sábado, 28 de fevereiro de 2015

SEGUNDO DOMINGO DA QUARESMA (ANO B – 01.03.2015)

Servir, sem medo de desaparecer, como fermento na massa!

A vida é uma travessia, e são muitas as armadilhas que nos ameaçam a cada passo. E então o medo nos visita frequentemente, sugerindo construir tendas que nos protejam, ou voltar à segurança imobilizadora do ponto de partida. Façamos esta travessia tendo a Palavra do Senhor como bússola, convictos de que, se o próprio Deus está a nosso favor e nos acompanha, nada nos poderá impedir de seguir lutando pela realização dos sonhos que partilhamos com a humanidade. E não esqueçamos o chamado a ativar a dimensão social da nossa fé, em atitude de generoso serviço à sociedade.
No último domingo contemplamos a cena das tentações de Jesus e meditamos sobre o modo como ele as vence. Ao ser informado da prisão de João Batista, Jesus percebe que soara para ele o tempo da missão. Então, deixa o deserto da Judéia e volta à Galiléia. Em sua boca ressoa um anúncio marcado pela esperança e pela urgência: “O templo se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” Este templo completado o move ele a mudar suas prioridades. Ele mesmo, acreditando na boa notícia que anuncia, reorganiza seu projeto de vida.
Hoje, encontramos Jesus no alto da montanha, acompanhado de Pedro, Tiago e João. Para os discípulos, a transfiguração de Jesus é uma experiência positiva. Envolvido pelo brilho de Jesus, Pedro parece vencer o medo que envolve a todos. Moisés e Elias lembra a presença de Deus nos momentos difíceis e desanimadores da história. Estes dois personagens confirmam e dão credibilidade ao caminho e ao ensino de Jesus. O evangelho da cruz, a proposta do amor que se faz humano dom de si mesmo, continua valendo, mais do que nunca. E é essa a razão do medo de Pedro, Tiago e João...
Nesta experiência densa e profunda, os discípulos são envolvidos pela luz e, sucessivamente, tragados pela escuridão nebulosa. E é de dentro da nuvem –  símbolo da presença de Deus na difícil e quase interminável travessia da escravidão para a liberdade, do servir-se para o servir – que eles ouvem a voz de Deus: “Este é o meu Filho amado. Escutem o que ele diz.” Pedro, Tiago e João – e com eles todos os que fomos batizados em Jesus Cristo – devem levar a sério o que Jesus Cristo diz e faz, devem levar a sério a proposta evangélica de servir solidariamente, de desaparecer como o fermento na massa.
Escutar o que Jesus Cristo diz significa, negativamente: não fugir diante do chamado a encontrar a vida gastando-a pelos outros; não crer nos mitos que nos dizem que somos superiores aos outros; não imaginar que o Reino de Deus cairá prontinho do céu; não fingir que amamos, quando nossas ações traduzem desprezo. Positivamente, significa: renunciar aos interesses egoístas e dedicar-se totalmente à missão de levar todas as pessoas formarem uma só família, seguindo Jesus no caminho da cruz; dialogar com a sociedade civil e servir ao bem comum, começando pelo bem dos pobres.
Mas não deixa de ser intrigante o desejo expresso por Pedro: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.” Pedro fala sem saber o que diz, para ‘quebrar o gelo’ e espantar o medo. As roupas brancas de Jesus falam muito claramente de martírio, e Pedro quer evitar a todo custo esse caminho... Para a transformação e a humanização do mundo, Pedro prefere o caminho do culto e da adoração, simbolizado na tenda, e descarta a proposta do amor que se faz dom e enfrenta o próprio martírio e vê Jesus como o vê Judas (cf. Mc 14,45)!
Há quem use a cena da transfiguração para amenizar as exigências do discipulado, para substituir o sangue pelas flores e a coroa de espinhos pela coroa do sucesso. Sabendo que os discípulos entendem mal ou pouco o que vêem, Jesus os proíbe severamente de falar da transfiguração. Esta mesma proibição aparece depois da reabilitação da filha de Jairo (cf. Mc 5,43) e da libertação do surdo-mudo (cf. Mc 7,36). Para Jesus, cultos espetaculares e publicidade escancarada não são caminhos adequados para resgatar a humanidade perdida e para viver o belo e exigente mandato de servir...
Jesus Cristo, Mestre e Servo da humanidade! Sustenta-nos enquanto dura a travessia desta vida e acompanha-nos na caminhada rumo à terra livre, à plena vida dos pobres. Ajuda-nos a sacrificar nossas frágeis seguranças, impotentes para garantir a verdadeira salvação. Abre nossos ouvidos à atenta escuta da tua boa e exigente notícia e ajuda-nos a traduzi-la em ações que resgatam a dignididade humana, tantas vezes pisoteada. E não permitas que tua Igreja se transforme numa tenda de bem-estar egoísta, e transforma as estruturas que nos dispensam ou impedem de amar e de servir. Amém! Assim seja!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Livro do Gênesis 22,1-18 * Salmo 115 (116) * Carta aos Romanos 8,31-34 * Evangelho de Marcos 9,2-10)

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Um novo começo: onde?

Mc 1, 12-15: A Boa Nova é testada e provada no deserto.
Depois do batismo, o Espírito de Deus toma conta de Jesus e o empurra para o deserto, onde ele se prepara para a missão (Mc 1,12s). Marcos diz que Jesus esteve no deserto 40 dias e que foi tentado por Satanás. Em Mateus 4,1-11 se explicita a tentação: tentação do pão, tentação do prestígio, tantação do poder. Foram três tentações que derrubaram o povo no deserto, depois da saída do Egito (Dt 8,3; 6,16; Dt 6,13). Tentação é tudo aquilo que afasta alguém do caminho de Deus.
Orientando-se pela Palavra de Deus, Jesus enfrentava as tentações e não se deixava deviar (Mt 4,4.7.10). Ele é igual a nós em tudo, até nas tentações, menos no pecado (Hb 4,15). Inserido no meio dos pobres e unido ao Pai pela oração, fiel a ambos, ele resistia e seguia pelo caminho do Messias-Servidor, o caminho do serviço a Deus e ao povo (Mt 20,28).
ALARGANDO
A semente da Boa Notícia, o início do anúncio do Evangelho na América Latina
Marcos inicia dizendo como foi o começo. Você esperaria de Marcos uma data bem precisa. Em vez disso, recebe uma resposta aparentemente confusa. Para descrever esse começo, Marcos cita Isaías e Malaquias (Mc 1,2-3). Fala de João Batista (Mc 1,4-5). Alude ao profeta Elias (Mc 1,4). Evoca a profecia do Servo de Javé (Mc 1,11) e as tentações do povo no deserto, depois da saída do Egito (Mc 1,13).
Você pergunta: "Mas afinal, o começo foi quando: na saída do Egito, no deserto, em Moisés, em Elias, em Isaías, em Malaquias, em João Batista?" O começo, a semente pode ser tudo isso ao mesmo tempo. O que Marcos quer sugerir é que olhemos a nossa história com outros olhos. O começo a semente da Boa Nova de Deus, está escondida dentro da vida da gente, dentro do nosso passado, dentro da história que vivemos.
O começo da Boa Nova na América Latina está escondido na resistência e no despertar das etnias indígena e negra, que buscam vida, dignidade e liberdade para todos. Resgatando a sua história e reconhecendo os valores éticos presentes na cultura do seu povo, os indígenas se unem aos descendentes afro e a todas as pessoas que sofrem injustiça e discriminação. As mulheres despertam como sujeito de um novo tempo, descontruindo velhos padrões de comportamento e gerando uma nova consciência.
No campo e na cidade o MST vem demonstrando uma nova capacidade de organização e articulação. Apesar da propaganda contrária da TV, revistas e jornais, o MST gera um debate nacional sobre pontos fundamentais para uma política agrícola. Surge uma nova sensibilidade ecológica e cresce a consciência de cidadania. O grande desejo de participação transformadora, que a discussão e debate dos problemas sociais vêm provocando, se expressa no voluntariado de jovens, pessoas desempregadas, aposentadas... Até mesmo daquelas que em meio ao trabalho e ao estudo ainda encontram tempo para entregar-se gratuitamente ao serviço dos outros.
A busca de novas relações de ternura, respeito, ajuda mútua e intercâmbio vem crescendo. Há uma indignação do povo frente à corrupção e à violência. Há algo que vai nascendo dentro de cada pessoa, algo novo, que não permite mais a indiferença diante dos abusos políticos, sociais, culturais, de classe e de gênero. Há uma nova esperança, um novo sonho, um desejo de mudança. Resgata-se a utopia de construir uma sociedade nova, onde haja espaço de vida e de participação para todas as pessoas.
O anúncio da Boa Nova de Deus na América Latina será realmente Boa Notícia se apontar para esta novidade que está acontecendo no meio do povo. Ajudar a abrir os olhos para essa novidade, comprometer as comunidades de fé na busca pela utopia é reconhecer a presença libertadora e transformadora de Deus agindo no dia-a-dia de nossa vida.
O povo da Bíblia tinha esta convicção: Deus está presente na nossa vida e na nossa história. Por isso, eles se preocupavam em lembrar os fatos e as pessoas do passado. Pessoa que perde a memória perde a identidade, ela já não sabe de onde vem nem para onde vai. Eles liam a história do passado para aprender a ler a história deles e descobrir dentro dela os sinais e os apelos da presença de Deus.
É o que Marcos fez aqui no início do seu evangelho. Ele tira o véu dos fatos e aponta um fio de esperança que vinha desde o êxodo, desde Moisés, passando pelos profetas Elias, Isaías e Malaquias, pelos servidores do povo, até chegar em João Batista, que aponta Jesus como aquele que realizará a esperança do povo.

Mercedes Lopes e Carlos Mesters
http://www.cebi.org.br/noticias.php?noticiaId=5428

PRIMEIRO DOMINGO DA QUARESMA (ANO B – 22.02.2015)

A conversão acontece nos desertos, periferias e fronteiras.

Na última quarta-feira, enquando recebíamos um punhado de cinza sobre a cabeça, escutávamos contritos e atentos a interpelação: “Convertam-se e acreditem no Evangelho!” Exatamente nessa ordem: primeiro, converter-se; depois, acreditar no Evangelho. A proposta apresentada por Jesus e o caminho por ele aberto são portadores de uma novidade tão radical que, para acolhê-la, precisamos mudar nossos esquemas mentais. Mas o ponto de partida é aquilo que Pedro anuncia: a Aliança que Deus selou conosco em Jesus Cristo, a justo que morreu para reconciliar os injustos com Deus.
O evangelista nos diz que, logo depois do batismo no rio Jordão, onde se descobre filho amado do Pai e servo enviado aos irmãos e irmãs, Jesus é conduzido pelo Espírito ao deserto. Seu batismo assinala claramente um novo começo, mas com sua retirada para o deserto esse início parece ser adiado por um tempo. Na verdade, Jesus apenas se retira do palco e se subtrai aos refletores para aprofundar o sentido da missão que recebeu no batismo. No deserto, ele é levado ao confronto consigo mesmo e com as diversas possibilidades de viver sua condição de filho amado do Pai e servo da humanidade.
No deserto, Jesus faz a experiência das tentações que costumam acompanhar todos aqueles que se empenham no serviço a Deus e ao seu povo: a tentação das soluções fáceis, miraculosas e espetaculares (cf. Mc 8,11); a tentação do legalismo e do casuísmo para beneficiar apenas algumas pessoas (cf. Mc 10,2); a tentação de disputar o poder (cf. Mc 12,15); a tentação de identificar a vontade de Deus com seus próprios medos e vontades (cf. Mc 14,32-38). Os 40 dias de deserto recordam simbolicamente que Jesus foi frequentemente tentado, mas venceu deixando-se guiar pelo Espírito.
No deserto, Jesus pode clarear o núcleo do Boa Notícia que anunciaria aos pobres. Por isso, este foi um tempo forte de discernimento e amadurecimento que, de alguma forma, se estendeu por toda a sua vida. Pois o amadurecimento costuma se oferecer na discrição, no silêncio e na margem, longe dos holofotes e da publicidade. Assim é o tempo quaresmal: um tempo para sair do centro das atenções, deixar de lado os papéis decorados que encenamos, vencer a comodidade de ficar na superfície e na periferia de nós mesmos, penetrar no núcleo mais secreto e vivo do nosso ser.
O anúncio que Jesus acolheu, aprofundou e reformulou no seu deserto não comporta ameaças ou imposturas. É pura Boa Notícia. “O tempo de espera se cumpriu e o Reino de Deus está próximo!” Aquilo que era esperança faz-se realidade. Aquilo que estava distante agora está inexoravelmente próximo. É o tempo de graça do Senhor, da assinatura de um novo pacto com seus filhos e filhas e com toda sua criação, da justiça vindo como chuva e da paz correndo como rio... Jejuamos, rezamos e fazemos penitência para não passarmos ao largo ou relativizarmos a única coisa que vale a pena.
E qual é este bem precioso do qual não podemos abrir mão? É o novo céu e a nova terra, um país sem miséria e sem corrupção, mas também sem injustiças nem desigualdades; uma cultura que enfatiza a relações harmoniosas entre as gerações, entre os grupos sociais, com a natureza e até com a morte, parte insuprimível da vida. E isso mesmo quando somos instados a desconfiar de quem anuncia boas notícias e duvidar de que ainda haja boas notícias. Quantas são hoje as pessoas, inclusive lideranças religiosas, que não acreditam em nenhuma mudança ou melhoria nas relações humanas e sociais?!
Jesus percorre caminhos que o levam do rio Jordão ao deserto e, do deserto, à Galiléia. Caminhos que o afastam dos palcos e o aproximam da margem. Estradas que levam ao encontro do povo cansado e abatido para anunciar-lhe a Boa Notícia da chegada do Reino de Deus, da renovação da aliança selada com Noé e com Moisés. Eis o rumo que seus discípulos e discípulas precisamos seguir. É apenas um rumo, e não uma estrada bem sinalizada. Os caminhos concretos somos nós que devemos inventar, na força do batismo e com uma consciência boa e reta, como nos diz São Pedro na sua carta.
Jesus, voz que clama no deserto! Faz que nossa oração oxigene nossa fé e nos mantenha abertos  às tuas promessas. Que o jejum nos ajude a perceber nossos limites e potencialize nossa sede de paz e de justiça. Que a partilha com os mais pobres seja semeadura de novas relações, fecundadas pelo amor e pelo serviço generoso. Que nossas celebrações comunitárias nos mantenham numa atitude vigilante e nos sustentem na necessária conversão. E não permitas que o cansaço ou a pressa nos prendam aos velhos hábitos e nos impeçam de servir ao bem comum, como indivíduos e como Igreja. Amém! Assim seja!

Pe. Itacir Brassiani msf

(Livro do Gênesis 9,8-15 * Salmo 24 (25) * Primeira Carta de Pedro 3,18-22 * Marcos 1,12-15)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Missao: enisnando e aprendendo...

Intinerando no conhecimento

Queridas irmãs e  irmãos!
Na alegria das últimas notícias  para nossa Família Azul para a Igreja e para o Mundo, chego até vocês para compartilhar as experiências  neste itinerar nos campos do saber e das experiências. Ainda  trago no coração as alegrias e resoluções de nossa assembleia de dezembro: sentar com Emilie em sua escrivaninha e ter encontrado a todas renovou o entusiasmo para seguir.
Passar uns dias em família é sempre  bom e revigora os laços  e a fraternidade. Estar  com a família da gente é um aprendizado constante. Além de descansar, pude ajudar no mutirão solidário da casa de minha irmã mais velha. O povo é generoso e dá de sua pobreza. Nós também...
De casa fui a Goiânia e Luziânia para a formação Básica do CIMI. Tempo forte de estudo,  construção, desconstrução de esquemas e aprendizagem com nossos  povos ancestrais. Nosso  grupo era internacional, gente de seis países; intercultural, pois tinha representações de todas as regiões do país; Intercongregacional, pois eram sete  congregações diferentes; mais um padre diocesano e leigos/as.
As experiências  marcaram muito. A mística, o lazer e as confraternizações eram sempre marcados pela diferença, ora pela palavra de Deus, ora pelos “parixara” e pelos rituais e expressões que são frutos das  lutas das resistências de muitos povos que teimaram, de modo que hoje podemos aprender com eles e, no fundo, voltar às origens. Os assessores que estiveram conosco fizeram a diferença pela competência e simplicidade com que  exercem sua profissão e o profetismo com o qual defendem a causa indígena, e outras. Apesar do calor atípico deste época na região, conseguimos  aproveitar bem de tudo...
De Goiânia, fui direto a Manaus e já  peguei  o Fórum Social Mundial de Biodiversidade em andamento. Um espaço ou agenda prevista desde a Rio+20, e que foi pouco divulgada por questões políticas locais. Assim, poucas pessoas puderam usufruir deste debate acerca de tão importante tema. Pude participar de algumas plenárias sobre a ameaça aos diretos indígenas e mega-projetos na Amazônia; a questão dos alimentos orgânicos e o descaso  com a vida pelos agrotóxicos; as mudanças climáticas e as ameaças  aos direitos da Mãe Terra, com uma fala brilhante de nosso amigo e  aliado Ivo Poletto...
De Manaus segui a Roraima para  a  XXXV Assembleia do CIMI. Este foi outro espaço de aprendizagem e escola de vida issionária.  Os povos indígenas estavam presentes massivamente por Roraima ser um Estado onde a maioria das terras pertencem aos índios, demarcadas ou não. Muitos parentes se fizeram presente e compartilharam suas lutas, vitória e desafios que ainda restam pela frente e demonstraram sua gratidão  pela presença profética do CIMI em suas lutas, na formação e, sobre-tudo, na defesa dos seus direitos que ainda seguem ameaçados. Muitas mulheres indígenas se fizeram presentes, demonstrando o avanço pela participação da mulher.
Para nossa alegria  todos os Bispos do Regional Norte I da CNBB nos fizeram uma visita, também porque estavam reunidos em Roraima, sede do presidente do Regional. Esta presença reafirmou o compromisso da Igreja com a causa indígena. Foram dias de muito aprendizado, troca de saberes, análise de conjuntura, estudo sobre o “bem viver”, que é um caminho a ser seguido se acreditamos numa nova maneira de se relacionar coma a natureza  e entre nós seres humanos. Neste caminho mais uma vez os povos indígenas são nossos mestres.
Estou de volta a Manaus, coma a mochila cheia se tantos momentos intensos que esta missão me possibilita, eternamente grata à Província e à congregação, ainda esperando o companheiro Pe. Paco sj, que  está  de férias  na Espanha, para assim constituirmos nossa  comunidade itinerante inserida. No momento estamos apenas Rafael e eu. Um abraço a cada um/a, na certeza da comunhão que nos une e na alegria de canonização de nossa Santa Azul. Atenciosamente,

Ir. Joaninha Honório Madeira

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

QUARTA-FEIRA DAS CINZAS (ANO B – 18.02.2015)

Arregaçar as mangas e colocar-se a serviço do bem comum!
A tempo quaresmal se abre como um tempo de concentração e de busca do essencial, como um convite a voltar a Deus de todo o coração, a vencer a tendência à fragmentação e à indiferença, a verter todas as as energias para o único objetivo realmente decisivo: acolher a oferta de reconciliação que o próprio Deus nos faz; refazer as relações fraternas e avançar na construção de uma sociedade justa. E, neste ano, pensar e viver de forma responsável a relação entre fé e sociedade, entre o seguimento de Jesus Cristo e a necessidade de contribuir para a construção de um país mais justo e solidário
Escrevendo aos cristãos de Corinto, Paulo sublinha que o próprio Deus toma a iniciativa de refazer a aliança e consertar a ruptura que provocamos com a sua proposta: em Jesus Cristo, ele reconciliou definitivamente cosigo o mundo e cada um de nós. É deste dom incondicional, desta amizade reatada unilateralmente, que brota para nós a exigência de reconciliação com o Pai e com os irmãos e irmãs. E isso não é algo secundário, mas uma tarefa essencial. É coisa para hoje, para agora! “É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação!”, sublinha São Paulo.
A tradição das comunidades cristãs privilegiou três ações para expressar a mudança de direção e a convergência das forças que marcam o tempo quaresmal: a esmola, a oração e o jejum. Mas, em relação a estas práticas de piedade, Jesus Cristo pede vigilância e auto-crítica, pois nem mesmo estas ações estão livres da falsificação e do faz-de-conta. Por mais piedosos que pareçam, estes gestos podem ser motivados apenas pela busca de aprovação, de estima e de reconhecimento e, então, nos afastam da lógica de Deus, pois ele aprecia aqueles que o mundo não vê, aquilo que fica escondido...
Em relação à esmola, Jesus não a descarta, mas também não se entusiasma ingenuamente. De fato, ele questiona a motivação e disposição com a qual costumamos dar esmola. “Não mande tocar trombeta na frente... Que a sua mão esquerda não saiba o que a sua direita faz.” O sentido autêntico da esmola é a solidariedade e a partilha daquilo que temos com as pessoas mais necessitadas que nós. Mais que dar daquilo que sobra ou não faz falta, trata-se do chamado a partilhar aquilo que é fruto da terra e do trabalho da humanidade e que, por isso mesmo, não pode ser privatizado.
Para a maioria das religiões, a oração é uma expressão de fé e de comunhão com a divindade. Não faltam grupos e pregadores que insistem na necessidade de rezar muito, de multiplicar terços, ladainhas, missas e promessas. Mas Jesus insiste mais na qualidade e na motivação que na quantidade da oração.  Para ele, a oração é abertura radical a Deus e à sua vontade; superação dos estreitos limites dos nossos gostos, preferências e necessidades; diálogo íntimo e amigo com Aquele que quer nosso bem e que não descansa enquanto todos os seus filhos e filhas não estejam bem.
Quanto ao jejum, hoje ele está de novo na moda, e recebe o simpático nome de dieta. Mas quem a pratica está muito preocupado consigo mesmo – com  a saúde ou com a aparência – e pouco interessado com a compaixão e a partilha. No tempo de Jesus, muitas pessoas usavam o jejum, sinal de arrepedimento e de mudança, para impressionar os outros e aumentar a influência e o poder sobre eles. Como cristãos, precisamos resgatar o sentido pedagógico do jejum: fazer experiência da própria vulnerabilidade e participar solidariamente das necessidades dos nossos irmãos e irmãs.
Na espiritualidade quaresmal, o jejum, a esmola e a oração estão a serviço do nosso fortalecimento para combater todas as formas de mal, da nossa conversão ao tesouro do reino de Deus, da renovação da nossa vida em todas as suas expressões. E isso se mostra cotidianamente na abertura humilde e reverente a Deus,  na consciência da nossa interdependência em relação aos nossos irmãos e irmãs, na luta permanente para superar a indiferença e o pragmatismo interesseiro que pode guiar as igrejas e religiões em suas relações com a sociedade civil e o estado brasileiro.
Ó Deus, tu sempre ouves o clamor do teu povo e mostras compaixão com os oprimidos e escravizados. Faz que experimentemos a liberdade que nos vem da participação na cruz e na ressurreição de Jesus, de uma vida social pautada pelo serviço gratuito. Converte-nos pela força do teu Espírito, para que evitemos a globalização da indiferença e sejamos sensíveis às dores e sofrimentos de todo e qualquer ser humano, sem fazer caso da sua identidade política ou religiosa. Comprometidos na luta pela superação da indiferença, queremos viver como teus filhos e filhas e construir um país solidário. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Profeta Joel 2,12-18 * Salmo 50 (51) * Segunda Carta aos Coríntios 5,20-6,2 * Mateus 6,1-6.16-18)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

A açao de Jesus resgata a cidadania dos excluidos

Mc 1, 40-45: Manter viva a consciência da missão!

1 - SITUANDO
Nos versículos 16 a 45 do primeiro capítulo, Marcos descreve o objetivo da Boa Nova e a missão da comunidade, apresentando oito critérios para as comunidades do seu tempo poderem avaliar a sua missão. Tanto nos anos 70, época em que Marcos escreveu, como hoje, época em que nós vivemos, era e continua sendo importante ter diante de nós modelos de como viver e anunciar o Evangelho e de como avaliar a nossa missão.

2 - COMENTANDO
Mc 1, 40-42: Acolhendo e curando o leproso, Jesus revela um novo rosto de Deus
Um leproso chega perto de Jesus. Era um excluído. Devia viver afastado. Quem tocasse nele ficava impuro também! Mas aquele leproso teve muita coragem. Transgrediu as normas da religião para poder chegar perto de Jesus. Ele diz: "Se queres, podes curar-me!" Ou seja: "Não precisa tocar-me! Basta o senhor querer para eu ficar curado!"
A frase revela duas doenças: 1) a doença da lepra que o tornava impuro; 2) a doença da solidão a que era condenado pela sociedade e pela religião. Revela também a grande fé do homem no poder de Jesus.
Profundamente compadecido, Jesus cura as duas doenças. Primeiro, para curar a solidão, toca no leproso. É como se dissesse: "Para mim, você não é um excluído. Eu o acolho como irmão!" Em seguida, cura a lepra dizendo: "Quero! Seja curado!"
O leproso, para poder entrar em contato com Jesus, tinha transgredido as normas da lei. Da mesma forma, Jesus, para poder ajudar aquele excluído e, assim, revelar um rosto novo de Deus, transgride as normas da sua religião e toca no leproso. Naquele tempo, quem tocava num leproso tornava-se um impuro perante as autoridades religiosas e perante a lei da época.
Mc 1, 43-44: Reintegrar os excluídos na convivência fraterna
Jesus não só cura, mas também quer que a pessoa curada possa conviver. Reintegra a pessoa na convivência. Naquele tempo, para um leproso ser novamente acolhido na comunidade, ele precisava ter um atestado de cura assinado por um sacerdote. É como hoje. O doente só sai do hospital com o documento assinado pelo médico de plantão. Jesus obrigou o fulano a buscar o documento, para que ele pudesse conviver normalmente. Obrigou as autoridades a reconhecer que o homem tinha sido curado.
Mc 1, 45: O leproso anuncia o bem que Jesus fez e ele e Jesus se tornam excluídos
Jesus tinha proibido o leproso de falar sobre a cura. Mas não adiantou. O leproso, assim que partiu, começou a divulgar a notícia, de modo que Jesus já não podia entrar publicamente numa cidade. Permanecia fora, em lugares desertos. Por quê? É que Jesus tinha tocado no leproso. Por isso, na opinião da religião daquele tempo, agora ele mesmo era um impuro e devia viver afastado de todos. Já não podia entrar nas cidades. Mas Marcos mostra que o povo pouco se importava com estas normas oficiais, pois de toda a parte vinham a ele! Subversão total!
O duplo recado que Marcos dá às comunidades do seu tempo e a todos nós e este: 1) anunciar a Boa Nova é dar testemunho da experiência concreta que se tem de Jesus. O leproso, o que ele anuncia? Ele conta aos outros o bem que Jesus lhe fez. Só isso! Tudo isso! E é este testemunho que leva os outros a aceitar a Boa Nova de Deus que Jesus nos trouxe. 2) Para levar a Boa Nova de Deus ao povo, não se deve ter medo de transgredir normas religiosas que são contrárias ao projeto de Deus e que dificultam a comunicação, o diálogo e a vivência do amor. Mesmo que isso traga dificuldades para a gente, como trouxe para Jesus.

3 - ALARGANDO
O Anúncio da Boa Nova de Deus feito por Jesus
A prisão de João fez Jesus voltar e iniciar o anúncio da Boa Nova. Foi um início explosivo e criativo! Jesus percorre a Galiléia toda: as aldeias, os povoados, as cidades (Mc 1,39). Visita as comunidades. Ele muda de residência, e vai morar em Cafarnaum (Mc 1,21; 2,1), cidade que fica no entroncamento de estradas, o que facilita a divulgação da mensagem. Ele quase não pra. Está sempre andando. Os discípulos e as discípulas com ele, por todo canto. Na praia, na estrada, na montanha, no deserto, no barco, nas sinagogas, nas casas. Muito entusiasmo!
Jesus ajuda o povo prestando serviço de muitas maneiras: expulsa maus espíritos (Mc 1,39), cura os doentes e os maltratados (Mc 1,34), purifica quem está excluído por causa da impureza (Mc 1,40-45), acolhe os marginalizados e confraterniza com eles (Mc 2,15). Anuncia, chama e convoca. Atrai, consola e ajuda. É uma paixão que se revela. Paixão pelo Pai e pelo povo pobre e abandonado da sua terra. Onde encontra gente para escutá-lo, ele fala e transmite a Boa Nova de Deus. Em qualquer lugar.
Em Jesus, tudo é revelação daquilo que o anima por dentro! Ele não só anuncia a Boa Nova do Reino. Ele mesmo é uma amostra, um testemunho vivo do Reino de Deus. Nele aparece aquilo que acontece quando um ser humano deixa Deus reinar, tomar conta de sua vida. Pelo seu jeito de conviver e de agir, Jesus revelava o que Deus tinha em mente quando chamou o povo no tempo de Abraão e de Moisés. Jesus desenterrou uma saudade e transformou-a em esperança! De repente, ficou claro para o povo: "Era isso que Deus queria quando nos chamou para ser o seu povo!
Este foi o começo do anúncio da Boa Nova do Reino que se divulgada rapidamente pelas aldeias da Galiléia. Começou pequena como uma semente, mas foi crescendo até tornar-se árvores grande, onde o povo todo procurava um abrigo (Mc 4,31-32). O próprio povo se encarregava de divulgar a notícia.
O povo da Galiléia ficava impressionado com o jeito que Jesus tinha de ensinar. "Um novo ensinamento! Dado com autoridade! Diferente dos escribas!" (Mc 1,22.27). Ensinar era o que Jesus mais fazia (Mc 2,13; 4,1-2; 6,34). Era o costume dele (Mc 10,1). Por mais de 15 vezes o Evangelho de Marcos diz que Jesus ensinava. Mas
Marcos quase nunca diz o que ele ensinava. Será que não se interessava pelo conteúdo? Depende do que a gente entende por conteúdo! Ensinar não é só uma questão de ensinar verdades novas para o povo decorar. O conteúdo que Jesus tem para dar transparece não só nas palavras, mas também nos gestos e no próprio jeito de ele se relacionar com as pessoas. O conteúdo nunca está desligado da pessoa que o comunica. Jesus era uma pessoa acolhedora (Mc 6,34). Queria bem ao povo. A bondade e o amor que transparecem nas suas palavras fazem parte do conteúdo. São o seu tempero. Conteúdo bom sem bondade é como leite derramado.
Marcos define o conteúdo do ensinamento de Jesus como "Boa Nova de Deus" (Mc 1,14). A Boa Nova que Jesus proclama vem de Deus e revela algo sobre Deus. Em tudo que Jesus diz e faz, transparecem os traços do rosto de Deus. Transparece a experiência que ele mesmo tem de Deus como Pai. Revelar Deus como Pai é fonte, o conteúdo e o destino da Boa Nova de Jesus.
Mercedes Lopes e Carlos Mesters

SEXTO DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO B – 15.02.2015)

Jesus cura os doentes e resgata a cidadania dos excluídos.

Depois de nos ter convocado a tomar parte na sua missão de reunir o povo disperso e anunciar a chegada do Reino de Deus, Jesus vai à sinagoga, onde enfrenta a autoridade dos escribas, e à casa de Pedro, onde cura muitos doentes. E, após uma madrugada de oração, no final da qual ampliou os horizontes da missão, Jesus é procurado por um leproso. Narrando estes fatos, o evangelista Marcos nos ajuda, pouco a pouco, a reconhecer em Jesus um homem absolutamente livre e libertador, capaz de estabelecer a pessoa humana necessitada ou marginalizada como prioridade absoluta.
No tempo de Jesus, a lepra era considerada uma das piores doenças. A lei de Moisés determinava que as pessoas portadoras dessa doença deveriam ser separadas da convivência familiar e social e morar fora das aldeias, em bosques ou cavernas. E proibia que elas se aproximassem das pessoas considaradas sãs. Os leprosos eram declarados impurs, e assim permaneciam enquanto durava a doença. Isso significa que, como doentes, eram colocados à margem da sociedade e considerados sujeitos sem direitos e sem dignidade. A lei da impureza tornava ainda mais pesada a vida do leproso...
O que chama a atenção é que o leproso do evangelho de hoje se aproxima de Jesus sem levar em conta as limitações impostas pela lei. Ele chega perto de Jesus e pede, reverente: “Se queres, tu tens o poder de me purificar”. Essa aproximação é uma transgressão da lei que demarca muito bem os limites da movimentação de um leproso. Ele jamais poderia aproximar-se de qualquer pessoa sã, e deveria gritar de longe que ninguém se aproximasse dele porque, era impuro. De onde vinha a confiança e a força que sustentaram aquele leproso anônimo na sua destemida transgressão?
Não deixa de causar surpresa o registro de que Jesus ficou muito irritado (embora algumas traduções amenizem e falem que ele se compadeceu). Seguramente, Jesus não se irrita com o leproso que a ele se dirige com tanta coragem e reverência, mas com a terrível ideologia que carimbava o fardo da doença com a marca da impureza e da marginalização. Ou então, porque sabe que aquele leproso já havia procurado os sacerdotes para ser purificado e nada conseguira. Jesus se irrita porque sabe que os leprosos são marginalizados e que, para serem purificados, devem oferecer um sacrifício especial.
Jesus “estendeu a mão, tocou no doente e, respondendo à interpelação dele, disse: ‘Eu quero, fique purificado!’ No mesmo instante a lepra desapareceu e o homem ficou purificado.” Jesus não se distancia da doença e da impureza que pesa sobre os marginalizados, mas deixa-se tocar pela miséria deles e, ao mesmo tempo, os purifica com seu toque solidário.  Declarando puro aquele leproso, Jesus desafia a lei e a autoridade sacerdotal, e ocupa o lugar deles. Enviando o leproso ao templo, Jesus reintroduz no mais sagrado dos espaços aquela criatura condenada à viver à margem da cidadania...
Dito de outro modo: aquele leproso transformado em cidadão é enviado ao templo para testemunhar contra os sacerdotes, e assim  é envolvido na própria missão de Jesus. Na verdade, tendo sido reinserido socialmente, ele não vai ao templo, mas se transforma em apóstolo na praça pública: “Começou a pregar muito e espalhar a notícia.” Aquele homem antes condenado a viver nos lugares remotos e desertos, voltou ao seio da família e da cidade e tornou-se testemunha e evangelizador. Mas, como consequência, agora é Jesus que não pode mais entrar sossegado numa cidade...
Parece que a impureza  deixa o leproso e passa a Jesus. Com seu toque humanamente divino, Jesus purifica o leproso e assume sua impureza, assume na sua própria carne o pecado do mundo. O doente, antes excluído, se torna cidadão, enquanto que Jesus experimenta a perseguição... Os lugares desertos e afastados das cidades, porém, não são obstáculo para sua missão libertadora. “De todos os lados as pessoas iam procurá-lo...” Jerusalém se esvazia, o templo fica estéril e o povo procura Jesus no deserto. Mas Jesus não age como um simples curador: ele desmascara a ideologia discriminadora dos escribas.
Estende tua mão, Jesus de Nazaré, e toca as multidões que jazem à beira da vida, jogadas em situações nas quais é quase impossível sobreviver. Converte a mão da tua Igreja em mão acolhedora e benfazeja; ajuda-nos a ir além das cômodas mãos postas e a eliminar os incômodos dedos em riste. Que a comunidade dos que acreditam em ti trabalhe sem tréguas pela tua glória, que é a vida dos pobres, e não seja pedra de acusação ou de tropeço para ninguém. Assim, os cristãos serão teus imitadores e poderão ser imitados, pois não estarão buscando o que é vantajoso pare si mesmos. Amém! Assim seja!

Itacir Brassiani msf
(Livro do Levítico 13,1-2.44-46 * Salmo 31 (32) * 1ª Carta aos Coríntios 10,31-11,1 * Marcos 1,40-45)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

S. Romero, Bispo e Martir

TESTEMUNHAS DO CORDEIRO NA AMÉRICA LATINA

O noticiário vaticano avisa que o Papa proclamou publicamente o martírio do grande arcebispo salvadorenho Oscar Arnulfo Romero Galdámez. Isso significa que em breve o reconhecido mártir Monsenhor Romero deverá ser beatificado. Seu martírio reconhecido pelo Santo Padre foi encaminhado para a Congregação da Causa dos Santos.
A beatificação será o primeiro estágio do reconhecimento, por parte da Igreja, da santidade deste servo fiel, desta Testemunha do Cordeiro. Há muito esperada, enche de júbilo não apenas o povo de Deus que vive em El Salvador, mas todos os cristãos da América Latina e de outras partes do mundo que já viam Romero como mártir e invocavam sua intercessão junto a Deus.
Assassinado enquanto celebrava a missa no dia 24 de março de 1980, por um atirador de elite a soldo do governo repressor de seu país, a cuja violência se opunha duramente ao defender os pobres que eram mortos diariamente em uma guerra fratricida, Monsenhor Romero é um mártir. Sem dúvida alguma. Só espanta que sua beatificação haja demorado tanto.
No entanto, ao lado da iluminada figura do tão amado Romero, chamam a atenção três outros nomes e rostos. Homens ainda jovens, dois poloneses - Michele Tomaszek e Sbigneo Strzałkowski - e um italiano - Alessandro Dordi -, dois franciscanos e um sacerdote diocesano, também são reconhecidos mártires. Trabalhavam todos no Peru, na região de Santa, e foram mortos em 1991, nos tempos difíceis do Sendero Luminoso, grupo guerrilheiro que deixou muitas vítimas e assassinatos atrás de si.
Enquanto Monsenhor Romero é mais do que conhecido, venerado e sua vida e ação servem de inspiração para homens e mulheres de todas as latitudes e idades, os outros três são bem menos conhecidos. Figuras anônimas que, longe de suas pátrias e famílias, entregavam a vida na cotidianidade do serviço aos pobres também anônimos da região de Chimbote, uma das mais pobres do Peru.
As biografias desses três homens, europeus que viveram seu ministério na América Latina, fazendo um trabalho obscuro, sem reconhecimentos visíveis, são praticamente desconhecidas. Do Pe. Dordi, sabe-se que era de Bergamo, trabalhou sempre junto aos pobres, na Suíça e em outros lugares, e pertencia à Comunidade Paradiso.
Dos dois poloneses, sabe-se que pertenciam à ordem dos franciscanos conventuais, um dos três ramos da família franciscana. E pouco mais. Pelas fotos que a internet veicula se vê que eram ainda bastante jovens e usavam barba. Talvez com o avanço de seu processo de beatificação, decorrência natural de seu martírio, se possa conhecer um pouco mais sobre suas vidas.
No entanto, a escassez de dados biográficos é compensada pelo selo de suas vidas, com a morte violenta sofrida em fidelidade ao seguimento de Jesus. Sobre Monsenhor Romero abundam os escritos, as homilias gravadas e publicadas em vários idiomas, as fotos, os ensaios e teses escritas sobre sua pessoa e seu pensamento e espiritualidade.
Chama a atenção nesses mártires, agora reconhecidos e celebrados pela Mãe Igreja, a variedade dos perfis e das trajetórias, em dialética e fecunda tensão com o carisma de uma mesma vocação: o seguimento radical de Jesus Cristo e a disponibilidade de dar suas vidas para testemunhar a fé e o Evangelho.
Como diz o grande filósofo francês Jean Luc Marion, pecadores e traidores é o que mais existe na Igreja. O extraordinário, o surpreendente, é que ela ainda seja capaz de produzir santos. A notícia de hoje é portadora desse alento e dessa esperança.
Pouco importam os pecados, o contra testemunho, a covardia nossa de cada dia; os escândalos, as barbaridades e atrocidades cometidas em nome de uma hipocrisia travestida de fé. Enquanto ainda houver pessoas, homens e mulheres, que prefiram morrer a ser infiéis e apartar-se do caminho de Jesus, a Igreja de Cristo é viva e cheia de força.
Os que matam pessoas sempre chegam tarde. As balas e a violência não conseguem neutralizar a luz que o testemunho irradia. Como bem diz o bispo-poeta Pedro Casaldáliga a respeito de Mosenhor Romero: “Ninguém conseguirá calar tua última homilia.”

Maria Clara Lucchetti Bingemer

QUINTO DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO B – 08.02.2015)

Jesus nos toma pela mão, nos liberta e nos torna servidores. 
Com a presença de Jesus, a casa de André e de Pedro se converte em espaço de acolhida e recuperação de doentes. Jesus desconhece a separação rígida entre espaço público e espaço privado. Sua ação libertadora não conhece fronteiras: supera a oposição entre religião e política; desconhece a divisão entre espaço público e espaço privado; une oração e ação; não reconhece a prioridade aos homens em detrimento das mulheres; vai além do moralismo que impõe o respeito às autoridades e faz pouco caso do povo simples; une de forma indissolúvel o amor a Deus ao amor ao próximo...
Na casa de Simão e André, Jesus fica sabendo que a sogra de Simão estava acamada. Aquela mulher anônima é o símbolo da humanidade oprimida por doenças, dominações  e doutrinas que discriminam e condenam. Constritas ao mundo privado, quando adoeciam as mulheres eram ainda mais segregadas, inclusive no próprio espaço doméstico. Ao machismo que lança profundas raízes na mente e no coração dos homens vinha se somar a ideologia da impureza. E isso sem falar na visão preconceituosa que até entre nós recai sobre a figura da sogra...
Jesus não faz pouco caso daquilo que seria uma simples febre, não faz de menos por ser a doente uma mulher, nem espera que a conduzam a ele. “Jesus foi onde ela estava, segurou a sua mão e ajudou-a a se levantar.” Este gesto de Jesus é uma espécie de parábola que evidencia um Deus que se aproxima da humanidade oprimida, para tomá-la pela mão e firmá-la sobre os próprios pés. Num mundo no qual predominava a figura masculina, Jesus se importa com a febre de uma mulher. E mais: rompe as barreiras culturais e toca no corpo de uma pessoa doente.
E seu gesto não se restringe a isso. Numa sociedade que sujeita os mais fracos e  mantém multidões na dependência frente aos que detém o poder, Jesus ajuda o povo caminhar com os próprios pés. Aquela mulher, que antes estava segregada e dependente por causa da doença, se descobre livre e capaz de servir. “Então a febre deixou a mulher e ela começou a servi-los.” E não se trata de um simples serviço subalterno ao qual são submetidas as mulheres. Ao servir Jesus e os presentes, a sogra de Pedro exerce a diaconia emancipada, característica dos discípulos de Jesus.
Fica a impressão de que Jesus até desrespeita a casa dos seus amigos, e a transforma em lugar de resgate da dignidade e da autonomia de um povo cansado e abatido, doente e oprimido. “À tarde, depois do pôr-do-sol, levavam a Jesus todos os doentes e os que estavam possuídos pelo demônio. A cidade inteira se reuniu na frente da casa...” Como diz o salmista, Deus “cura os corações despedaçados e cuida dos seus ferimentos”. Jesus não se cansa de atender às necessidades das pessoas desamparadas e lhes devolve a possibilidade de cidadania e de vida plena, de um bom viver.
Mas é evidente que Jesus não receita um simples tratamento para as doenças, pois não é enfermeiro nem médico. Ele cura, ou seja, reintegra plenamente as pessoas no convívio social, mesmo que isso signifique negar radicalmente as leis que separam e excluem os doentes, considerados impuros e culpados do próprio mal-estar. Mas, devolver ao povo a dignidade e autonomia que lhe pertence é um trabalho exigente, e corremos o risco de imaginar-nos auto-suficientes, ou de reduzir as pessoas às suas necessidades e carências. E é aqui que entra a oração...
Daí a importância de tomar distância para inserirmo-nos de modo coerente e profundo na missão. Jesus não se deixou envolver pela fama, nem ser dominado pelo que parecia mais urgente. “Todos estão te procurando...” Ele sabia distinguir aquilo que éra urgente e aquilo que era essencial. “Quando ainda estava escuro, Jesus se levantou e foi rezar num lugar deserto.” Para ele, a oração nunca foi álibi para não se importar com as necessidades do povo, mas seu jeito de manter abertura a todos. A oração foi também a pedagogia que o ajudou a centrar a vida na vontade do Pai e não em si mesmo.
Querido Jesus, tu vens à nossa casa, pois tua Boa Notícia não fronteiras. Ensina-nos a sair de nós mesmos e das nossas Igrejas para estendermos a mão a todas as pessoas encurvadas sob o peso de tantos fardos econômicos, culturais e religiosos. Dá-nos a coragem de seguir teu exemplo e fazer do serviço aos nossos povos nosso tesouro e destino, de fazermo-nos fracos com os fracos, tudo para todos. E isso, por causa do Evangelho, cujo anúncio é para nós uma necessidade que vem da profundidade da fé e o motivo das nossas maiores alegrias, como ensina Paulo. Amém! Assim seja!

Itacir Brassiani msf
(Livro de Jó 7,1-7 * Salmo 146 (147) * 1ª Carta aos Coríntios 9,16-23 * Evangelho de Marcos 1,29-39)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Jesus, Pedro e a sogra

A cura da  sogra de Pedro (Mc 1,29-39)

A passagem do evangelho segundo Marcos proposta para este final de semana está claramente dividida em três partes.
A cura de uma mulher para a diaconia, o serviço (1,29-31)
No Evangelho segundo Marcos, a primeira cura realizada por Jesus é a expulsão de um espírito impuro de um homem que está sob o domínio de escribas e da sinagoga de Cafarnaum, cidade onde Jesus foi morar, ao iniciar sua missão (Marcos 1,21-28). A lei imposta pelos escribas na sinagoga e no templo, além de ser um peso na vida das pessoas (cf. Mateus 23,1-4; Lucas 13,10-17), impedia que se pensasse e agisse orientado pelo Espírito de Deus. Pois, no dizer de Paulo,“a letra mata, o Espírito é que dá a vida” (2Coríntios 3,6). Por isso, Jesus salva as pessoas dessa força demoníaca que cria dependência e não liberta.
“Logo que saíram da sinagoga, foram com Tiago e João para a casa de Simão e André” (Marcos 1,29). Convém lembrar que, mais do que frequentar o templo, Jesus prefere as casas, prefere o encontro com povo nos caminhos. Ali, todas as pessoas têm acesso ao encontro com Deus. No templo, só podiam entrar os sacerdotes.
Esta narrativa relata a segunda cura de Jesus, conforme Marcos. Agora, é a sogra de Simão que está doente (Marcos 1,30). Logo que soube, dirigiu-se à cama em que ela estava. Três coisas chamam a atenção. 1) “Ele aproximou-se” (Marcos 1,31). Mais que procurar quem é o próximo, Jesus se torna próximo. 2) “Tomando-a pela mão”, Jesus faz algo fundamental para quem trabalha com pessoas doentes e com quem está na exclusão. Valorizando o toque, o abraço, Jesus valoriza sobremodo as pessoas debilitadas. 3) Jesus “levantou-a”. Enquanto estava deitada, essa mulher não podia ser sujeito com agir próprio. Dependia de outras pessoas. Colocá-la em pé faz dela uma diácona, uma pessoa livre para servir. “E ela se pôs a servi-los”.
Convém lembrar que, se em Marcos a primeira pessoa curada foi um homem (Marcos 1,21-28), a segunda foi uma mulher. Jesus tratava as mulheres com a mesma dignidade com que se relacionava com os homens. Assim como tinha discípulos, tinha também discípulas. Quando Marcos menciona as mulheres que foram com ele até a cruz, cita Maria Madalena, Maria e Salomé, além de muitas outras mulheres que o seguiam, serviam e subiram com ele para Jerusalém como verdadeiras discípulas (cf. Marcos 15,40-41).
E o que nos resta senão também colocar-nos em pé e, com a força do Espírito de Jesus ressuscitado, tornar-nos pessoas livres para servir?
A prática de Jesus liberta de doenças e de possessões (1,32-34)
Naquele dia, depois do pôr do sol e junto à porta da casa de Simão e de André, Jesus ainda curou muitas pessoas enfermas e expulsou demônios, isto é, forças contrárias a Deus e que diminuem a vida de quem está sob seu domínio. As duas curas realizadas anteriormente, a do homem possesso e a da mulher enferma, são símbolos de toda prática libertadora de Jesus. E é prática que não para. Mesmo o sol já posto, Jesus continua libertando pessoas enfermas e endemoninhas.
A proibição de "falar, pois sabiam quem ele era" (Marcos 1,34) faz parte da intenção teológica de Marcos. Ele quer evitar a ideia de Jesus como um messias triunfalista, para reforçar a fé em Jesus como o ungido pelo Espírito de Deus (Marcos 1,10) que vence, aos poucos e de forma humilde como o servo sofredor, as forças contrárias ao espírito do Reino. Por isso, Marcos apresenta Jesus insistindo em que não se divulgue o seu messianismo aos quatro ventos. A proibição se estende aos demônios (Marcos 1,25.34; 3,12), às pessoas curadas (Marcos 1,44; 5,43; 7,36; 8,26) e a seus apóstolos (Marcos 8,30; 9,9), reservando essa revelação somente para o momento da cruz e pela boca de um estrangeiro: "Na verdade, este homem era Filho de Deus" (Marcos 15,39).
Senhor, Deus da vida,
ajuda-nos a acolher a tua graça que cura e liberta das enfermidades,
dos desejos egoístas e do consumismo individualista.
Ó Deus, livra-nos dessas forças que nos seduzem
e arrastam como possessão demoníaca,
forças que nos dominam e impedem de sermos pessoas livres
para, como criaturas novas, colaborar contigo
no serviço ao teu Reino de justiça, a exemplo da mulher que curaste.

De onde vem as forças para a nova prática de Jesus? (1,35-39)
Depois de um dia de atividades salvadoras e que vão noite adentro, Jesus descansa para estar com as energias renovadas para mais um dia de serviço à vida. Mas não basta novo vigor físico. Algo mais profundo é necessário.
Por isso, ainda de madrugada, Jesus se retira para um lugar deserto e ali cultiva sua íntima comunhão com o Pai, o Deus libertador do Êxodo. É que vai ao deserto, lugar por onde Deus guiou seu povo para a liberdade e "lá, ele orava" (Marcos 1,35).
A comunhão com o Pai é o segredo da força de Jesus na solidariedade com as pessoas mais desprezadas de sua época, entre elas as doentes e as possessas por todas as forças de alienação e que não permitem que sejam sujeitos de suas vidas. A intimidade com o Pai, essa espiritualidade de comunhão profunda com o sagrado, faz de Jesus uma pessoa radicalmente livre. A oração é a fonte onde Jesus bebe do mais puro Espírito que sustenta sua ação emancipadora junto às pessoas em estado de dependência, seja em relação às enfermidades, seja em relação às forças que nos alienam, impedindo-nos de sermos filhas e filhos livres e com dignidade.
Ó Deus,
concede-nos a graça que permite esvaziar-nos do espírito individualista,
das forças que geram discórdia, exclusão e sofrimento.
Senhor, que teu Espírito libertador do deserto nos transforme e impulsione,
tal como moveu Jesus de Nazaré,
ao ponto de sermos sempre mais semelhantes a ti,
pessoas livres para o serviço da vida,
da cura e de tudo que domina como possessão em nossas mentes e corações.
Amém!
Ildo Bohn Gass