A Comunhão está inscrita no
coração de todas as coisas.
(Dt
4,32-34.39-40; Sl 32/33; Rm 8,14-17; Mt 28,16-20)
A festa de hoje
nos convida a celebrar o mistério amoroso do Deus no qual cremos. Como pessoas
de fé alimentamos um pretensioso desejo de conhecer Deus e falar sobre ele.
Pretensão ou ingenuidade? Deus está assim claramente à disposição da nossa
ânsia de conhecer, dominar e manipular?
Anselm Gruen nos adverte que “muitos falam de Deus como se soubessem de
tudo. Mas estes conversam apenas sobre conceitos. Não é um Deus que os toque
por inteiro, que tenha sido experimentado por eles. Muitas vezes esse falar
objetivo de Deus é até mesmo uma defesa contra a verdadeira experiência de
Deus". Para falar de Deus corretamente é preciso falar a partir da
experiência, começando e terminando com o louvor reverente, humilde e
agradecido: Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, como era no princípio,
agora e sempre. Amém!
“É ele o nosso auxílio e onosso escudo.”
A teóloga
Dorothée Sölle escreveu, em tom confidencial e provocativo: “Falar de Deus, é isso que eu quero e onde
sempre fracasso. É isso que estou tentando fazer há muitos anos na língua das
mulheres, na língua dos injustiçados e dos sofridos, na língua da minha
tradição que eu amo e que inicia em Isaías e não termina com a Idade Média. E,
quase sempre, dá errado esse meu falar de Deus.” Deus é sempre maior que nossas
palavras, experiências e reflexões. Ele não cabe dentro dos nossos discursos.
Deus é um dos
arquétipos mais fortes e influentes da vida humana. Os arquétipos são imagens e
valores que mexem com o ser humano em sua profundidade: ordenam ou confundem,
escravizam ou libertam. Em geral, vemos a Deus como vemos a nós mesmos. Quando
nossa imagem de Deus está doente ou deformada acabamos deformando-nos e
adoecendo. Quando desconfiamos muito de nós mesmos e vivemos sempre com a
impressão de estarmos errados, acabamos imaginando um Deus observador e
desconfiado, sempre pronto a pedir provas e julgar o ser humano.
Os testemunhos
escritos pelo povo de Israel nos revelam uma permanente tensão entre, por um
lado, o desejo de objetivar Deus em fórmulas, ritos, leis, imagens e lugares e,
por outro, a reserva diante de um Deus que não se deixa apreender e habita nos
céus, que se mostra em ações concretas mas transcende a tudo. Entretanto, em
sua essência, Deus se revela como auxílio bondoso e libertador, pai dos pobres
e indefesos tipificados nos estrangeiros, nos órfãos e nas viúvas.
“senhor, esteja sobre nós a tua graça,
do modo como em ti esperamos.”
Falar
corretamente de Deus significa falar corretamente do ser humano, ver a pessoa
humana na luz certa e verdadeira. Por isso precisamos ter muito cuidado e pudor
em nossos discursos sobre Deus. E a festa da Santíssima Trindade quer sublinhar
substancialmente que a imagem correta de Deus não é a de um seujeito solitário,
absoluto, onipotente e onisciente, mas uma imagem que lembra comunhão no amor, convergência no ser-para-os-outros, identificação na
abertura e na acolhida.
Deus é o arquétipo da perfeita comunhão, uma
comunhão na qual cada um recebe tudo do outro e se faz dom radical para o
outro: o Pai entrega tudo ao Filho exceto sua paternidade, e se entrega
inteiramente no Espírito como fonte de vida às suas criaturas; o Filho dá tudo
ao Pai e se entrega a nós no Espírito Santo, no mesmo espírito de doação; o
Espírito Santo é puro dom, força e dinamismo que sustenta o dom recíproco entre
o Pai e o Filho e a entrega de ambos na paixão pelo mundo.
Esta comunhão
na acolhida e na doação amorosa de si é também a vocação dos filhos e filhas de
Deus, de todas as criaturas. Nossa vocação primordial não é ser fragmento ou
indivíduo solitário, vencedor que triunfa sobre uma multidão de derrotados e
vencidos. Somos visceralmente
constituídos para a comunhão, para uma comunhão permanente e total com
nossos semelhantes e com todas as criaturas. Não a competição mas a comunhão é
a realidade original e a vocação fundamental das criaturas.
“Ele ama o direito e a justiça, da sua
bondade a terra est cheia.”
Nossa primeira
atitude diante do Mistério de comunhão
que é a essência de Deus e das criaturas, antes do espanto reflexivo, é a
adoração agradecida. “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, como era no
princípio, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém!” A experiência de um amor que nos precede e ultrapassa,
nos envolve e penetra, nos abre e plenifica, nos diminui e exalta, nos conhece
e escolhe, que enche os céus e a terra,
é, antes de tudo, um irresistível convite à oração.
Adoração é a atitude própria de quem se descobre pequeno/a e
impotente, ao mesmo, destinatário/a de um amor imerecido que o/a faz capaz,
digno/a e grande. Assim, quando os discípulos estão diante de Jesus
ressuscitado, ajoelham-se reverentes e obedientes. Esse Mistério de Comunhão e de Bondade que afirma nossa própria e
indestrutível dignidade, nos põe de joelhos, eleva nossas mães, abre nossos
lábios e nos faz exclamar “Glória!”
Glorificar significa honrar e fazer brilhar. E
nós glorificamos a Deus porque ele mesmo nos glorifica, dando-nos o título de
filhos e filhas honrados/as, conferindo-nos um explendor que nos assemelha a
ele. Glorificamos a Deus quando
desfazemos as imagens ameaçadoras que o identificam com um ditador onipotente,
um juiz implacável, um doutor onisciente e um ser sem coração e proclamamos
com a boca e com a vida sua misericórdia, sua compaixão e seu amor pela justiça
e pelo direito.
“Ide, pois, fazer discípulos entre todas
as nações...”
Já nos
primeiros séculos do cristianismo, Santo Irineu intuía e ensinava: “A glória de
Deus é o ser humano vivo e a vida do ser humano é a visão de Deus.” Uma correta
visão de Deus é semente de vida, e uma visão distorcidade de Deus é veneno
mortal, para nós mesmos e para os outros. Em outras palavras, a experiência
mística do amor de Deus nos envolve necessariamente na missão de amar e de promover
a vida plena das criaturas de Deus.
Iluminados e
regenerados pelo Espírito Santo, os discípulos descobrem-se chamados e
enviados: “Vão e façam com que todos os
povos se tornem meus discípulos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo e ensinando-os a observar tudo o que ordenei a vocês.” É uma
missão a todas as nações, que desconhece fronteiras e muros que dividem. É
também uma missão inadiável e em rota de colisão com as prioridades impostas
pelos impérios. É uma missão centrada na
prática do amor.
A comunhão é a
origem e, ao mesmo tempo, a meta da missão. O batismo que se segue ao ensino é
a assinatura de uma nova lealdade, não mais aos doutores da lei e ao imperador
e seus acólitos, mas ao Deuns Uno e Trino, à Divina Comunhão, da qual a Eucaristia é sacramento e
celebração. Essa lealdade ao Arquétipo
de Comunhão presente em nós como vocação é tudo o que Jesus ensinou e ordenou
aos discípulos: o mandamento do amor.
“E, se somos filhos, somos também herdeiros...”
Somos filhos e
filhas do universo, irmãos e irmãs devedores às estrelas, à luz, ao ar e à
terra, pois todos esses elementos habitam e cooperam em nós. É mais ou menos
isso que Paulo lembra quando diz que somos filhos e herdeiros de Deus em Jesus Cristo. Somos
filhos e filhas da comunhão que coopera em todas as coisas, herdeiros de uma
comunhão a ser resgatada e potencializada. “Todos os que são guiados pelo
Espírito de Deus são filhos de Deus.”
Quem é filho/a
de Deus e tem a comunhão no seu DNA descobre-se liberto/a da necessidade
escravizadora de ser o/a primeiro/a e o/a maior, do medo que leva a dominar e escravizar
os outros. A pessoa que é guiada pelo Espírito de Deus e se descobre filha que
recebeu tudo dos outros, adquire consciência de que traz estampada no seu rosto
a imagem da Comunhão Trinitária e de
que pertence a uma famíla cujas fronteiras desconhece.
Deus amável, mistério
de comunhão sem limites, regaço de onde
partimos e para onde desejamos retornar: envia teu Espírito para que ele grite
em nós, nos ensine a anuncar que és pai e mãe, nos ajude a
proclamar que todas as criaturas são nossas irmãs. Abre, Amor paterno, materno
e fraterno, o nosso ser profundo à ação do teu Espírito de comunhão, a fim de
que ele nos transforme em pessoas livres e solidárias, agentes da liberdade no
mundo, anunciadoras e criadoras fecundas da comunhão que associa todas as
criaturas e faz brilhar nelas o teu
insondável mistério de comunhão. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani
msf