quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Festa da Sagrada Familia

As lições de Nazaré
Alocução de Paulo VI em Nazaré (05.01.1964)
Nazaré é a escola onde se começa a compreender a vida de Jesus: a escola do Evangelho. Aqui se aprende a olhar, a escutar, a meditar e penetrar o significado, tão profundo e tão misterioso, dessa manifestação tão simples, tão humilde e tão bela, do Filho de Deus. Talvez se aprenda até, insensivelmente, a imitá-lo.
Aqui se aprende o método que nos permitirá compreender quem é o Cristo. Aqui se descobre a necessidade de observar o quadro de sua permanência entre nós: os lugares, os tempos, os costumes, a linguagem, as práticas religiosas, tudo de que Jesus se serviu para revelar-se ao mundo. Aqui tudo fala, tudo tem um sentido. Aqui, nesta escola, compreende-se a necessidade de uma disciplina espiritual para quem quer seguir o ensinamento do Evangelho e ser discípulo do Cristo.
Ó como gostaríamos de voltar à infância e seguir essa humilde e sublime escola de Nazaré! Como gostaríamos, junto a Maria, de recomeçar a adquirir a verdadeira ciência e a elevada sabedoria das verdades divinas.
Mas estamos apenas de passagem. Temos de abandonar este desejo de continuar aqui o estudo, nunca terminado, do conhecimento do Evangelho. Não partiremos, porém, antes de colher às pressas e quase furtivamente algumas breves lições de Nazaré.
Primeiro, uma lição de silêncio. Que renasça em nós a estima pelo silêncio, essa admirável e indispensável condição do espírito; em nós, assediados por tantos clamores, ruídos e gritos em nossa vida moderna barulhenta e hipersensibilizada. O silêncio de Nazaré ensina-nos o recolhimento, a interioridade, a disposição para escutar as boas inspirações e as palavras dos verdadeiros mestres. Ensina-nos a necessidade e o valor das preparações, do estudo, da meditação, da vida pessoal e interior, da oração que só Deus vê no segredo.
Uma lição de vida familiar. Que Nazaré nos ensine o que é a família, sua comunhão de amor, sua beleza simples e austera, seu caráter sagrado e inviolável; aprendamos de Nazaré o quanto a formação que recebemos é doce e insubstituível: aprendamos qual é sua função primária no plano social.
Uma lição de trabalho. Ó Nazaré, ó casa do “filho do carpinteiro”! É aqui que gostaríamos de compreender e celebrar a lei, severa e redentora, do trabalho humano; aqui, restabelecer a consciência da nobreza do trabalho; aqui, lembrar que o trabalho não pode ser um fim em si mesmo, mas que sua liberdade e nobreza resultam, mais que de seu valor econômico, dos valores que constituem o seu fim.
Finalmente, como gostaríamos de saudar aqui todos os trabalhadores do mundo inteiro e mostrar-lhes seu grande modelo, seu divino irmão, o profeta de todas as causas justas, o Cristo nosso Senhor.

ANO B – SOLENIDADE DE SANTA MARIA, MÃE DE DEUS – 01.01.2018

Quem semeia o medo contra os migrantes, não constrói a Paz!
Na celebração cristã do Novo Ano se entrelaçam três questões: o começo de um novo ano civil, a maternidade de Maria e a Jornada Mundial pela Paz. Mesmo atordoados pelos fogos e champanhes da noite de ontem, não esqueçamos que um ano novo, marcado pela Paz, não costuma chegar da noite para o dia. As novidades promissoras e duradouras são gestadas sempre muito pacientemente no ventre profundo da história e das pessoas de boa vontade, daquelas que acolhem os dons e convites que vêm dos desertos, das periferias e das fronteiras; são dons que desestabilizam e põem a caminho.
Paulo recorda aos cristãos de Gálatas e de todos os tempos que Deus nos enviou seu Filho quando o tempo se cumpriu e chegou à maturidade. Nascendo de Maria, o Filho de Deus desceu e se igualou às criaturas marcadas pelas limitações. Mas também nos resgatou do domínio escravizador das leis e instituições e nos deu a adoção filial e a liberdade. Desde então, vivemos na liberdade dos filhos e filhas, e o Espírito derramado em nossos corações nos pacificou e nos deu a possibilidade de clamar a Deus como os filhos se dirigem ao pai e à mãe. Não somos mais escravos, mas filhos e herdeiros!
Acolhido por nós e no meio de nós, Jesus de Nazaré pacifica o mundo estabelecendo relações novas, baseadas na justiça e na fraternidade. E ele cumpre a promessa de Deus e a esperança humana através de cada um de nós, dos homens e mulheres de boa vontade, dos líderes autênticos e das organizações que não se resignam à paz aparente, à paz baseada no equilíbrio de forças ou no terrorismo estatal. “Deus te abençoe e te guarde! Deus mostre seu rosto brilhante e tenha piedade de ti! Deus mostre seu rosto e te dê a paz!” Falando assim, seremos princípios e príncipes da Paz.
Hoje contemplamos a chegada dos pastores à gruta Belém. Eles encontram Jesus no seio de uma família pobre e migrante. Ficam vivamente impressionados com o que veem, e comparam com tudo aquilo que tinham ouvido. E compreendem o mistério de um Deus a quem não apraz a força dos cavalos ou dos tanques, dos cortejos de acólitos, das doutrinas e dos códigos de direito... Deus se alegra com o despojamento solidário de quem se faz próximo e peregrino com os deslocados e sem-lugar e, por isso, como os pastores, volta louvando e glorificando a Deus por tudo o que vê e ouve.
Jesus é nossa Paz! Perdoados e pacificados por ele, tornamo-nos agentes do perdão e operadores da paz. Na sua mensagem para o dia de hoje, o Papa Francisco nos diz que “a paz, que os anjos anunciam aos pastores na noite de Natal, é uma aspiração profunda de todas as pessoas e de todos os povos, sobretudo de quantos padecem mais duramente pela sua falta”, entre eles os mais de 250 milhões de migrantes no mundo, dos quais 22 milhões são refugiados. O Papa pede que abracemos, com misericórdia, “todos aqueles que fogem da guerra e da fome ou se veem constrangidos a deixar a própria terra por causa de discriminações, perseguições, pobreza e degradação ambiental.”
As pessoas não migram por prazer ou sem motivos, mas para fugir dos diversos tipos de violência, e muito especialmente pelo “desejo de uma vida melhor, unido muitas vezes ao intento de deixar para trás o desespero de um futuro impossível de construir”, diz o Papa. “As pessoas partem para se juntar à própria família, para encontrar oportunidades de trabalho ou de instrução: quem não pode gozar destes direitos, não vive em paz”. Mas, segundo o Papa Francisco, “é trágico o aumento de migrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental”.
Diante desse fenômeno global, “não basta abrir os nossos corações ao sofrimento dos outros”, pois “há muito que fazer antes de os nossos irmãos e irmãs poderem voltar a viver em paz numa casa segura. Acolher o outro requer um compromisso concreto, uma atenção vigilante e abrangente, uma gestão responsável de novas situações complexas que às vezes se vêm juntar a outros problemas já existentes, bem como recursos que são sempre limitados.” Por isso, é preciso acolher, proteger, promover a integração através de medidas práticas e projetos consistentes. Não à globalização da indiferença!
Deus querido, Pai e Mãe! Iniciando este ano que desejamos que seja Novo, te pedimos: faz que sejamos construtores de Paz. Ensina-nos a contemplar e compreender o anseio de Paz e de comunhão que pulsa no coração do mundo e move a imensa caravana de migrantes que vaga sem rumo. Não permitas que olhemos para eles com indiferença ou como se fossem uma ameaça ao nosso bem-estar. Suscita em nós o canto que brota da nossa indestrutível dignidade de filhos e filhas, e dá-nos experimentar, como a Maria e aos pastores, a alegria de reconhecer tua grandeza na pequenez e na fragilidade humana. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro dos Numeros 6,22-27 * Salmo 66 (67) * Carta aos Galatas 4,4-7* Evangelho de S. Lucas 2,26-21)

Evangelho para um Hoje novo - 01.01.2018

HOJE!

Lucas conclui o seu relato do nascimento de Jesus indicando aos leitores que «Maria guardava todas estas cosas e as meditava no seu coração». Não conserva o que aconteceu como uma recordação do passado, mas como uma experiência que atualizará e reviverá ao longo da sua vida.
Não é uma observação gratuita. Maria é modelo de fé. Segundo este evangelista, acreditar em Jesus Salvador não é recordar acontecimento de outros tempos, mas experimentar hoje a Sua força salvadora, capaz de fazer mais humana a nossa vida.
Por isso Lucas utiliza um recurso literário muito original. Jesus não pertence ao passado. Intencionalmente vai repetindo que a salvação de Jesus ressuscitado é-nos oferecida hoje, agora mesmo, sempre que nos encontramos com Ele. Vejamos alguns exemplos.
Assim nos é anunciado o nascimento de Jesus: «Nasceu hoje, na cidade de David, o Salvador». Hoje Jesus pode nascer para nós. Hoje pode entrar na nossa vida e altera-la para sempre. Agora mesmo podemos nascer com Ele para uma existência nova.
Numa aldeia da Galileia trazem até junto de Jesus um paralítico. Jesus comove-se ao vê-lo bloqueado pelo seu pecado e cura-o oferecendo-lhe o perdão: «Os teus pecados ficam perdoados». As pessoas reagem louvando Deus: «Hoje vimos coisas admiráveis». Também nós podemos experimentar hoje o perdão, a paz de Deus e a alegria interior se nos deixamos curar por Jesus.
Na cidade de Jericó, Jesus aloja-se em casa de Zaqueu, rico e poderoso cobrador de impostos. O encontro com Jesus transforma-o: devolverá o que roubou a tanta gente e partilhará os seus bens com os pobres. Jesus diz-lhe: «Hoje chegou a salvação a esta casa». Se deixamos entrar Jesus na nossa vida, hoje mesmo podemos começar uma vida mais digna, fraterna e solidária.
Jesus está a agonizar na cruz no meio dos malfeitores. Um deles entrega-se a Jesus: «Recorda-te de mim quando estiveres no Teu reino». Jesus reage imediatamente: «Hoje estarás comigo no paraíso». Também no dia da nossa morte será um dia de salvação. Por fim escutaremos de Jesus essas palavras tão esperadas: «Descansa, confia em mim, hoje estarás comigo para sempre».
Hoje começamos um ano novo. Mas que pode ser para nós algo realmente novo e bom? Quem fará nascer em nós uma alegria nova? Que psicólogo nos ensinará a sermos mais humanos? De pouco servem os bons desejos. O decisivo é estar mais atentos ao bom que Jesus desperta em nós. A salvação é-nos oferecida cada dia. Não há que esperar por nada. Hoje mesmo pode ser para mim um dia de salvação.
José Antonio Pagola

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

ANO B – FESTA DA FAMILIA DE JESUS – 31.12.2017

Na Sagrada Família se revela o dom de Deus à humanidade.
No dia em que festejamos a família de Jesus não podemos ceder à piedosa tentação de imaginar uma família idealizada e espiritualizada, alheia à nossa realidade histórica e material. Do ponto de vista sociológico, a Sagrada Família é uma família judia absolutamente normal, tão normal que sequer despertou a atenção dos vizinhos e da sinagoga, a não ser depois do evento pascal de Jesus. Essa família viveu os valores e práticas de uma família crente, frequentando a sinagoga, meditando a Palavra dos profetas, peregrinando ao Templo, celebrando a liturgia doméstica, esperando a vinda do Messias.
É isso que vemos no evangelho de hoje. Maria e José cumprem a lei que pede que, depois do parto, as mulheres vão ao templo para se purificar. E apresentam Jesus ao Templo e ao povo. A Sagrada Família percorre o caminho que leva da marginalidade de Belém ao centro de Jerusalém, e nada de especial se percebe enquanto cumpre as leis prescritas pela sua tradição religiosa. O momento alto e revelador está centrado no encontro com Simeão e Ana, idosos, piedosos e profetas. E aqui tudo chama a atenção para o significado do filho que Maria e José carregam nos braços.
Simeão toma nos braços aquela criatura vulnerável e, com seu olhar transparente e penetrante, é capaz de discernir a presença libertadora de Deus na fragilidade de uma criança. E trata-se de uma salvação que desborda as fronteiras étnicas e religiosas de Israel. “Meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos, luz para iluminar as nações e glória do teu povo, Israel”. Ana também “falava do menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém”. Daqui brota o imperativo missionário de trabalhar para que todos os seres humanos sintam-se e atuem efetivamente como irmãos na única família do Pai.
Em Jerusalém, Maria e José experimentam um certo brilho e uma grande satisfação subjetiva. “Estavam maravilhados com o que diziam do menino”. Poucas coisas estavam claras, mas neles cresce a percepção de que o filho que lhes foi confiado é especial para todos os povos. Este entusiasmo, porém, logo é temperado pelas palavras misteriosas que Simeão dirige a Maria: “Eis que esse menino será causa de queda e elevação de muitos em Israel. Ele será um sinal de contradição. Quanto a você, uma espada há de atravessar-lhe a alma. Assim serão revelados os pensamentos de muitos corações.”
Unidos pelos laços de um amor profundamente humano e dentro do horizonte das tradições do seu povo, José e Maria avançam no escuro da fé. Como Abraão, se lançam na estrada da fé sem saber onde chegarão. Ousaram acreditar, e isso lhes foi creditado como justiça. Tiveram que se abrir sempre mais à novidade que Deus manifestava através do filho que lhes fora confiado. E os evangelhos fazem questão de sublinhar que Nazaré é o lugar onde Jesus cresce, se fortalece e adquire sabedoria. José e Maria educam o filho longe do ambiente glorioso e sedutor do templo...
Para a Sagrada Família, morar em Nazaré significou assimilar a esperança cultivada pelo “resto de Israel”, pelo “broto das raízes de Jessé”. Significou também: não se afastar das raízes populares, do vínculo com os pobres; assumir resolutamente o caminho que leva à periferia, àqueles que estão longe; e privilegiar a encarnação no cotidiano que tece a vida normal de todas as pessoas. Jesus afunda raízes e absorve a seiva das esperanças do seu povo a partir da periferia social e religiosa. Eis aqui uma perspectiva que os missionários jamais devem abandonar!
A convicção de Paulo e da comunidade cristã é que o amor é o vínculo da perfeição da vida cristã, e também da família. É no amor que as esposas podem ser solícitas aos seus respectivos maridos, e estes deixam de ser grosseiros com elas. É o amor que abre possibilidades para que a obediência dos filhos aos pais não atente contra a liberdade e a dignidade de ninguém, e que os pais jamais intimidem os filhos, mas os animem a caminhar rumo à maturidade solidária. É assim que nos revestimos de sincera misericórdia, bondade, humildade e mansidão, e tornamo-nos suportes uns para os outros.
Sagrada Família de Nazaré, nós te acolhemos como ambiente e proposta de encarnação e de crescimento, como manifestação do dom de Deus e resposta humana e generosa a este dom, como busca comum da vontade de Deus, como ambiente de hospitalidade e amor recíproco e de construção incansável da única família do Pai. Ajuda e inspira nossas famílias a serem pequenas tendas da tua Palavra viva, escolas da comunhão e solidariedade que ultrapassam os laços de sangue e de fé, espaços de perdão e reconciliação, ensaios fugazes mas verdadeiros do Reino de Deus, no qual espelhaste tua vida. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro do Eclesiástico 3,3-7.14-17 * Salmo 127 (128) * Carta de Paulo aos Colossenses 3,12-21 * Evangelho  de São Lucas 2,22-40)

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

O Evangelho dominical - 31.12.2017

LARES CRISTÃOS

Hoje fala-se muito da crise da instituição familiar. Certamente, a crise é grave. No entanto, apesar de estarmos sendo testemunhas de uma verdadeira revolução na conduta familiar, e muitos terem previsto a morte de diversas formas tradicionais de família, ninguém anuncia hoje seriamente o desaparecimento da família.
Pelo contrário, a história parece ensinar-nos que nos tempos difíceis se estreitam mais os vínculos familiares. A abundância separa os homens. A crise e a penúria une-os. Ante o pressentimento de que vamos viver tempos difíceis, são bastantes os que pressagiam um novo renascer da família.
Com frequência, o desejo sincero de muitos cristãos de imitar a Família de Nazaré favoreceu o ideal de uma família cimentada na harmonia e felicidade do próprio lar. Sem dúvida é necessário também hoje promover a autoridade e responsabilidade dos pais, a obediência dos filhos, o diálogo e a solidariedade familiar. Sem estes valores a família fracassará.
Mas não é qualquer família que responde às exigências do reino de Deus colocadas por Jesus. Há famílias abertas ao serviço da sociedade e famílias egoístas, fechadas sobre si mesmas. Famílias autoritárias e famílias onde se aprende a dialogar. Famílias que educam no egoísmo e famílias que ensinam solidariedade.
Concretamente, no contexto da grave crise econômica que estamos a padecer, a família pode ser uma escola de insolidariedade em que o egoísmo familiar se converte em critério de atuação que configurará o comportamento social dos filhos. E pode ser, pelo contrário, um lugar no qual o filho pode recordar que temos um Pai comum, e que o mundo não acaba nas paredes da própria casa.
Por isso não podemos celebrar a festa da Família de Nazaré sem escutar o desafio da nossa fé. Serão os nossos lares um lugar onde as novas gerações poderão escutar o chamado do Evangelho à fraternidade universal, à defesa dos abandonados e à busca de uma sociedade mais justa, ou se converterão na escola mais eficaz de indiferença, inibição e passividade egoísta ante os problemas dos outros?
José Antonio Pagola

Tradução de Antonio Manuel Álvarez Perez

51a. Jornada Mundial pela Paz - 01.01.2018

Migrantes e refugiados: homens e mulheres em busca de paz
Mensagem do Papa Francisco para o 51° Dia Mundial da Paz (01.01.18)

1. Votos de paz
Paz a todas as pessoas e a todas as nações da terra! A paz, que os anjos anunciam aos pastores na noite de Natal, é uma aspiração profunda de todas as pessoas e de todos os povos, sobretudo de quantos padecem mais duramente pela sua falta. Dentre estes, que trago presente nos meus pensamentos e na minha oração, quero recordar de novo os mais de 250 milhões de migrantes no mundo, dos quais 22 milhões e meio são refugiados. Estes últimos, como afirmou o meu amado predecessor Bento XVI, «são homens e mulheres, crianças, jovens e idosos que procuram um lugar onde viver em paz». E, para o encontrar, muitos deles estão prontos a arriscar a vida numa viagem que se revela, em grande parte dos casos, longa e perigosa, a sujeitar-se a fadigas e sofrimentos, a enfrentar arames farpados e muros erguidos para os manter longe da meta. Com espírito de misericórdia, abraçamos todos aqueles que fogem da guerra e da fome ou se veem constrangidos a deixar a própria terra por causa de discriminações, perseguições, pobreza e degradação ambiental.
Estamos cientes de que não basta abrir os nossos corações ao sofrimento dos outros. Há muito que fazer antes de os nossos irmãos e irmãs poderem voltar a viver em paz numa casa segura. Acolher o outro requer um compromisso concreto, uma corrente de apoios e beneficência, uma atenção vigilante e abrangente, a gestão responsável de novas situações complexas que às vezes se vêm juntar a outros problemas já existentes em grande número, bem como recursos que são sempre limitados. Praticando a virtude da prudência, os governantes saberão acolher, promover, proteger e integrar, estabelecendo medidas práticas, «nos limites consentidos pelo bem da própria comunidade retamente entendido, para lhes favorecer a integração». Os governantes têm uma responsabilidade precisa para com as próprias comunidades, devendo assegurar os seus justos direitos e desenvolvimento harmónico, para não serem como o construtor insensato que fez mal os cálculos e não conseguiu completar a torre que começara a construir.

2. Porque há tantos refugiados e migrantes?
Na mensagem para idêntica ocorrência no Grande Jubileu pelos 2000 anos do anúncio de paz dos anjos em Belém, São João Paulo II incluiu o número crescente de refugiados entre os efeitos de «uma sequência infinda e horrenda de guerras, conflitos, genocídios, “limpezas étnicas”» que caracterizaram o século XX. E até agora, infelizmente, o novo século não registou uma verdadeira virada: os conflitos armados e as outras formas de violência organizada continuam a provocar deslocações de populações no interior das fronteiras nacionais e para além delas.
Todavia as pessoas migram também por outras razões, sendo a primeira delas «o desejo de uma vida melhor, unido muitas vezes ao intento de deixar para trás o “desespero” de um futuro impossível de construir». As pessoas partem para se juntar à própria família, para encontrar oportunidades de trabalho ou de instrução: quem não pode gozar destes direitos, não vive em paz. Além disso, é trágico o aumento de migrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental.
A maioria migra seguindo um percurso legal, mas há quem tome outros caminhos, sobretudo por causa do desespero, quando a pátria não lhes oferece segurança nem oportunidades, e todas as vias legais parecem impraticáveis, bloqueadas ou demasiado lentas.
Em muitos países de destino, generalizou-se largamente uma retórica que enfatiza os riscos para a segurança nacional ou o peso do acolhimento dos recém-chegados, desprezando assim a dignidade humana que se deve reconhecer a todos, enquanto filhos e filhas de Deus. Quem fomenta o medo contra os migrantes, talvez com fins políticos, em vez de construir a paz, semeia violência, discriminação racial e xenofobia, que são fonte de grande preocupação para quantos têm a peito a tutela de todos os seres humanos.
Todos os elementos à disposição da comunidade internacional indicam que as migrações globais continuarão a marcar o nosso futuro. Alguns consideram-nas uma ameaça. Eu, pelo contrário, convido-vos a vê-las com um olhar repleto de confiança, como oportunidade para construir um futuro de paz.

3. Com olhar contemplativo
A sabedoria da fé nutre este olhar, capaz de intuir que todos pertencemos «a uma só família, migrantes e populações locais que os recebem, e todos têm o mesmo direito de usufruir dos bens da terra, cujo destino é universal, como ensina a doutrina social da Igreja. Aqui encontram fundamento a solidariedade e a partilha. Estas palavras propõem-nos a imagem da nova Jerusalém. O livro do profeta Isaías (cap. 60) e, em seguida, o Apocalipse (cap. 21) descrevem-na como uma cidade com as portas sempre abertas, para deixar entrar gente de todas as nações, que a admira e enche de riquezas. A paz é o soberano que a guia, e a justiça o princípio que governa a convivência dentro dela.
Precisamos de lançar, também sobre a cidade onde vivemos, este olhar contemplativo, «isto é, um olhar de fé que descubra Deus que habita nas suas casas, nas suas ruas, nas suas praças, promovendo a solidariedade, a fraternidade, o desejo de bem, de verdade, de justiça», por outras palavras, realizando a promessa da paz. Detendo-se sobre os migrantes e os refugiados, este olhar saberá descobrir que eles não chegam de mãos vazias: trazem uma bagagem feita de coragem, capacidades, energias e aspirações, para além dos tesouros das suas culturas nativas, e deste modo enriquecem a vida das nações que os acolhem. Saberá vislumbrar também a criatividade, a tenacidade e o espírito de sacrifício de inúmeras pessoas, famílias e comunidades que, em todas as partes do mundo, abrem a porta e o coração a migrantes e refugiados, inclusive onde não abundam os recursos.
Este olhar contemplativo saberá, enfim, guiar o discernimento dos responsáveis governamentais, de modo a impelir as políticas de acolhimento até ao máximo dos «limites consentidos pelo bem da própria comunidade retamente entendido», isto é, tomando em consideração as exigências de todos os membros da única família humana e o bem de cada um deles.
Quem estiver animado por este olhar será capaz de reconhecer os rebentos de paz que já estão a despontar e cuidará do seu crescimento. Transformará assim em canteiros de paz as nossas cidades, frequentemente divididas e polarizadas por conflitos que se referem precisamente à presença de migrantes e refugiados.

4. Quatro pedras miliares para a ação
Oferecer a requerentes de asilo, refugiados, migrantes e vítimas de tráfico humano uma possibilidade de encontrar aquela paz que andam à procura, exige uma estratégia que combine quatro ações: acolher, proteger, promover e integrar.
Acolher faz apelo à exigência de ampliar as possibilidades de entrada legal, de não repelir refugiados e migrantes para lugares onde os aguardam perseguições e violências, e de equilibrar a preocupação pela segurança nacional com a tutela dos direitos humanos fundamentais. Recorda-nos a Sagrada Escritura: «Não vos esqueçais da hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjos».
Proteger lembra o dever de reconhecer e tutelar a dignidade inviolável daqueles que fogem dum perigo real em busca de asilo e segurança, de impedir a sua exploração. Penso de modo particular nas mulheres e nas crianças que se encontram em situações onde estão mais expostas aos riscos e aos abusos que chegam até ao ponto de as tornar escravas. Deus não discrimina: «O Senhor protege os que vivem em terra estranha e ampara o órfão e a viúva».
Promover alude ao apoio para o desenvolvimento humano integral de migrantes e refugiados. Dentre os numerosos instrumentos que podem ajudar nesta tarefa, desejo sublinhar a importância de assegurar às crianças e aos jovens o acesso a todos os níveis de instrução: deste modo poderão não só cultivar e fazer frutificar as suas capacidades, mas estarão em melhores condições também para ir ao encontro dos outros, cultivando um espírito de diálogo e não de fechamento ou de conflito. A Bíblia ensina que Deus «ama o estrangeiro e dá-lhe pão e vestuário»; daí a exortação: «Amarás o estrangeiro, porque foste estrangeiro na terra do Egito».
Integrar significa permitir que refugiados e migrantes participem plenamente na vida da sociedade que os acolhe, numa dinâmica de mútuo enriquecimento e fecunda colaboração na promoção do desenvolvimento humano integral das comunidades locais. «Portanto – como escreve São Paulo – já não sois estrangeiros nem imigrantes, mas sois concidadãos dos santos e membros da casa de Deus».

5. Uma proposta para dois Pactos internacionais
Almejo do fundo do coração que seja este espírito a animar o processo que, no decurso de 2018, levará à definição e aprovação por parte das Nações Unidas de dois pactos globais: um para migrações seguras, ordenadas e regulares, outro referido aos refugiados. Enquanto acordos partilhados a nível global, estes pactos representarão um quadro de referência para propostas políticas e medidas práticas. Por isso, é importante que sejam inspirados por sentimentos de compaixão, clarividência e coragem, de modo a aproveitar todas as ocasiões para fazer avançar a construção da paz: só assim o necessário realismo da política internacional não se tornará uma capitulação ao cinismo e à globalização da indiferença.
De fato, o diálogo e a coordenação constituem uma necessidade e um dever próprio da comunidade internacional. Mais além das fronteiras nacionais, é possível também que países menos ricos possam acolher um número maior de refugiados ou acolhê-los melhor, se a cooperação internacional lhes disponibilizar os fundos necessários.
A Secção Migrantes e Refugiados do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral sugeriu 20 pontos de ação como pistas concretas para a implementação dos supramencionados quatro verbos nas políticas públicas e também na conduta e ação das comunidades cristãs. Estas e outras contribuições pretendem expressar o interesse da Igreja Católica pelo processo que levará à adoção dos referidos pactos globais das Nações Unidas. Um tal interesse confirma uma vez mais a solicitude pastoral que nasceu com a Igreja e tem continuado em muitas das suas obras até aos nossos dias.

6. Em prol da nossa casa comum
Inspiram-nos as palavras de São João Paulo II: «Se o “sonho” de um mundo em paz é partilhado por tantas pessoas, se se valoriza o contributo dos migrantes e dos refugiados, a humanidade pode tornar-se sempre mais família de todos e a nossa terra uma real “casa comum”». Ao longo da história, muitos acreditaram neste «sonho» e as suas realizações testemunham que não se trata duma utopia irrealizável.
Entre eles conta-se Santa Francisca Xavier Cabrini, cujo centenário do nascimento para o Céu ocorre em 2017. Hoje, dia 13 de novembro, muitas comunidades eclesiais celebram a sua memória. Esta pequena grande mulher, que consagrou a sua vida ao serviço dos migrantes tornando-se depois a sua Padroeira celeste, ensinou-nos como podemos acolher, proteger, promover e integrar estes nossos irmãos e irmãs. Pela sua intercessão, que o Senhor nos conceda a todos fazer a experiência de que «o fruto da justiça é semeado em paz por aqueles que praticam a paz».
Vaticano, 13 de novembro – Memória de Santa Francisca Xavier Cabrini,
Padroeira dos migrantes – de 2017.

Franciscus

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Poema de Natal

Maria tem pressa...
Magnífica e Apressada - um poema rápido de natal
Maria tem pressa: aceitou ser mãe num tempo de império e cruzes. Jovem, grávida e solteira ela aperta o pano em volta dos ombros e pensa: “Deus está comigo, não vou ter medo”.
Maria tem pressa: a insegurança de José - um seguro pai possível - pede agilidade e ela vai ao encontro da prima Isabel. Apressadamente. Ela precisa de parceria, cumplicidade e alegria, o que só uma outra mulher, nesses casos, sabe ser. “Bem-aventuradas”.
Maria tem pressa: tece canções de ninar o filho com palavras que rimam com derrubar, dispersar e destronar; ela cantarola o sonho apressado dos humildes, dos pobres e famintos. Deus nunca mais foi o mesmo.
Maria tem pressa: completa os dias de gestação no tempo em que os poderosos instauram leis de morte, controle e exploração. Empurrados pelo censo ela viaja com José até Belém para cumprir as fantasias teológicas e literárias de messias esperados, mas ela sabe que o filho dela é Galileu. É pobre, preto e periférico: menino Jesus, o salvador.
Maria tem pressa: encontrar um lugar de parir menino: uma grota, um buraco, uma marquise, um banheiro, um curral, uma gruta... qualquer lugar onde Deus faz questão de nascer pobre. Ela sente as contrações que se avizinham; ela abre as pernas pra parir o novo... e viu que tudo era bom. Houve choro e placenta na primeira noite.
Maria tem pressa: precisa fugir, migrar, escapar da fúria dos exércitos de ocupação. Ela segura o menino como quem conhece a esperança e se lança nas estradas impossíveis de desertos e checkpoints. Ela amamenta o menino com apressadas tetas natalinas. Ela serve a ceia do natal nela mesma: o filho é a fome e a vontade comer, ela é o peito, o prato e a profecia de sobreviver.
O verbo se fez peito e migrou até nós.
Maria tem pressa: criar menino no tempo de império e cruz é sentir a dor de toda mãe de criança pobre; ela sabe que a cruz estará sempre lá, esperando pelo filho numa esquina qualquer, de uma UPP qualquer; ela não tem medo! vai apressar o menino, acreditar no milagre – “começa a festa!” – até transformar toda dor em ressurreição: “nossos mortos tem voz”, ela diz com sangue nos olhos. Mil outros filhos e filhas nascerão ali.
Mães de Maio Maria, rogai por nós nesse advento agora e na hora da longa noite apressada. Amém.

Nancy Cardoso

domingo, 24 de dezembro de 2017

Kalendas

Anúncio do Natal

Milhões e milhões de anos depois que Deus, no princípio,
criou o céu e a terra e fizera o homem e a mulher à sua imagem;
Muitos séculos depois de ter cessado o dilúvio, quando o Altíssimo fez resplandecer no céu o arco-íris, sinal de aliança e de paz;
Dois mil anos depois do nascimento de Abraão, nosso pai,
Mil e trezentos anos depois que o povo de Israel, sob a guia de Moisés, saíra do Egito;
Cerca de mil anos depois da unção de Davi como rei, enquanto, no México, os ameríndios construíam a cidade dos deuses;
Novecentos e cinquenta quatro anos desde a dedicação do templo de Jerusalém por Salomão;
Seiscentos anos depois que o Espírito de Deus revelava o brilho de seu esplendor na China a Lao-Tsé, na Índia, a Buda, o Iluminado, e, no ocidente, inspirava a sabedoria grega;
Quinhentos e trinta e oito anos desde a volta de Israel do cativeiro da Babilônia;
Na sexagésima quinta semana, segundo a profecia de Daniel;
Na Olimpíada cento e noventa e quatro, no ano setecentos e cinquenta e dois da fundação de Roma;
Aos quarenta e dois anos do Império de Otávio Augusto, estando toda a terra em paz, na sexta idade do mundo, Jesus Cristo, Deus Eterno, Filho do Eterno Pai, querendo consagrar o mundo com sua santíssima vinda, tendo sido concebido do Espírito Santo, decorridos nove meses após a sua concepção, em Belém de Judá, nasceu da Virgem Maria feito homem.
Eis o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, segundo a carne!

Venham, adoremos o Salvador! 

ANO B – ORAÇÃO DIANTE DO PRESÉPIO – 24.12.2017

A pobreza de Deus enriquece e liberta a humanidade!
A correria chegou ao fim, e eu me sinto exausto. Mas também posso dizer que estou satisfeito. Minha preparação para esse momento foi iluminada pela tua santa Palavra, na qual também me alimentei diariamente. É claro que em alguns dias faltou-me o apetite, e me aproximei da mesa mais por hábito que por desejo. Reconheço também que, em vários momentos, o foco da minha atenção não foste tu, tua visita e teu projeto. Tu sabes, são tantas as obrigações e reponsabilidades que pesam sobre nós...
Mas há outras coisas que me distraíram e preocuparam. Este ano não foi dos melhores para o povo que tu amas. Nosso Presidente, com a colaboração dos sócios que o impuseram, saqueou descaradamente a nação, sob o olhar impassível e a inércia criminosa da justiça. Ele acendeu velas reverentes à voracidade do mercado, se submeteu à violenta vontade do capital, impôs limites drásticos à satisfação das necessidades essenciais do povo e caçou direitos conquistados com sangue e suor. E agora tenta embebedar a nação com propagandas que veiculam meias-verdades e coloridas mentiras.
Marcado por tudo isso, reúno-me com teu povo para te contemplar e acolher. Ao meu redor, além desses que aqui vieram para te escutar e acolher, há gente que já dorme sossegadamente, mas a maioria festeja tresloucadamente, comendo e bebendo. No entanto, eu, no calor sufocante dessa noite, aqui venho para vigiar com meus irmãos e irmãs, para meditar sossegadamente sobre o mistério dessa noite, sobre aquilo que aconteceu em Belém... E repito, como um mantra que brota do ventre da terra: “Vem, Jesus, estamos te esperando! Vem, Jesus, o mundo precisa de ti!” Não nos bastam as compras e as festas...
Começo fixando a atenção nos teus queridos pais. Sentindo que a hora esperada se aproxima, rejeitados pelos habitantes da cidade, Maria e José procuraram abrigo numa estrebaria. Não havia lugar para eles e para ti na cidade, ocupada com tanta coisa desimportante. Mas eles prepararam o melhor lugar que puderam para ti. Também eu sou uma pobre criatura, e não tenho senão uma miserável manjedoura, onde depositei uns poucos feixes de palha. Mas, como Maria e José, te ofereço tudo o que tenho e o que sou, Menino querido, Deus amável! Sou pobre de virtudes, mas o que mais poderias esperar de mim? É tudo o que tenho! Aceita minha humilde barraca, não te assustes com minha pobreza...
Confesso que tua pobreza me toca profundamente e me enternece. Estou comovido, e as lágrimas insistem em brotar silenciosamente dos meus olhos. Queria te abraçar, te dar proteção, te oferecer tanta coisa, mas não tenho nada de melhor e mais importante que isso que estou te oferecendo. Por isso, Jesus, embeleza e enriquece a minha vida com a tua presença. Adorna minha caminhada com a tua graça. Queima essas palhas secas e transforma elas em macio berço para o teu santíssimo corpo, tu que, desde sempre, sonhaste e desejaste fazer-te um de nós.
Causa-me tristeza saber que, não apenas naquele tempo, pessoas indiferentes ou perversas te rejeitam e perseguem. Outros, de forma mais sutil, te substituem por um personagem que não tem nada a ver contigo. Inventaram um personagem que habita nas vitrines e se movimenta nos centros comerciais, que promove vendas e vende ilusões, como se presentes fossem presenças e como se as relações comerciais fossem mais valiosas que as relações humanas. E tem ainda aqueles que, usando teu nome, arrancam dos teus amados o pouco que lhes resta, a fé no teu Evangelho.
Em meio a tudo isso que vem acontecendo à margem da tua visita, e até em nome dela, ouso pedir-te em prece: alegra-te, Jesus Menino, com meu desejo de te acolher com carinho, de te amar, de me sacrificar por ti e por aqueles que amas. Tua pobreza nos enriquece, e nossa pobreza te enternece. Conheces todas as nossas carências, mas és o fogo da caridade, e saberás purificar nosso coração de tudo o que não for do teu agrado e não for útil aos nossos irmãos e irmãs. Tu és santo e amável, e nos fecundarás com tua graça para que possamos fazer parte da tua família, compartilhar teu sonho e cooperar na tua obra.
Vem, Jesus, ocupa teu lugar em nossa vida, reconquista o senhorio nas tuas Igrejas, anima os empobrecidos com teu Evangelho, fustiga os opressores com tua profecia. Acorda-nos com tua santa inquietação, mobiliza-nos com tua incansável compaixão. Ajuda-nos a lançar na fogueira acesa nessa noite tudo o que induz à violência, à indiferença, ao amor próprio, à irresponsabilidade, à conivência com podres poderes. Que aqui, ao redor dessa mesa que transformaste em berço e sob esse céu que transformaste em casa, renasça e se fortaleça a imensa caravana dos homens e mulheres de boa vontade, dessa gente disposta a sonhar e construir contigo a Humanidade Nova.
Itacir Brassiani msf

ANO B – FESTA DO NASCIMENTO DE JESUS CRISTO – 25.12.2017

Em Jesus, Deus diz sua Palavra e a Vida brilha e faz a festa!
A festa da noite de ontem se prolongou madrugada adentro, e na manhã de hoje tudo está mais silencioso. Aproveitemos, pois, para compreender o sentido do Natal colocando entre parênteses os apelos e ofertas do mercado, e pedindo ajuda aos primeiros cristãos. Por trás do hino do Evangelho segundo João e dos primeiros versículos da carta aos Hebreus, sugeridas para a liturgia de hoje, está uma experiência concreta e uma profissão de fé amadurecida numa busca longa e intensa, em meio a conflitos e perseguições. O coração desta Boa Notícia é a manifestação da glória de Deus na vulnerabilidade da carne humana. Benditos e belos são os pés de quem corre anunciando isso!
Tudo parte da gruta de Belém e nela se sustenta. Mas não menos viva é a memória da vida inteira de Jesus, seu anúncio e sua ação polêmica e libertadora, sua condenação e morte na cruz dos proscritos. João tem isso presente quando nos fala da Palavra que estava junto de Deus e que era Deus, que é a Luz que brilha e que vence as trevas, que se faz Carne e vem habitar entre nós, que torna visível o Deus invisível. Na carta aos Hebreus, a comunidade cristã dá seu testemunho de que em Jesus, nascido na pobreza e perseguido pelos poderes políticos e religiosos, Deus nos falou de modo definitivo.
Os conceitos e imagens que aparecem no poema-resumo do evangelho de João são vários e complementares: Palavra, Vida, Graça e Glória. Enquanto Palavra, Jesus, o filho de Maria e de José nascido em Belém, é a exteriorização da interioridade de Deus, e esse mistério não é uma lei, uma advertência ou uma doutrina, mas uma boa notícia que produz felicidade porque gera e sustenta processos de liberdade. A Palavra de Deus assume a carne humana e a vida histórica e corporal de Jesus como lugar na qual os homens e mulheres podem encontrar, tocar e acolher o próprio mistério de Deus.
O mesmo Jesus, filho de Maria e de José, que nasceu em Belém e viveu como carpinteiro em Nazaré, que reuniu discípulos e foi por eles abandonado em Jerusalém, é portador da Vida plena e eterna, do “bem viver” que todos os povos buscam sem descanso. Nele, esse bem viver é revelado e doado como comunhão profunda com o mistério de Deus, comunhão solidária com todas os pobres e as vítimas, e comunhão graciosa com todas as criaturas. Em Jesus de Nazaré, a Vida mostra sua cara e sua força: nele não há lugar para o egocentrismo que amordaça, domina e mata.
Na pessoa e no caminho histórico de Jesus de Nazaré, vislumbramos também a Graça de Deus, graça manifestada e encarnada. Nele fica claro que Deus não é um cobrador de dívidas ou um juiz frio e calculista, mas um irmão e um hóspede no qual se mostram e sacramentalizam de modo inequívoco a gratuidade e o dom. A lei e a cobrança implacáveis vêm das velhas instituições, mas a Graça e a Verdade nós as recebemos por Jesus Cristo. Ele é a gratuidade de Deus em pessoa! Por isso Paulo pode escreves aos Hebreus: “Ele é o esplendor da glória do Pai, a expressão do seu ser.”
Em hebraico, a palavra glória expressa a importância e o valor interior de uma pessoa, e isso se revela nas ações e requer o respeito dos outros. Por isso, manifestar a glória de Deus significa testemunhar sua ação libertadora, prosseguir nos diversos contextos sua ação humanizadora, reconhecer sua santidade nos acontecimentos históricos.  A metáfora da luz e da glória é frequentemente usada para materializar a glória de Deus, como aparece no relato do nascimento de Jesus (cf. Lc 2,9).  E João afirma: “Nós vimos a sua (da Palavra feita carne) glória, glória como do Filho único da parte do Pai”.
A tradição cristã afirma com ousadia que a glória de Deus se manifesta de modo incomparável e insuperável na crucifixão de Jesus, na sua fidelidade radical e amorosa à humanidade oprimida. Sendo a cruz o desfecho de uma inteira vida de amor, podemos dizer que na humanidade de Jesus vemos a glória de Deus. E os discípulos de Jesus são glorificados na medida em que participam do dinamismo do seu amor ou paixão pelo mundo. Eis nosso brilho, nosso peso, nosso valor! Mas tudo isso não pode ser sermão monótono, doutrina abstrata ou ideologia escravizadora...
Diante da tua pequenez gloriosa, Deus Menino, ajoelhamo-nos eternamente agradecidos. É desta tua Glória que todos necessitamos. É este brilho que todos buscamos de forma inconsciente e quase desesperada. É desta Vida que se expande e multiplica que temos fome. Queremos que esta graça nos plenifique e nos torne benfeitores da humanidade. Tu nos ensinas que é armando a tenda dos nossos sonhos e palavras em meio à humanidade peregrina que alcançamos a liberdade e a plena realização. Obrigado por esta lição pronunciada em nossa própria carne. Queremos ser filhos desta luz. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Profeta Isaías 52,7-10 * Salmo 97 (98) * Carta aos Hebreus 1,1-6 * Evangelho de João 1,1-18)

sábado, 23 de dezembro de 2017

ANO B – FESTA DO NASCIMENTO DE JESUS CRISTO – 24.12.2017

Jesus Cristo é a Paz de Deus para todas as criaturas.
Percorremos as quatro semanas vigiando, preparando, desgustando e escutando. O dia chegou e estamos com o coração leve, acolhedor e generoso. Com os olhos limpos e os ouvidos abertos, estamos prontos a reconhecer e acolher a Presença de Deus que se manifesta do seu próprio jeito: na carne humana, nas estrebarias e periferias, no silêncio de um inocente que nos olha nos olhos e desperta em nós o que há de mais nobre: a capacidade de se enternecer e de cuidar; a generosidade de fazer-se dom e presente; o dinamismo que vence o fechamento em nós mesmos e na fugacidade do presente...
O nascimento de Jesus ocorre no mundo dos pobres, à margem dos poderes romanos e judaicos, na periferia daquele mundo que dizia garantir a paz recorrendo ao medo. Os decretos oficiais põem José e Maria outra vez na estrada: garantem a cobrança dos impostos mas não a tiram a Família de Nazaré de sua pobreza. Aquela humilde família percorre um caminho em direção às raizes das esperanças populares e messiânicas: a família e origem do pastor Davi. Em Belém, os proscritos pastores põem sua atenção nesta familia de nela identificam a esperança que os encoraja e alegra.
Para os pastores, naquela estrebaria ignota há mais luz que no brilho de Jerusalém e na sabedoria da Lei. Os anjos, mensageiros de Deus, não estão presos ao Templo, mas junto àqueles que, estando longe de tudo, vigiam os rebanhos, inclusive à noite. E anunciam a boa noticia: o Salvador nasceu na “periferia do mundo”. Indicam o sinal de que isso aconteceu: um bebê deitado numa cocheira para animais, envolto em pobres panos. O sinal da “grande alegria para todo o povo” não são os anjos, nem a luz que os envolve, nem a música melodiosa que ressoa no céu; é a fragilidade de uma criança!
Para aqueles que crêem, o nascimento de Jesus é mais que um acontecimento do passado. Não se resume também a uma revelação que aponta para uma dimensão “sobrenatural” da vida ou para um evento que tem sentido apenas para o coração. Com a ajuda do profeta Isaías, descobrimos que a encarnação do Filho de Deus refulge como luz para quem caminha na escuridão, como a alegria da colheita para os camponeses, como a vitória dos fracos sobre o medo e a violência. O Natal é a passagem da opressão à liberdade, do medo à confiança, da dependência à emancipação.
O romantismo e a beleza da música nos envolve e nos inspira: “Pobrezinho nasceu em Belém. Eis na lapa Jesus, nosso bem. Dá-nos paz, ó Jesus!” Pois é verdade que o natal é a festa da paz. Paz entre as nações. Paz entre as Igrejas. Paz nas comunidades. Paz entre nas famílias. Paz na relação entre os seres humanos e as demais criaturas. Paz entre o céu e a terra. Paz onde há guerra e paz onde falta confiança, no norte e no sul, no oriente e no ocidente. Os Papas nos lembram que a paz se chama desenvolvimento, e o caminho para a paz é a superação da pobreza através da justiça.
Nossos povos originários também nos ensinam com sabedoria que a paz não se reduz ao equilíbrio de forças políticas ou a um sentimento interior. Antes, a paz se situa no coração da utopia ancestral do bem viver, que se realiza na convivência harmoniosa e equilibrada da pessoa com a sua dimensão de interioridade e exterioridade, das pessoas entre si e das pessoas com a natureza como um todo. Neste sentido, o bem ou o mal de uma espécie ou parte da criação resulta no bem ou no mal de todo o conjunto. Infelizmente, dos centros de poder e das classes privilegiadas quase sempre nascem e se expandem, , mais cedo ou mais tarde,  crises perseguições.
A paz que não tem fim passa também pela comunidade eclesial. Nela nos encontramos com pessoas diferentes, descobrimos que somos membros diversos num único corpo e escutamos a Palavra sempre vive e criadora de Deus. Uma Palavra que nos confirma como filhos e filhas que não perdem essa dignidade por motivo nenhum. Uma Palavra que nos ajuda a compreender sempre de novo que a divindade se esconde na humanidade e com ela se identifica, nos pobres que foram acostumados a calar e sofrer. O caminho da paz passa por Belém, pela estrebaria, pela manjedoura.
Deus Menino, vivo na nossa frágil carne, filântropo do gênero humano: viemos te procurar e te encontramos repousando sob o olhar humano e cuidadoso de um casal humilde e surpreso. Parece que te faltam tantas coisas, mas, pobre, nos ensinas a bem viver. Por isso, o que nos resta é apenas trocar presentes: tu nos dás a felicidade, a dignidade e a solidariedade que há muito perdemos nos corredores dos shopings, e nós te oferecemos a palha da nossa pequenez, a luz do nosso olhar e o calor que ainda resta nas nossas entranhas e no meio das pessoas que amamos. Acolhe nossos dons... Amém! Assim seja!

Itacir Brassiani msf
(Profeta Isaías 9,1-6 * Salmo 95 (96) * Carta a Tito 2,11-14 * Lucas 2,1-14)

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

O Evangelho do Natal - 25.12.2017

NUM CASEBRE

Segundo o relato de Lucas, é a mensagem do anjo aos pastores que nos oferece a chave para ler a partir da fé o mistério que rodeia um menino nascido em estranhas circunstâncias nos arredores de Belém.
É de noite. Uma claridade desconhecida ilumina as trevas que cobrem Belém. A luz não desce sobre o lugar onde se encontra o menino, mas envolve os pastores que escutam a mensagem. O menino fica oculto na obscuridade, num lugar desconhecido. É necessário fazer um esforço para o descobrir.
Estas são as primeiras palavras que temos de escutar: «Não temais. Anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo». É algo muito grande o que sucedeu. Todos temos motivo para nos alegrarmos. Esse menino não é de Maria e José. Nasceu para todos nós. Não é só de uns privilegiados. É para toda a gente.
Os cristãos, não temos de monopolizar estas festas. Jesus é de quem o segue com fé e de quem o esqueceu, de quem confia em Deus e dos que duvidam de tudo. Ninguém está só frente aos seus medos. Ninguém está só na sua solidão. Há Alguém que pensa em nós.
Assim o proclama o mensageiro: «Nasceu hoje o Salvador: o Messias, o Senhor». Não é o filho do imperador Augusto, dominador do mundo, celebrado como salvador e portador da paz graças ao poder das suas legiões. O nascimento de um poderoso não é uma boa nova num mundo onde os débeis são vítimas de toda a classe de abusos.
Este menino nasce num povoado submetido ao Império. Não tem cidadania romana. Ninguém espera em Roma o Seu nascimento. Mas é o Salvador que necessitamos. Não estará ao serviço de nenhum César. Não trabalhará para nenhum império. É o Filho de Deus que se faz homem. Só procurará o reino do Seu Pai e a Sua justiça. Viverá para tornar a vida mais humana. Nele, encontrará este mundo injusto a salvação de Deus.
Onde está este menino? Como o podemos reconhecer? Assim diz o mensageiro: «Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado num casebre». O menino nasceu como um excluído. Os Seus pais não Lhe puderam encontrar um lugar acolhedor. A Sua mãe deu à luz sem a ajuda de ninguém. Ela mesma fez o que pode para envolve-lo em panos e deita-lo num casebre.
Neste casebre começa Deus a Sua aventura entre os homens. Não o encontraremos entre os poderosos, mas entre os débeis. No está no grande e espetacular, mas no pobre e pequeno. Vamos a Belém; voltemos às raízes da nossa fé. Procuremos Deus onde encarnou.
José Antonio Pagola

Tradução de Antonio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

O Evangelho dominical - 24.12.2017

COM ALEGRIA E CONFIANÇA

O Concilio Vaticano II apresenta Maria, Mãe de Jesus Cristo, como «protótipo e modelo para a Igreja», e descreve-a como mulher humilde que escuta Deus com confiança e alegria. Desde essa mesma atitude temos de escutar a Deus na Igreja atual.
«Alegra-te». É o primeiro que Maria escuta de Deus e o primeiro que temos de escutar também hoje. Entre nós falta alegria. Com frequência nos deixamos contagiar pela tristeza de uma Igreja envelhecida e gasta. Não é Jesus a Boa Nova? Não sentimos a alegria de ser Seus seguidores? Quando falta a alegria, a fé perde frescura, a cordialidade desaparece, a amizade entre os crentes esfria-se. Tudo se torna mais difícil. É urgente despertar a alegria nas nossas comunidades e recuperar a paz que Jesus nos deixou em herança.
«O Senhor está contigo». Não é fácil a alegria na Igreja dos nossos dias. Só pode nascer da confiança em Deus. Não estamos órfãos. Vivemos invocando cada dia a um Deus Pai que nos acompanha, nos defende e procura sempre o bem de todo o ser humano. Deus está também conosco.
Esta Igreja, por vezes tão desconcertada e perdida, que não acerta em regressar ao Evangelho, não está só. Jesus, o Bom Pastor, procura-nos. O Seu Espírito atrai-nos. Contamos com o seu alento e compreensão. Jesus não nos abandonou. Com Ele tudo é possível.
«Não temas». São muitos os medos que nos paralisam aos seguidores de Jesus. Medo ao mundo moderno e a uma sociedade descrente. Medo a um futuro incerto. Medo à conversão ao Evangelho. O medo está a fazer-nos muito mal. Impede-nos de caminhar para o futuro com esperança. Fecha-nos no conservar estéril do passado. Crescem os nossos fantasmas. Desaparece o realismo são e a sensatez evangélica.
É urgente construir uma Igreja da confiança. A fortaleza de Deus não se revela numa Igreja poderosa, mas sim humilde. Também nas nossas comunidades temos de escutar as palavras que escuta Maria: «Não temas».
«Darás à luz um filho, e darás o nome de Jesus». Também a nós, como a Maria, se nos confia uma missão: contribuir a colocar luz no meio da noite. Não estamos chamados a julgar o mundo, mas sim a semear esperança. A nossa tarefa não é apagar a mecha que se extingue, mas acender a fé que, em não poucos, está a querer brotar: temos de ajudar os homens e mulheres de hoje a descobrir Jesus.
A partir das nossas comunidades, cada vez mais pequenas e humildes, podemos ser fermento de um mundo mais são e fraterno. Estamos em boas mãos. Deus não está em crise. Somos nós os que não nos atrevemos a seguir Jesus com alegria e confiança. Maria há de ser o nosso modelo.
José Antonio Pagola

Tradução de Antonio Manuel Álvarez Perez