sábado, 19 de maio de 2012

Miriam de Nazaré (2)


Este texto é uma continuação da reflexão publicada no último sábado, e faz parte do primeiro capítulo (“perfil histórico-bíblico de Miriam de Nazaré”) do ensaio do professor Bertilo Brod, “Miriam de Nazaré: mulher-ícone cheia de graça e pedagoga da libertação”. A reflexão prosseguirá na próxima semana (ao todo, serão 15 partes).



1.1  Etapa paulina e marciana
Analisemos, brevemente, os principais testemunhos de cada etapa para decodificar o perfil bíblico de Miriam de Nazaré.
Ainda que Paulo mencione a mãe de Jesus de maneira indireta e incidental na epístola aos Gálatas (4,4),  trata-se, na verdade, do testemunho bíblico mais antigo a respeito de Miriam de Nazaré[i]: “Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a Lei, para remir os que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial” (Gl 4,4-5).
Na análise lingüístico-estrutural, sobressaem as expressões: “plenitude dos tempos”, “enviou Deus o seu Filho”, “nascido de uma mulher”, “para remir os que estavam sob a Lei” e “adoção filial”. A primeira (“plenitude [em grego: pleroma] do tempo”) não significa somente o cumprimento cronológico do evento, mas sua densidade escatológica, o momento em que o tempo preestabelecido se cumpriu, isto é, não tanto o “centro cronológico” da história quanto seu “centro escatológico”, “o valor ultimativo, definitivo, de todos os tempos, o coração do mistério, em relação ao qual tudo se mede e se estabelece em sua verdadeira consistência em todos os tempos” (FORTE, 1991, p. 45).
Neste “centro escatológico”, ocorre o “envio” do Filho de Deus. O esquema do envio, familiar no Novo Testamento (cf. Rm 8,3s; Jo 3,16; 1Jo 4,9), confere fundamento à plenitude escatológica do tempo, superando a distância entre o mundo de Deus e o dos homens, por um gesto de gratuidade divina. O enviado do Pai nasceu de uma mulher (em grego: “genómenon ek gynaikós”), mostrando a fragilidade e baixeza da criatura humana no tempo da espera e a humilhação à qual se submeteu o Filho de Deus (cf. Fl 2,5-8) para libertar o escravo da lei e dotá-lo com a outorga da “filiação divina”.
Significativa é também a estrutura literária desta perícope paulina. À ação do envio do Filho, seguem a modalidade 1: nascido de uma mulher, e a modalidade 2: sujeito à lei, e a finalidade 1: libertar da lei, e a finalidade 2: conferir a adoção filial. É fácil ver os nexos e a composição quiasmática destes componentes lingüísticos. As modalidades 1 e 2 estão em evidente paralelismo porque ambas estão introduzidas pelo particípio do aoristo “nascido” (genómenon). Também as finalidades 1 e 2 são entre si paralelas, em virtude da mesma preposição final “para” (hína). Por outro lado, estão em correlação antitética a modalidade 2 e a finalidade 1 (“nascido sob a Lei” e “para remir os que estavam sob a Lei”), bem como a modalidade 1 e a finalidade 2 (“nascido de mulher”: abaixamento, e “a fim de que recebêssemos a adoção filial”: elevação). Por fim, existe cruzamento e correlação entre o “envio” do Filho e a outorga da “filiação divina”, revelando o dinamismo de todo o texto. Esta estrutura redacional revela dois paradoxos: aquele que nasce sob a Lei redime da Lei, e aquele que vem em estado de humilhação eleva o homem à condição de filiação divina (em grego: hyiotesía).
Em sua profunda sobriedade e densidade, o texto paulino sinaliza para uma verdadeira reviravolta da história, um novo início do mundo, realizando a hora escatológica pela missão confiada pelo Pai ao seu Filho. Este novo “gênesis” foi possível e intermediado pela maternidade humana de uma “mulher”, colocada, assim, no “centro escatológico” da história como a criatura mais próxima do coração do mistério da encarnação do Filho de Deus. Jesus é o “homem de Nazaré”, um homem como nós, histórico, limitado, porque nasceu de uma “mulher”, da Miriam de Nazaré. A sobriedade da referência paulina à “mulher” se revela, na verdade, rica em significado e singular densidade, pois, com Paulo, se inicia a união da mariologia com a cristologia, passível de controvérsias e diferentes hermenêuticas. O enunciado dos versículos de Gl 4,4-5, embora não tenham sido satisfatoriamente analisados por muitos teólogos e exegetas de ontem e de hoje, constituem, ao nosso ver, um dos textos mariologicamente mais significativos do Novo Testamento.
Já vimos, num sumário acima, que, no evangelho de Marcos, existem dois relatos referentes à mãe de Jesus, de certa forma denegridores da imagem dela. Os textos são: Mc 3,31-35 e Mc 6,1-6. Sem proceder a uma exaustiva exegese das duas perícopes, deter-nos-emos nos informes que se referem diretamente ao círculo familiar de Jesus e de sua mãe. É sabido que o conceito “família”, na antiga Palestina e em todo o antigo mundo mediterrâneo não corresponde à idéia de família nuclear das sociedades modernas. O forte senso de pertença familiar polinuclar marca a vida dos sujeitos que formavam sua identidade em função da segurança comunitária que a família lhes proporcionava.
Neste núcleo familiar de Jesus, estão nomeados expressamente a mãe (Miriam), quatro irmãos (Tiago, Joset, Judas e Simão) e irmãs (sem nomes) de Jesus. É digno de registro que neste círculo familiar não apareça a figura de José, pai de Jesus. A razão mais plausível e tradicional é que José já havia morrido antes do início do ministério público de Jesus. Contudo, não deixa de causar estranheza o fato de Jesus ser apresentado como o “filho de Maria” (Mc 6,3). A expressão é insólita e única no Novo Testamento, pois os textos paralelos de Mateus (13,55) e de Lucas (4,22) falam respectivamente do nazareno como “filho do carpinteiro” e como “filho de José”. A expressão “filho de Maria” soa estranha aos ouvidos de um judeu numa sociedade marcadamente patriarcal, onde o nome da pessoa era conferido em referência ao pai. Certamente, o evangelista não faz alusão à concepção virginal, hipótese aventada por alguns exegetas. Além da teoria já acenada da morte de José, não é de se excluir o recurso ao “segredo messiânico”, característico do evangelho de Marcos, em virtude do qual o autor sublinharia a humilde e obscura condição humana de Jesus[ii]. O texto de Mc 6,1-6, no que diz respeito à Miriam de Nazaré, deixa transparecer que ela estava incluída na animosidade que cercava seu filho entre seus contemporâneos. Significa que ela vivia à sombra de Jesus, não sendo poupada pela incompreensão, hostilidade e juízo que dele faziam.
Nesta mesma linha de reflexão, fica inteligível a perícope de Mc 3,31-35, em estreita conexão com o versículo 21 deste mesmo capítulo: “E quando os seus tomaram conhecimento disso, saíram para detê-lo, porque diziam: ‘enlouqueceu’”. A mãe de Jesus está incluída entre aqueles “seus” (em grego: hoì par’autoù) que queriam detê-lo (verbo kratéô). A expressão “enlouqueceu” não alude necessariamente à insanidade mental, e sim, a um comportamento estranho que provoca estupor e admiração. Emerge, portanto, a idéia de que os “seus” familiares, incluída sua mãe, foram para moderar Jesus. Este, porém, os convida a entrarem na sua lógica, não igual às lógicas humanas: “Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mc 3,35). A família carnal deve dar lugar à família escatológica.
O episódio revela um traço profundamente humano da mãe, solícita pela sorte e atitudes de seu filho. Estamos diante de um precioso dado histórico pré-pascal, próprio de Marcos, que dá testemunho da humanidade materna de Miriam e de seus humildes laços de parentesco e que a coloca claramente num itinerário de progressividade na compreensão da missão e obra do seu filho. Vale dizer: Miriam de Nazaré palmilhou as veredas da fé num crescendo de intensidade e adesão, plenificadas na releitura pascal.
Nestes laços de parentesco estão incluídos os irmãos e as irmãs de Jesus (cf. Mc 6,3). São estes irmãos e irmãs de Jesus primos, meio-irmãos ou irmãos legítimos e biológicos? A história da interpretação deste problema é longa, sendo extremamente penoso peneirar os dados para chegar a uma conclusão a mais provável possível. Do ponto de vista rigorosamente filológico e histórico, a opinião mais provável é a de que estes irmãos e irmãs de Jesus eram irmãos legítimos, tomando em consideração os dados concretos do Novo Testamento, onde não existe um único caso em que “irmão” (em grego: adelphós) signifique claramente “primo” ou mesmo “irmão por afinidade ou parentesco”. É este o sentido natural de “adelphós” nos escritos de  Paulo, Marcos e João. Mateus e Lucas, aparentemente, seguiram e desenvolveram este sentido. O testemunho de Paulo é particularmente importante porque ele não escreve sobre eventos passados. Fala de Tiago como o “irmão do Senhor”, em Gl 1,19, e dos “irmãos do Senhor”, em 1Cor 9,5, como de pessoas que conheceu e com os quais conviveu, pessoas que ainda viviam quando ele escreveu. Se quisesse falar de “primos”, teria, sem dúvida, utilizado a palavra notória no grego do Novo Testamento para este grau de parentesco, isto é, “anepsiós”, tal como aparece na epístola dêutero-paulina aos Colossenses (cf. Cl 4,10). Voltaremos ao tema ao ensejo da abordagem da virgindade da Miriam de Nazaré.
Bertilo Brod

[i] A datação da epístola é incerta: ou em 49 d.C. (teoria sul-galática: os destinatários seriam os habitantes da província romana da Galácia; portanto, as Igrejas fundadas por Paulo em sua primeira viagem missionária, conforme lemos em At 13,14 — 14,23, isto é, as localidades de Antioquia da Pisídia, Icônio, Listra e Derbe), ou em torno do ano 56 d.C. (teoria norte-galática: os destinatários, neste caso, seriam os habitantes de Ancira, Possinonte e Távio, distritos da Galácia propriamente dita, visitados por Paulo em sua segunda viagem e novamente no início da terceira, de acordo com At 16,6; 18,23).
[ii] É a solução sugerida na obra ecumênica Maria no Novo Testamento, organizada por Raymond E. Brown et al. (São Paulo: Paulinas, 1986).

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