“Conhecer as manhas e as manhãs”: o horizonte e as
prioridades da vida religiosa consagrada do Brasil
No processo participativo que culminou na Assembleia Geral de 2022, as
consagradas e consagrados do Brasil definiram o horizonte que os iluminará, atrairá e guiará no triênio 2022-2025:
“Nós, consagradas e consagrados no Brasil, na busca de ressignificar a Vida
Religiosa Consagrada no discipulado de Jesus Cristo, em sinodalidade,
missionariedade e contínua conversão, à luz da Palavra de Deus, somos convocadas
e convocados a permanecer no Seu amor, escutar e responder, com esperança, os gritos
e os clamores de nosso tempo, para tornar visível o Reino de Deus”.
Na verdade, a prática cotidiana nos ensina que o horizonte não é
resultado da nossa definição, mas é em relação a ele que compreendemos a nós
mesmos e discernimos os caminhos que nos levam a ele. De certa forma, é ele que
nos define. Nossa tarefa histórica é, nas palavras do poeta, “conhecer as
manhas e as manhãs”, a luz que se divisa no horizonte e as manhas para não
perder o rumo e o ritmo, pois cumprir a tarefa de viver humanamente requer “conhecer
a marcha e ir tocando em frente”.
Nestas linhas despretensiosas queremos propor uma
reflexão explicativa e sincrônica do horizonte que a Conferência dos Religiosos
do Brasil traçou para o triênio 2022-2025. Nossa interpretação parte do texto
em si mesmo e estabelece relações com algumas passagens bíblicas às quais faz
referência implícita e que podem ajudar a compreendê-lo. Nosso objetivo é mais
a animação da caminhada que a discussão teórica.
O que o Senhor
está pedindo hoje à vida religiosa consagrada do Brasil?
É importante começar
perguntando qual é o apelo de Deus captado e acolhido pela vida consagrada no
Brasil. E a resposta é “permanecer no Seu amor” e “escutar e
responder, com esperança, os gritos e os clamores de nosso tempo”. A conjugação
desses dois chamados, que ressoam com igual intensidade aos ouvidos dos
consagrados e consagradas e são por eles acolhidos com semelhante urgência
evita deslizes à direita ou à esquerda, e, ao mesmo tempo, contorna a tentação
do refúgio numa espiritualidade desencarnada e superficial ou da diluição num
ativismo social vazio e estéril.
Quando o
contexto no qual emerge a experiência da insegurança nos convida a evitar o
caminho do dom pleno e generoso de si, do pão da vida repartido sem regateio, do
lava-pés e da cruz, a vida religiosa consagrada do Brasil percebe que o Senhor
a chama a permanecer com ele, a fazer o que ele fez e ir até onde ele foi. Isso
fica claro na referência indireta ao texto de João 15,1-17, situado no tenso e
intenso diálogo exortativo de Jesus com seus discípulos desconcertados pelo
gesto da ceia e do lava-pés e pelo anúncio da paixão e morte de Jesus.
Permanecer no
Senhor significa pôr em prática o mandamento de amar como ele amou, de deslegitimar
toda e qualquer desigualdade ou superioridade em termos de valor e de
dignidade, e de mostrar o alcance do nosso amor entregando livre e
generosamente a vida por quem amamos. Não se trata de salvar a própria vida,
mas de dar a vida pelas vidas, pois todas as vidas interessam a Jesus e devem
interessar também aos cristãos, mais ainda aos que se consagram a ele.
Por trás do
apelo do Senhor a “escutar e responder, com esperança, os gritos e os clamores
de nosso tempo”, ressoa a experiência paradigmática de Moisés, narrada no livro
do Êxodo 3,1-17. Diante da quase incurável surdez de Moisés, que o medo fizera
desertar e buscar refúgio e segurança na casa do sogro, Deus irrompe de modo
inesperado e quase violento na sua vida cômoda e estreita.
Dizendo que
ouviu os clamores e viu os sofrimentos dos hebreus escravizados no Egito, o
Senhor interpela Moisés a não dar as costas, a não fechar os olhos e os ouvidos
e a não passar ao largo daquilo que fere seus irmãos e irmãs. E não apenas
isso! Dizendo que desceu para fazer o povo subir, Javé envia Moisés para conduzir
esse movimento de libertação, para dar uma resposta em nome de Deus, para
colocar em prática a resposta do próprio Deus. É como se dissesse, como Jesus
dirá mais tarde: “Vá tu e faz o mesmo! Dá-lhes tu mesmo de comer!” (cf. Lc
10,37; Mt 14,15)
É claro que,
diante das vozes contrastantes que ressoam em nossas redes, telas e praças, da
complexidade da situação dos nossos povos e da dificuldade de dar respostas
inovadoras, somos atraídos pela doce sedução de buscar refúgio nos ritos e fórmulas
tão vazias quanto inócuas, e de permanecer na aparente segurança das nossas
casas e cargos, longe do fogo que arde e da Palavra que abrasa. Para
sobreviver, parece-nos mais lógico e oportuno esfriar o coração e estacionar em
terrenos seguros.
Mas a santa Palavra nos adverte e guia. Não há como corromper a Deus com
os belos presentes dos nossos ritos. A oração e o culto de quem se faz
indiferente aos clamores dos vulneráveis não chega aos ouvidos de Deus. “Quem
tapa os ouvidos ao clamor do fraco também não terá resposta quando clamar” (Pr
21,13). As dores dos pobres e desamparados são as dores de Deus. “Ele não
despreza a súplica do órfão, nem da viúva que apresenta suas queixas. Será que
as lágrimas da viúva não descem pela sua face, e se clamor não se levanta
contra quem a faz chorar?” (Eclo
35,14-15).
O que busca a vida religiosa consagrada no Brasil?
No encontro de Jesus com os primeiros
discípulos, que haviam tomado distância de João Batista por orientação dele
mesmo, Jesus pergunta: “O que vocês estão buscando?” (cf. Jo 1,39). Essa
pergunta é dirigida, sempre de novo, a cada geração de discípulos e discípulas,
a cada instituto religioso, e à vida consagrada como um todo. A seu modo, o
processo de reflexão e celebração definiu qual é seu desejo, sua busca ou sua
necessidade mais contundente. E a expressou da seguinte forma: “Ressignificar a Vida Religiosa Consagrada no
discipulado de Jesus Cristo, para que ela torne visível o Reino de Deus”.
A vida
religiosa consagrada do Brasil intuiu que este horizonte se deixa alcançar por
um caminho muito particular, que é “permanecer no Senhor” e “escutar e
responder, com esperança, os gritos e os clamores de nosso tempo”. Por mais que
pareça, não é seguro escolher atalhos não evangélicos para dar brilho, sentido,
sabor de originalidade e de novidade à velha vida religiosa consagrada. E não
há realidade inclusiva, duradoura e benfeitora da humanidade que não passe pela
escuta e pela resposta aos clamores das vítimas, que a sociedade teima em
tornar insignificantes e invisíveis.
O novo
significado que queremos dar às nossas vidas consagradas não pode vir senão da
permanência no seguimento dos passos de Jesus Cristo, da assimilação e vivência
do seu Evangelho. Se às pessoas que estiveram no início das nossas instituições
nós as chamamos de fundadores/as é porque eles/as colocam diante dos nossos
olhos o fundamento de uma vida prenhe de significado sempre renovado: o
seguimento dos passos de Jesus de Nazaré, no despojamento, na irmandade e no
serviço generoso e solidário aos “últimos” da escala social. Fazer-se
discípulo/a de Jesus de Nazaré é reconhecer-se sempre iniciante, sempre
aprendiz, sempre necessitado/a de desaprender para aprender melhor o que
significa ser humano e ser cristão, o que significa ser próximo e ser irmão ou
irmã.
Porém, o novo significado que queremos dar às nossas vidas consagradas
não termina na autocontemplação de nós mesmos/as e da relevância das
instituições às quais, nem na recordação de eventuais glórias do passado. O
seguimento de Jesus nos leva a focalizar tudo em uma única causa, a causa de todas
as causas e todos os humanos seres: o reino de Deus, nome que os evangelhos dão
à realidade inclusiva e benfeitora da humanidade, à vida plena, comunicativa e
abundante de todas as criaturas. O que os consagrados e consagradas queremos,
ressignificando nossa consagração a Deus, é tornar visível e palpável o Reino
de Deus, os novos céus e a nova terra, a nova sociedade, a renovação de todas
as coisas, relações e instituições na comunhão solidária.
Como podemos
conhecer o caminho?
Saber para onde devemos e queremos ir é
um passo importante para discernir os caminhos. Mas, é um passo insuficiente. Para
caminhar, não basta ter os dois pés no chão da realidade e ter um objetivo
definido teoricamente, por mais correto e relevante que seja. Precisamos
discernir ou identificar o modo mais adequado e eficaz de caminhar do chão que
pisamos em direção ao horizonte que nos chama. Mesmo sem fazer-se esta pergunta
explicitamente, a vida religiosa consagrada do Brasil verbalizou uma resposta: “em sinodalidade, missionariedade e contínua
conversão, à luz da Palavra de Deus”.
Caminhar
juntos
Primeiro, a sinodalidade. Caminhar juntos como diferentes
institutos de vida consagrada que somos. Caminhar junto com os diversos
organismos, movimentos, ministérios, serviços, carismas e iniciativas da
Igreja. Caminhar juntos com os organismos, movimentos e iniciativas sociais,
culturais e políticas que atuam guiadas pelo sonho de um mundo tecido de
fraternidade, igualdade, justiça e respeito às diferenças. Caminhar juntos, com
um mesmo objetivo em nossas fraternidades e projetos comunitários de missão. Caminhar
juntos porque somos iguais na fragilidade e comungamos da mesma origem, do
mesmo sonho e do mesmo destino. Caminhar juntos porque sozinhos/as não somos
capazes de ir muito longe.
Aqui podemos
lembrar a prática sinodal da Igreja apostólica, que atravessa praticamente de
ponta a ponta a narrativa dos Atos dos Apóstolos: nas diferenças, nas
divergências e nas emergências, os apóstolos se reuniam e tomavam decisões
compartilhadas, procurando conservar tanto a unidade substancial como a
pluralidade vital. É interessante lembrar também da pregação de Paulo: ele
sublinha que o trabalho e a perspectiva de diferentes grupos contribui na única
obra do Senhor (cf. 1Cor 3,5-17); e compara os diferentes serviços e
ministérios aos diferentes membros que compõem um corpo bem articulado e único
(cf. 12,12-31).
Um
caminho de saída missionária em direção às periferias
Depois a missionariedade, aquela que brota da Igreja dos apóstolos, que se
organiza e reinventa em ritmo de missão, estabelecendo estruturas leves e
funcionais à missão de “anunciar o Evangelho a todos, em todos os
lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo”, como dirá o Papa Francisco (EG, 23). E isso
porque a intimidade com Jesus é uma caminhada, uma intimidade
itinerante, uma força que nos chama a sair para fora, porque a comunhão é sempre
e essencialmente uma comunhão missionária.
Quando falamos de missão, o paradigma de Filipe (cf.
At 8,26-40) é sempre algo instigante: ele
descobre-se chamado ao meio-dia, sai de Jerusalém pelo caminho que leva ao
deserto, vai ao encontro de um estrangeiro eunuco (violentado e duplamente
marginalizado), aproxima-se como companheiro, aceita o convite a sentar-se ao
lado dele, anuncia-lhe o Evangelho a partir das suas perguntas, acolhe o eunuco
na comunidade conferindo-lhe o batismo, não o retém junto a si e permite que
ele prossiga seu caminho cheio de alegria.
Caminhar juntos, em ritmo missionário, convertendo-nos
ao Evangelho
Por fim, a contínua conversão. Na verdade, a conversão vem começo, é um dinamismo
permanente na aventura da consagração, e também a meta do seguimento de Jesus.
Discipulado é sempre um caminho de conversão: conversão pessoal, comunitária e
institucional ao Evangelho do despojamento, da pequenez, dos pequenos passos
possíveis, da consciência de guardar nos vasos de barro das pessoas
consagradas, das suas comunidades e instituições, um precioso tesouro que não
lhe pertence, que pertence a todos: o Evangelho da alegria, o Evangelho do
Reino de Deus, que está vivo e ativo no mundo como semente, como fermento, como
sal e luz. Conversão porque ainda acreditamos nas grandes estruturas, na
imponência das obras, no poder do saber e do capital, na aliança com os setores
que detém o poder, nas nossas estratégias e projetos.
Mencionamos aqui o
anúncio fundamental de Jesus, ao iniciar e prosseguir no seu ministério na Galileia:
“O tempo já se cumpriu e o Reino de Deus está próximo. Convertam-se e acreditem
na Boa Notícia” (Mc 1,14-15; cf. Mt 4,17; Lc 4,14-21). A novidade alvissareira
da Boa Notícia do Reino de Deus é de magnitude tal que, para acolhê-la e
assimilar seu dinamismo é preciso uma mudança radical de mentalidade. O
discipulado, a vida cristã como um todo, é um permanente caminho de conversão.
Este é também o anúncio pentecostal de Pedro e dos apóstolos (cf. At 2,37-41).
E não esquecemos um dado fundamental: o movimento da vida consagrada, em seus
melhores momentos, que são as fases mais carismáticas e menos institucionais,
se definiu como caminho penitencial, como convocação à conversão ao Evangelho
do Reino de Deus.
Quem meterá as mãos na massa e percorrerá esse caminho?
O sujeito que capta o horizonte é a
primeira pessoa do plural: “nós”. A dizer nós, estamos nos referindo a todas as
pessoas consagradas, a todas as Comunidades religiosas, a todas os Institutos e
suas direções, a todas as instituições criadas e administradas pelos Institutos,
às direções nacional e regionais da CRB, às Equipes, Comissões e Assessorias
nacionais e regionais da CRB, a todos os núcleos diocesanos de religiosos e
religiosas.
Mesmo sendo verdade que a Conferência
dos Religiosos do Brasil não tem poder de impor suas diretrizes e prioridades,
também é fato que o discernimento do horizonte e das prioridades do triênio foi
feito em espírito sinodal e participativo. Da mesma forma, para que tudo isso
não se torne discurso bonito, mas inócuo, é absolutamente indispensável o
compromisso proporcional e corresponsável de todas as pessoas consagradas, suas
instituições e instâncias.
Itacir
Brassiani msf
Passo
Fundo/RS