A Palavra de Deus
denuncia as injustiças e promove a igualdade.
(Am 6,1.4-7; Sl 145/146; 1Tm 6,11-16; Lc
16,19-31)
A natureza e as mudanças no clima
nos lembram que a primavera devagarinho vai chegando ao hemisfério sul. No
hemisfério norte, o que se abre é o outono, que para alguns é tempo de colheita
e de festa. Para outros, tudo e sempre é festa, mesmo em tempo crises globais,
pois, para eles, estas são oportunidades de enriquecimento maior e mais rápido.
Os banqueiros, promotores e beneficiados da crise financeira que se prolonga
desde 2009, que o digam. Entre as elites financeiras globais e o povo se cavou
um abismo que nem as montanhas de jornais repletos de desculpas evasivas e
cínicas podem encher. Concluindo o mês da Biblia, não podemos esquecer que,
como diz Bento XVI, “a Palavra de Deus denuncia, sem ambiguidade, as injustiças
e promove a solidariedade e a igualdade.” E isso também em âmbito global. Por
isso, pede o papa emérito, reconhecendo os sinais dos tempos, “não nos furtemos
ao compromisso em favor de quantos sofrem e são vítimas do egoismo” (Verbum Domini, 100).
“Procura a justiça e a piedade, a fé, a caridade, a
constância, a mansidão...”
Precisamos sempre de novo nos interrogar:
o que estamos mesmo buscando na religião? Vários estudos sérios mostram como as
pessoas simples, e não só elas, são atraídas pelos fenômenos fantásticos e
miraculosos. A multiplicação de novenas e promessas, assim como o crescimento
das peregrinações ao encontro do enésimo curandeiro ou milagreiro o comprovam.
Por trás disso está a insegurança na qual vive boa parte do nosso povo, mas
também a sedução exercida por tudo o que cheira a milagre.
E há também aqueles que buscam a
religião como sustentação dos interesses e projetos de dominação, desde os
homens que buscam argumentos para seu machismo decadente até os políticos que
caçam desesperadamente apoio para suas carreiras. Mas não esqueçamos também a
erva daninha do sucesso que lança raízes em não poucas pessoas que se consagram
a Deus e se apresentam para exercer o ministério em nome dele. (Nesse contexto
os padres popstars prestam um péssimo
serviço.)
Na carta a Tmóteo proposta pela
liturgia deste domingo Paulo pede bem outra coisa. “Tu que és um homem de Deus,
procura a justiça e a piedade, a fé, a
caridade, a constância, a mansidão. Combate o bom combate da fé...”
Trata-se de juntar a piedade à prática da justiça, de unir a solidariedade à
fé, de casar a mansidão com a perseverança no seguimento de Jesus Cristo, único
e soberano líder que pode nos guiar a um mundo justo, fraterno e liberto.
“Ai dos que se deitam em camas de marfim, indiferentes
ao sofrimento de José...”
No evangelho deste domingo, Jesus
continua nos alertando em relação ao risco da aparência, do dinheiro e do
poder. Ele polemiza com os fariseus, mas sua atenção está voltada aos
discípulos/as. A fé na sua Palavra e a
adesão aos seus ensinamentos deve mudar e qualificar nossa relação com os bens
e com os pobres. Uma fé vivida unicamente como remédio para nossos males
individuais ou como combustível para uma carreira de sucesso tem pouco a ver
com Jesus Cristo.
O fato é que, tanto no tempo do
evangelista como hoje, frequentemente há
um abismo, tanto real quanto ignorado, que separa as pessoas que frequentam a
mesma comunidade. É isso que aparece na parábola proposta por Jesus: há um
rico que se veste elegantemente e dá explêndidas festas todos os dias; e há um
pobre coberto de feridas, devorado pela fome, rodeado de cachorros e sentado na
calçada, em frente à porta da casa do rico e absolutamente invisível a
irrelevante para ele.
Esta é uma triste imagem de um Brasil ainda dividido pela
miséria e pela injustiça, apesar dos esforços dos governos e outras
instituições. É também um retrato de um
mundo cínico e injusto, dividido entre um punhado de países opulentos e uma
maioria de países empobrecidos. O profeta Amós dirige duras palavras aos
primeiros: dormem em camas de marfim, comem manjares suculentos e bem vinhos
finos, usam perfumes caros dedilham instrumentos musicais, mas são indiferentes às dores do povo.
“Pai Abraão, tem compaixão de mim!...”
Mas no centro da vida cristã está deve estar a compaixão pelos pobres,
e não a indiferença e a busca do próprio bem-estar. O caminho entre a porta e a
mesa deve ser amplo e aberto. Não é possível cortar a relação entre a fé e a
justiça. Jesus não aceita a indiferença dos ricos frente à (má) sorte dos
pobres. Sua Palavra é clara e contundente: “Ai de vós, os ricos, porque já
tendes vossa consolação!” (Lc 6,24). Ele insiste que os pobres e os sofredores
devem ocupar os primeiros lugares na lista de convidados para as e celebrações
(cf. Lc 14,13). Mas, ainda hoje, não se permite que Lázaro vá além da porta do
rico...
Soa estranho, para não dizer cínico,
o pedido de compaixão do rico em meio aos tormentos. Mesmo na tragédia pessoal,
ele continua achando que os pobres devem
estar a seu serviço: bem que eles poderiam molhar sua língua para aliviar a
sede ou avisar seus parentes para livrá-los a tempo dos males que os esperam...
Não pode não ser cinismo este apelo para que os pobres tenham compaixão dos
ricos que sempre se vestiram de indiferença e prepotência.
“Manda preveni-los, para que não venham também eles
para este lugar de tormento.”
O caminho para o céu é feito de terra! E aqui é preciso lembrar que a indiferença corta a comunicação, destrói
as pontes, cava abismos e fere de morte a colaboração solidária entre as
pessoas. Será que a simples participação numa celebração religiosa, num
comício político ou numa festa civil pode criar relações entre pessoas e grupos
que, fora destes espaços, se ignoram, enfrentam ou exploram? Será que a água
benta ou o cântico melodioso pode congregar aqueles que a indiferença separa?
É lamentável que muitos
pregadores/as caiam na armadilha de uma leitura fácil e preconcebida, e proponham
esta parábola de Jesus como uma espécie fotografia da inversão que a morte
provocaria na vida real. Jesus não está querendo falar da felicidade que espera
os sofredores no paraíso ou do sofrimento destinado aos ricos depois da morte. O que ele quer enfatizar é o caráter
decisivo e irreversível das opções que fazemos e das práticas que desenvolvemos
no tempo presente.
É incrível como também hoje,
imitando os fariseus do tempo de Jesus, tantas pessoas que se apresentam como
piedosas queiram simplesmente irgnorar as palavras e ações proféticas que a
Bíblia nos propõe. Muitas passam ao largo da fraqueza e da compaixão de Deus na
cruz e buscam sinais milagrosos e piedosos. Mas não há outro sinal senão o de Jonas,
ou seja: a conversão a um Deus despojado por amor (cf. Lc 11,29-32). Este é o
único caminho digno de um discípulo de Jesus Cristo!
“Eles têm Moisés e os profetas. Que os escutem!”
Na vida cristã autêntica não há lugar para privilégios, nem para milagres fáceis. O caminho cristão é
pavimentado pela escuta da Palavra de Deus e pela conversão. Jesus se demora na
descrição das tentativas infrutíferas do homem rico para reverter uma situação
irreversível: ignorar o abismo que ele
mesmo cavou e pedir que lhe tragam água para amenizar a sede; e enviar um morto
ressuscitado para convencer seus parentes da necessidade de mudar de atitude.
Mas parece que não há sinal poderoso ou milagre esplendoroso capaz de
tocar o coração e a mente de quem se fechou em si mesmo/a e faz da indiferença
uma couraça protetora. Nada pode curar aqueles/as que se fecharam hermeticamente à Palavra e
ao testemunho dos profetas, dos apóstolos e do próprio Jesus. Moisés soube
escutar os clamores do seu povo, compartilhar suas dores e seus anseios de
liberdade. Os profetas não fizeram outra coisa que lembrar e reivindicar o
direito divino dos pobres. E Jesus se fez do pobre, companheiro e servidor,
situando-se no meio dos últimos, inclusive na cruz.
Não adianta apelar para privilégios.
Deus desconhece qualquer privilégio fora
da prioridade absoluta dos pobres. De nada serve protestar dizendo, ao modo
de cobras venenosas e traiçoeiras: “Nosso pai é Abraão!” (Lc 3,8). Ou então:
“Comemos e bebemos na tua presença, e tu ensinaste em nossas praças.” É preciso escutar a fundo a voz da consciência,
na qual ressoa a Palavra de Deus escrita no livro sagrado: “Não sei de onde
sois. Afastai-vos de mim todos vós que praticais a injustiça” (cf. Lc
13,22-30).
No final deste mês da Bíblia digamos
com todo o nosso ser: “Fala, Senhor! Fala
da Vida! Só tu tens palavras eternas, e nós queremos ouvir. São tantos os
apelos que vêm dos oprimidos. Tu és quem liberta, o Deus dos esquecidos.
Ajuda-nos a vencer a indiferença que cava abismos entre pessoas que nasceram
para ser irmãos e irmãs. Ensina-nos a acolher aquilo que nos dizes através dos
profetas e santos/as de ontem e de hoje. E que tua Palavra seja sempre a luz
dos nossos passos. Amém!”
Pe. Itacir Brassiani msf