa ‘ser rico diante de Deus’? Está claro que, para Jesus, o problema não está nos bens em si mesmos. O mal dos bens está no obstáculo que eles podem representar à liberdade radical e ao engajamento no movimento do Reino de Deus. O Reino de Deus é a pérola preciosa e o tesouro que vale mais que tudo, o terreno no qual brota o trigo que vai para a mesa dos pobres, o ventre no qual é gerada uma nova humanidade. Aos ricos, o que falta não são armazéns novos ou polpudas contas bancarias, mas adesão ao Reino de Deus, uma visão mais solidaria.
Paulo nos pede que, tendo sido ressuscitados com Cristo pelo batismo, aspiremos às coisas celestes, esforcemo-nos para alcançar as coisas do alto, onde está escondido o segredo da verdadeira vida, em Deus. É um outro modo de dizer que o segredo de uma vida feliz está na abertura e na dedicação ao Reino de Deus: nas relações fraternas e igualitárias; na partilha gratuita, solidária e generosa; na compaixão que humaniza e liberta; na mútua confiança que a tudo renova e sustenta. A Nova Criatura, renascida em Cristo, é a pessoa que não reconhece nem reivindica hierarquias ou privilégios de qualquer espécie.
Jesus de Nazaré, mestre na escola do serviço e guia na busca da vida bem-aventurada: aos olhos do teu e nosso Pai, mil anos podem representar menos que o dia de ontem, o aparente vigor da vida pode ser enganoso, e nós podemos desaparecer nesta mesma tarde. Já aprendemos amargamente que um projeto de vida fundamentado no acúmulo sem limites não tem fundamento, é uma bolsa roída pelas traças. Ajuda-nos então a manter e aprofundar nossa adesão ao teu caminho, ao teu estilo de vida, aos teus valores. Ensina-nos a contar bem os nossos dias, a colocar os bens materiais no seu devido lugar. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf

Livro do Eclesiástico 2,21-23 | Salmo 89 (90)
Carta de Paulo aos Colossenses 3,1-11 | Evangelho de São Lucas 12,13-21

quinta-feira, 25 de julho de 2019

O Evangelho dominical - 28.07.2019


TRÊS CHAMADAS DE JESUS

«Digo-vos pois: Pedi e ser-vos-á dado. Procurai e achareis. Chamai e se vos abrirá». É provável que Jesus tenha proferido estas palavras quando se deslocava pelas aldeias da Galileia, pedindo algo para comer, procurando abrigo e batendo à porta dos vizinhos. Ele sabia aproveitar as experiências mais simples da vida para despertar a confiança dos Seus seguidores no Bom Pai de todos.
Curiosamente, em nenhum momento nos é dito o que temos de pedir ou procurar nem a que porta bater. O importante para Jesus é a atitude. Perante o Pai devemos viver como pobres que pedem o que necessitam para viver, como pessoas perdidas que procuram o caminho que não conhecem bem, como pessoas indefesas que chamam à porta de Deus.
As três chamadas de Jesus convidam-nos a despertar a confiança no Pai, mas fazem-no com nuances diferentes. Pedir é a atitude própria do pobre. A Deus temos de pedir o que não podemos dar a nós próprios: o alento da vida, o perdão, a paz interior, a salvação. Procurar não é apenas pedir. É, além disso, dar passos para conseguir o que não está ao nosso alcance. Assim, devemos procurar, acima de tudo o reino de Deus e a sua justiça: um mundo mais humano e digno para todos. Chamar é bater à porta, insistir, gritar a Deus quando o sentimos longe.
A confiança de Jesus no Pai é absoluta. Quer que os seus discípulos nunca o esqueçam: o que pede, está a receber; o que procura encontra e ao que chama se lhe abre. Jesus não diz o que recebem concretamente os que estão a pedir, o que encontram os que procuram ou o que alcançam os que gritam. A Sua promessa é outra: aqueles que confiam em Deus, recebem; aqueles que acodem a Ele recebem “coisas boas”.
Jesus não dá explicações complicadas. Dá três exemplos que os pais e as mães de todos os tempos podem entender. Que pai ou que mãe, quando o filho lhe pede um pedaço de pão, lhe dá uma pedra redonda como as que se veem no caminho? Ou, se lhe pede um peixe, lhe dará uma daquelas cobras de água que às vezes aparecem nas redes de pesca? Ou, se lhe pedir um ovo, lhe dará um escorpião daqueles que se veem na margem do lago?
Os pais não escarnecem dos seus filhos. Não os enganam, nem lhes dão algo que possa prejudicá-los, a não ser «coisas boas». Jesus tira rapidamente a conclusão. «Quanto mais o vosso Pai do Céu dará o seu Espírito àqueles que lho peçam». Para Jesus, o melhor que podemos pedir e receber de Deus é o Seu Sopro, o Seu Espírito, o Seu Amor que sustenta e salva a nossa vida.
José Antônio Pagola.
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez.

ANO C | TEMPO COMUM | DÉCIMO-SÉTIMO DOMINGO | 28.07.2019


A oração alarga a visão e a ajuda a perseverar na caminhada.
A catequese de Jesus sobre a oração está inserida no contexto da sua caminhada para Jerusalém, onde se daria o confronto decisivo entre seu projeto de vida e os poderes oficiais do judaísmo e do império romano. Depois de relatar o ensino de Jesus sobre a necessidade de fazer-se próximo de quem está em situação de vulnerabilidade e nos apresentar sua lição na casa de Marta e de Maria, o evangelista Lucas começa dizendo que “um dia, Jesus estava orando num certo lugar”. O escritor sagrado prefere ser genérico, e não oferece maiores detalhes sobre o conteúdo e a forma dessa oração.
Entretanto, pelo contexto geral podemos deduzir que a oração de Jesus está claramente a serviço da fidelidade à sua decisão de construir o Reino de Deus mediante o serviço profético em favor dos últimos e do enfrentamento das forças que se lhe opõem. Pelo que deixam entender os evangelhos, nos momentos de oração Jesus vislumbra e recoloca diante de si o horizonte maior do Reino de Deus, e, assim, confirma seus passos nesta direção. Mas Jesus não parece preocupado em pedir que os discípulos rezem: ele simplesmente se retira em oração para confirmar sua identidade e renovar sua responsabilidade.
Observando a atitude de Jesus em oração, os próprios discípulos pedem que ele lhes ensine a rezar. Eles conhecem os ritos e fórmulas de oração ensinados por João Batista e por outros líderes religiosos, e parece que desejam que Jesus inicie eles nos ritos e práticas definidas e rígidas de oração. Estariam eles ansiando por práticas espirituais que os dispensem das exigências da conversão ao Reino, do despojamento e do dom de si mesmos? Longe de induzir à passividade e a uma visão mágica da vida, a oração ensinada por Jesus nos ajuda a potencializar os recursos de que dispomos para construir a vida e transformar a história.
A oração, especialmente a súplica, supõe, expressa e cultiva a consciência de que nos falta algo importante. Quem dispõe de todos os poderes e recursos não precisa pedir nada nem agradecer a ninguém. E quem está absolutamente satisfeito com o presente não espera nada para a futuro, a não ser um prolongamento repetitivo do presente.  Na oração que pede está embutido também o senso de urgência e de responsabilidade pessoal e comunitária diante dos dramas e necessidades do mundo. A oração que Jesus ensina supõe esta consciência diante da grandeza e da urgência da missão.
A primeira frase da oração ensinada por Jesus fala de santificar o nome de Deus, e isso significa esperar, reconhecer e promover ação libertadora de Deus na história. Na tradição profética, Deus é santificado quando liberta os oprimidos, perdoa os pecadores, sacia os famintos, repatria os exilados, garante um abrigo aos deserdados. “Teu nome é santificado quando a justiça é nossa medida”, cantamos hoje. Por outro lado, Jesus ensina que Deus é um pai bom, a quem podemos dirigir-nos com confiança, e até a insistir naquilo que necessitamos para fazer o bem. A atitude de Abraão e a parábola apresentada por Lucas o confirmam.
A oração funciona também como uma espécie de pedagogia que suscita e alimenta o ardente desejo do Reino de Deus. “Venha o teu Reino!” Isso significa que a oração cristã nos insere nos processos de transformação que estão em curso na história, mas que não se realizam por si mesmos. Esta súplica profunda e envolvente nos ajuda a evitar duas atitudes pouco cristãs: a conformidade resignada com o mundo do jeito que ele está; a preocupação escapista com uma indefinida vida depois da morte. Antes, a oração ensinada por Jesus estimula o ardente desejo do pão farto e gostoso em todas as mesas, todos os dias.
A oração cristã é uma ação essencialmente comunitária, e está enraizada no presente histórico e voltada ao futuro. E isso está patente na segunda parte da oração que Jesus nos ensinou: os pedidos estão na segunda pessoa do plural e são expressão da voz de uma comunidade. Mesmo quando oração é feita individualmente, sempre supõe uma comunhão real, profunda e visceral, não apenas com os cristãos da comunidade ou mesmo com a Igreja, mas com a humanidade e a criação inteira. É disso que fala o pedido do ‘pão nosso de cada dia’ e do perdão das nossas ofensas na medida do perdão que concedemos a quem nos ofendeu.
Jesus de Nazaré, irmão e amigo da humanidade e mestre na arte de rezar: ajuda-nos a pedir o que realmente necessitamos para continuar teu caminho. Tu sublinhas a importância de pedir com confiança e insistência. Mas qual é o pedido que o teu e nosso Pai não deixa sem resposta? Ajuda-nos a pedir mais que alimento e saúde, sucesso ou boa morte. Dá-nos o teu Espírito, sem o qual não há discipulado, profecia, liberdade e vida verdadeiras. Envia-nos teu Espírito, Senhor, e isso nos basta! Amém! Assim seja!
Itacir Brassiani msf

Livro do Gênesis 18,20-32 | Salmo 137 (138)
Carta de Paulo aos Colossenses 2,12-14| Evangelho de São Lucas 11,1-13

quinta-feira, 18 de julho de 2019

O Evangelho dominical - 21.07.2019


NÃO HÁ NADA MAIS NECESSÁRIO
O episódio é surpreendente. Os discípulos que acompanham Jesus desapareceram de cena. Lázaro, irmão de Marta e Maria, está ausente. Na casa da pequena aldeia de Betânia, Jesus encontra-se a sós com duas mulheres que adotam, perante a sua chegada, duas atitudes diferentes.
Marta, que sem dúvida é a irmã mais velha, acolhe Jesus como dona de casa e coloca-se totalmente ao seu serviço. É natural. Segundo a mentalidade da época, a dedicação aos afazeres domésticos era tarefa exclusiva da mulher. Maria, pelo contrário, a irmã mais nova, senta-se aos pés de Jesus para escutar a Sua palavra. A sua atitude é surpreendente pois está ocupando o lugar próprio de um discípulo, que é exclusivo dos homens.
Em determinado momento, Marta, absorta pelo trabalho e muito cansada, sente-se abandonada pela sua irmã e incompreendida por Jesus: «Senhor, não te importas que a minha irmã me tenha deixado sozinha com todo o trabalho? Diz-lhe que me ajude». Por que não manda a sua irmã que se dedique às tarefas próprias de toda mulher e deixe de ocupar o lugar reservado aos discípulos do sexo masculino?
A resposta de Jesus é de grande importância. Lucas escreve-a pensando provavelmente nas divergências e pequenos conflitos que se produzem nas primeiras comunidades no momento de definir as várias tarefas: «Marta, Marta, andas inquieta e nervosa com muitas coisas, quando na realidade só uma é necessária. Maria escolheu a melhor parte, e ninguém tirará dela».
Em nenhum momento Jesus critica Marta, a sua atitude de serviço, tarefa fundamental para os que seguem Jesus, mas convida-a a não deixar-se absorver pelo seu trabalho até ao ponto de perder a paz. Recorda que escutar a sua Palavra deve ser uma prioridade para todos, também para as mulheres, e não uma espécie de privilégio para os homens.
Hoje é urgente entender e organizar a comunidade cristã como um lugar onde se cuida, acima de tudo, do acolhimento do Evangelho no meio da sociedade secular e pluralista dos nossos dias. Nada é mais importante. Nada é mais necessário. Temos de aprender a reunirmo-nos, mulheres e homens, crentes e menos crentes, em pequenos grupos para escutar e partilhar juntos as palavras de Jesus.
Escutar do Evangelho em pequenas «células» pode ser hoje a «matriz» da qual se vá regenerando o tecido das nossas paróquias em crise. Se o povo humilde conhecer em primeira mão o Evangelho de Jesus, irá desfrutá-lo e reivindicá-lo à hierarquia, arrastando-nos a todos em direção a Jesus.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 17 de julho de 2019

ANO C | TEMPO COMUM | DÉCIMO-SEXTO DOMINGO | 21.07.2019


Qual é a única coisa realmente boa e indispensável?
Para entender corretamente o ensinamento de Jesus transmitido por Lucas no evangelho de hoje precisamos colocar a cena no seu contexto literário. O episódio está situado logo após a parábola do bom samaritano, enquanto Jesus percorre decididamente o caminho que o levará ao confronto com as autoridades religiosas e políticas e à morte em Jerusalém. A estrada será a escola na qual Jesus dará as lições essenciais aos discípulos que o seguem.  Jesus sai da estrada, que é símbolo da abertura, e entra numa cidade, símbolo de fechamento. A mulher que o recebe a chefe da casa, e seu nome significa literalmente ‘patroa’.
No episódio anterior, Jesus deixara claro que é socorrendo e atendendo às pessoas necessitadas que nós efetivamente servimos a Deus.  O que provoca a agitação de Marta é a necessidade de cumprir o código de leis que o judaísmo impunha aos fiéis, e que acaba afastando-os da compaixão e da misericórdia (cf. Lc 10,25-37), a tarefa de governar a casa e o desejo de controlar a própria vida, garantir a satisfação dos desejos e acumular riquezas (cf. Lc 8,14; 12,24-34). Muitas preocupações nos agitam, e nem todas são evangélicas. Não é a preocupação de atender às necessidades dos irmãos e irmãs, mas com coisas bem menores.
Essas preocupações levam Marta a querer corrigir o Evangelho e dar ordens ao próprio Jesus. “Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha com todo o serviço? Manda, pois que ela venha me ajudar.” A senhora Marta sente-se com autoridade para advertir Jesus e dar-lhe ordens! Bem ao estilo de alguns pregadores do nosso país, que querem reescrever o Evangelho para que sirva às ideologias do capitalismo, do patriarcalismo e do armamentismo. Mas Jesus ensina que o único bem necessário é sentar-se diante dele, dispostos a aprender seu Evangelho e seguir seus passos com a disposição de partilhar seu destino.
Eis o núcleo da questão: a escuta da Palavra viva de Jesus Cristo é condição para um ministério apostólico frutuoso. Enquanto Marta faz aquilo que é aparentemente mais seguro, urgente e eficaz, Maria faz o que é mais importante e fundamental. Maria faz a única coisa que é correta e boa do ponto de vista do Evangelho. Por isso, Jesus não fala simplesmente que ela escolheu “melhor parte”, mas que “uma só coisa é necessária”, e que Maria “escolheu a parte boa, e esta não lhe será tirada”. Isso não é um elogio à passividade, mas uma outra forma de afirmar aquilo que bom samaritano fez na parábola que Jesus acabara de contar.
Em outras palavras, a única coisa necessária, capaz de expressar e potencializar o dinamismo de uma vida terna e eterna, é o amor a Deus, conjugado com a compaixão ativa e solidária pela pessoa humana, especialmente pelas vítimas. É isso que precisamos aprender e reaprender aos pés de Jesus, deixando de lado outras coisas que, com sua aparente urgência e eficácia, não fazem outra coisa que provocar agitação e badalação. Para que serve a infinidade de leis canônicas, rubricas litúrgicas e normas disciplinares para ministros, ordenados ou não, se não ajudam a renovar e consolidar esta escolha fundamental?
Alargando essa reflexão para o horizonte social e cultural, podemos dizer que o que nos preocupa, agita e impede uma escuta atenta e engajada do Evangelho é nosso desejo de levar vantagem em tudo, de ser o primeiro, de salvar a própria pele sem se preocupar com os outros, de superar ou derrotar os outros. E então, não temos olhos nem ouvidos para os migrantes que adentram nossas fronteiras, nem para os desempregados por uma economia sem coração e agredidos por leis draconianas aprovadas pelos nossos parlamentares. Damo-nos por satisfeitos com cultos bonitos, templos cheios e carteiras gordas.
Paulo se alegra nos sofrimentos que enfrenta por causa da comunidade, e está disposto a completar em sua carne o que falta às tribulações de Cristo. Acolhendo o ministério que Deus lhe confiou, faz-se servidor da Igreja e se desdobra para que a Palavra de Deus chegue efetivamente a ela. Aqueles que ousam sentar-se aos pés de Jesus acabam indo onde vão estes pés! Paulo não diz que o sofrimento é santificação, mas que a adesão a Jesus Cristo e o fazer-se próximo dos últimos deve contar com a possibilidade de sofrer a oposição e as agressões vindas de quem não aceita mudança alguma, nem mesmo do coração.
Jesus, mestre de lições inesquecíveis nos caminhos da história! Tua Igreja vive tempos difíceis e tentadores. Crescem as exigências e o apreço por liturgias irretocáveis e por normas tão claras quanto discriminadoras. E isso acaba deixando os ministros preocupados com muita coisa e impedindo-os de sentarem-se aos teus pés para escutar tua Palavra. Reconduz nossas comunidades à tua escola, faz com que elas se sentem aos teus pés, para, contigo, saírem solidárias ao encontro das pessoas necessitadas para servi-las. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf

Livro do Gênesis 18,1-10 | Salmo 14 (15)
Carta de Paulo aos Colossenses 1,24-28 | Evangelho de São Lucas 10,38-42

quinta-feira, 11 de julho de 2019

O Evangelho dominical - 14.07.2019


NÃO PASSAR AO LADO

«Sejam compassivos como o Vosso Pai é compassivo». Esta é a herança que Jesus deixou à humanidade. Para compreender a revolução que quer introduzir na história, temos de ler com atenção o Seu relato do «bom samaritano». Nele se descreve a atitude que temos que desenvolver, para lá das nossas crenças e posições ideológicas ou religiosas, para construir um mundo mais humano.
Na sarjeta de uma estrada solitária, jaz um ser humano, roubado, agredido, despojado de tudo, meio morto, abandonado à sua sorte. Nesta pessoa ferida, sem nome e sem pátria, Jesus resume a situação de tantas vítimas inocentes, maltratadas injustamente e abandonadas nas sarjetas de tantos caminhos da história.
No horizonte aparecem dois viajantes; primeiro um sacerdote, depois um levita. Ambos pertencem ao mundo respeitado da religião oficial de Jerusalém. Os dois agem de forma idêntica: «Veem o ferido, dão a volta e passam ao lado». Os dois fecham os seus olhos e o coração. Para eles, aquele homem não existe. Passam sem parar. Esta é a crítica radical de Jesus a toda a religião incapaz de gerar nos seus membros um coração compassivo. Que sentido tem uma religião tão pouco humana?
Pelo caminho vem um terceiro personagem. Não é sacerdote nem levita. Nem sequer pertence à religião do templo. No entanto, ao chegar, vê o ferido, comove-se e aproxima-se. Então faz por aquele desconhecido tudo o que pode para resgatá-lo com vida e restaurar a sua dignidade. Esta é a dinâmica que Jesus quer introduzir no mundo.
O primeiro passo é não fechar os olhos. Saber «olhar» de forma atenta e responsável para os que sofrem. Esse olhar pode libertar-nos do egoísmo e da indiferença que nos permite viver com a consciência tranquila e a ilusão de inocência no meio de tantas vítimas inocentes. Ao mesmo tempo, «comover-nos» e deixar que o seu sofrimento nos doa também a nós.
Mas o decisivo é reagir e «aproximar-nos» do que sofre, não para nos perguntarmos se temos ou não alguma obrigação de ajudá-lo, mas para descobrir que é um necessitado que precisa de nós por perto. A nossa ação concreta revelará a nossa qualidade humana.
Tudo isso não é teoria. O samaritano do relato não se sente obrigado de cumprir um determinado código religioso ou moral. Simplesmente, responde à situação do ferido criando todo o tipo de gestos práticos destinados a aliviar o seu sofrimento e a restaurar a sua vida e a sua dignidade. Jesus conclui com estas palavras. «Vai e faz tu o mesmo».
José Antônio Pagola.
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 10 de julho de 2019

ANO C | TEMPO COMUM | DÉCIMO-QUINTO DOMINGO | 14.07.2019


As vítimas acima de todos, a solidariedade acima de tudo!
O Verbo de Deus não cessa de fazer-se carne, mas nós estamos sempre às voltas com a tentação de menosprezar este substantivo em nome de dissimulantes adjetivos ou interesses subjetivos. Agrada-nos esquecer que Deus ama a terra e a humana carne, e preferimos levantar questões sobre a vida eterna. O essencial da vida cristã, não é complicado e não se esconde em difíceis fórmulas ou teoremas. Precisamos livrar-nos da mania dos especialistas: levantar sempre novas perguntas, acrescentar novos pontos na discussão já esgotada, formular conceitos que nos mantêm soberanamente inativos e indiferentes.
Fato é que muitas das perguntas que fazemos não passam de estratégias para desviar da questão central. Isso acontecia também no tempo de Jesus. Ele acabara de enviar os discípulos e discípulas – muitos de origem samaritana – em missão. Os discípulos missionários voltavam com o coração cheio de alegria e de novidades para partilhar. Haviam anunciado a proximidade do Reino de Deus, curado doentes, reconstruído a paz; haviam se hospedado nas casas de pessoas desprezadas e sentado à mesa com elas. Para as pessoas muito espiritualistas, tudo isso parecia ser coisa demasiadamente corporal, material e terrena.
Então, entre decepcionado e escandalizado, um doutor da lei procura testar a ortodoxia de Jesus e recolocá-lo nos trilhos daquilo que entendia ser a verdadeira religião. Com a pergunta pela vida eterna, o teólogo do judaísmo quer afastar Jesus das preocupações com a vida cotidiana do seu povo. Considerando também a passagem de Lucas 18,18-30, parece que quem levanta perguntas sobre a vida eterna são especialmente as pessoas que não querem se comprometer com os irmãos e irmãs. Como se a religião fosse uma espécie de droga para nos afastar das dificuldades da vida presente.
Sabendo da erudição teológica, da estreiteza de horizontes e da má intenção do doutor da Lei, Jesus não responde à sua pergunta. Simplesmente pede ele mesmo a responda, o que faz com absoluta precisão: as Escrituras mandam amar a Deus com todo o coração, com toda alma e com toda a força, e ao próximo como a si mesmo. O que Jesus faz é chamar a atenção para a dimensão prática desta doutrina: “Faze isso e viverás.” O segredo da vida está na prática e não na prédica! Jesus não diz que este é o caminho para assegurar uma vida suplementar e superior depois ou à margem desta vida, mas simplesmente um caminho de vida.
Com a primeira pergunta, o doutor da lei queria testar a ortodoxia de Jesus. Com a segunda, pretende se justificar. A questão do amor a Deus é abstrata, manipulável e pouco mensurável, enquanto que amor ao próximo é mais concreto. Mas as autoridades religiosas discutiam incansavelmente sobre a quem se aplica o apelativo ‘próximo’. A doutrina oficial praticamente identificava o próximo com as pessoas que pertenciam ao judaísmo, com os membros do próprio grupo. Por trás da tentativa de justificar a estreiteza do seu mundo, o doutor da lei escondia a implícita intenção de recriminar a prática inclusiva de Jesus.
Jesus evita sabiamente a discussão teórica sobre quem é o próximo. Ele prefere propor uma situação concreta. Há um homem (não se diz se é judeu o pagão!) agredido, caído na estrada, necessitado de socorro. Um sacerdote e um levita passam pelo local, enxergam a pessoa assaltada e ferida, mas não tomam conhecimento de suas necessidades, afastam-se e seguem o caminho exclusivo da atenção às práticas religiosas e aos códigos legais. Afinal, aquele sujeito caído na estrada poderia ser alguém que deixara a cidade santa Jerusalém e abandonara a comunidade de fé.
Aparece então um homem que vivia na Samaria e que, movido pela compaixão, se aproxima da pessoa ferida e, sem perguntar se é ou não é seu próximo, cuida dos ferimentos, carrega-a no próprio animal e convoca outros a completar seu cuidado. Uma pessoa que não vinha do templo e que carregava na própria carne a ferida do desprezo e da exclusão foi capaz de perceber a necessidade e se aproximar de uma outra pessoa menosprezada e ignorada. O critério que orientou sua ação não foi a pertença religiosa mas a necessidade humana.  O anônimo e desprezado samaritano realizou o mandamento, fez-se próximo!
Jesus, divino samaritano e cabeça de um corpo formado de discípulos e discípulas. Somos a Igreja, teu corpo vivo na história, e não queremos ter outro caminho que não seja o teu. Ajuda-nos a seguir teus passos e as batidas do teu coração, caminhando compassivamente ao encontro das pessoas consideradas indignas ou inúteis pelos sistemas que se guiam pelo poder e pelo lucro. Que nossos passos jamais se afastem daqueles que só podem contar conosco, pois este é o segredo de uma vida plena de sentido e de luz. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
             Livro do Deuteronômio 30,10-14 | Salmo 8(19)       
Carta de Paulo aos Colossenses 1,15-20 | Evangelho de São Lucas 10,25-37

quinta-feira, 4 de julho de 2019

O Evangelho dominical - 07.07.2019


A PAZ DE DEUS
De poucas palavras se abusou tanto como da palavra «paz». Todos nós falamos de paz, mas o significado desse termo foi mudando profundamente afastando-se cada vez mais do seu sentido bíblico. O seu uso interesseiro fez da paz um termo ambíguo e problemático. Hoje, em geral, as mensagens de paz são muito suspeitas e não gozam de muita credibilidade.
Quando se fala em paz nas primeiras comunidades cristãs, não se pensa, antes de mais nada, numa vida mais calma e menos problemática, que corre de forma ordeira ao longo de caminhos de maior progresso e bem-estar. Antes de tudo e na origem de qualquer paz individual ou social está a convicção de que todos somos aceitos por Deus, apesar dos nossos erros e contradições, de que todos podemos viver reconciliados e em amizade com ele. Isto é o primordial e decisivo: «Estamos em paz com Deus» (Romanos 5,1).
Essa paz não é só a ausência de conflitos, mas uma vida mais plena, que nasce da total confiança em Deus e afeta o próprio centro da pessoa. Essa paz não depende apenas de circunstâncias externas. É uma paz que brota do coração e conquista gradualmente a toda a pessoa, e dela se estende aos outros.
Essa paz é um presente de Deus, mas também fruto de um trabalho não pequeno que pode prolongar-se durante toda uma vida. Receber a paz de Deus, guardá-la fielmente no coração, mantê-la no meio dos conflitos e difundi-la aos outros exige o esforço apaixonado. Não fácil, de unificar e enraizar a vida em Deus.
Essa paz não é uma compensação psicológica pela falta de paz na sociedade; não é uma evasão pragmática que nos afasta dos problemas e conflitos. Não se trata de um refúgio confortável para pessoas decepcionadas ou céticas ante uma paz social quase impossível. Se é a verdadeira paz de Deus, converte-se no melhor estímulo para viver trabalhando por uma convivência pacífica feita entre todos e para o bem de todos.
Jesus pede aos Seus discípulos que, ao anunciar o reino de Deus, a sua primeira mensagem seja oferecer paz a todos«Dizei primeiro: paz a esta casa». Se a paz for aceita, irá estender-se pelas aldeias da Galileia. Caso contrário, ele voltará de novo para eles, mas nunca há de ficar destruída no seu coração, pois a paz é um presente de Deus.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 3 de julho de 2019

ANO C | TEMPO COMUM | DÉCIMO-QUARTO DOMINGO | 07.07.2019


Toda a Igreja é chamada e enviada a anunciar a Boa Notícia!
Depois de relatar o envio dos Doze Apóstolos (9,1-6), Lucas nos apresenta Jesus enviando um novo grupo de discípulos. Parece que os primeiros enviados não corresponderam ao que Jesus esperava: anunciaram um Evangelho filtrado pela ideologia nacionalista, foram refutados pelos samaritanos e tentados a demonstrar poder e recorrer à vingança. Como não conseguiam entender o que significa seguir Jesus (“ir atrás”), também não tinham condições de ser apóstolos (“ir à frente”). Será que com os 72 discípulos vai ser diferente?
Percebendo que as necessidades das multidões urgem como uma colheita prestes a se perder, Jesus observa preocupado a carência de evangelizadores e envia um amplo grupo. O novo grupo é seis vezes maior que o grupo dos Doze, e se lhes pede que busquem mais colaboradores. A cifra 72 corresponde ao número de nações conhecidas na época, o que significa que o horizonte da missão de Jesus e seus discípulos é o mundo inteiro. É bem provável que a maioria das pessoas desse novo grupo provenha do ambiente samaritano, menosprezado pelos judeus ortodoxos, e que muitas sejam mulheres.
Jesus pede que os enviados não se comportem como príncipes em meio a plebeus, como chefes que se sobrepõem a súditos. Sublinha que os enviados devem portar-se como cordeiros dóceis e confiantes em meio a lobos ameaçadores. Mesmo que devam atuar num ambiente hostil, Jesus não imagina que possam partir armados para se defender, e muito menos para atacar. Quem entra na “marcha por Jesus”, ou com Jesus, não pode jamais cotejar a violência e imitar gestos de ataque ou execução, como o fez recentemente o mandatário que diz ter Deus no coração, ovacionado por uma multidão que se diz seguidora de Jesus!
Jesus assegura aos seus discípulos missionários que nada nos fará mal, que pisaremos incólumes cobras, escorpiões e forças contrárias. Mas não diz que pisaremos sobre as pessoas que nos ameaçarem! Podemos sim protestar, sacudindo a poeira que herdamos das estradas percorridas, mas não mais que isso, e sem deixar de anunciar a Boa Notícia de Jesus aos que se nos opõem. E este Evangelho não é “bandido bom é bandido morto”, nem a “segurança e o respeito às pessoas de bem ou humanos direitos” e a lei e as grades para os “humanos tortos” ou “bandidos”, assim qualificados pela nossa cartilha de iniciação à hipocrisia.
E Jesus deixa isso muito claro quando ensina o que deve brotar dos lábios dos seus discípulos missionários: “A paz esteja nesta casa! O Reino de Deus está próximo de vocês!” E isso também na casa dos pagãos e nas cidades e situações em que não formos bem aceitos. Somos enviados para pedir hospedagem na vida e na casa das pessoas e povos. Chegamos pedindo licença, não portando-nos como patrões e “donos do pedaço”. Jesus pede que não levemos sandálias, bolsas e sacolas, nem cartilhas morais que condenam e excluem, nem togas que usam os juízes que, além de instruir indevidamente a investigação, julgam e condenam.
A evangelização não é, em primeiro lugar, o ensino de uma doutrina sobre Deus ou a apresentação de um código de conduta moral, mas o anúncio de uma verdade alvissareira para todos os seres humanos, especialmente para os que são tratados como últimos: Deus está próximo de todos, conhece os sofrimentos naturais ou impostos pelas estruturas injustas e nos guia e fortalece nas tentativas de tornar a vida mais humana; para Ele, os últimos são os primeiros, os marginalizados são os preferidos, os condenados são os perdoados, os amaldiçoados e vitimados pelos vencedores são os mais amados.
Para que possa merecer crédito, nosso anúncio deve ser acompanhado de ações que o confirmem: cura dos doentes, defesa dos injustiçados. A Igreja não pode entrar na lógica do poder e depositar sua confiança apenas nas elites ou grupos privilegiados, ceder à tentação de medir seu valor pelos sucessos institucionais ou pela erudição da sua doutrina. Paulo fala em gloriar-se apenas na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, e este é um critério diferente: a compaixão que leva à identificação com o outro e à defesa de sua dignidade. O que conta não é a rotulação que classifica e exclui, mas a nova criação, radicalmente igual e fraterna.
Jesus de Nazaré, missionário do Pai! Tu nos convocas a participar da tua missão, por isso, te pedimos: Faze com que toda a Igreja tenha as marcas do teu corpo: a abertura radical ao Pai e aos irmãos e irmãs; a humanidade que se solidariza e acolhe; a paixão e a compaixão; a preferência pelos últimos. Ajuda-nos a confiar na tua misericórdia, a defenestrar toda atitude violenta, a agir para que a paz social corra entre nós como um rio, convertendo a sociedade e a Igreja em mãe que acaricia, consola, amamenta e carrega as pessoas, especialmente as estropiadas e extraviadas, como filhas amadas. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Profecia de Isaías 66,10-14 | Salmo 65 (66) 
Carta de Paulo aos Gálatas 6,14-18| Evangelho de São Lucas 10,1-20