sábado, 30 de novembro de 2013

Preparar o Natal

NATAL de jesus VERSUS DEUS DO MERCADO

Cedo aprendemos que o Menino Jesus nasceu em Belém, na manjedoura de uma gruta, pois, segundo os relatos evangélicos, “não havia lugar para eles dentro de casa” (Lc 2,7). Desde a infância, fascina-nos a alegria e o canto dos anjos e dos pastores que, no meio da noite, partem para adorar o recém-nascido, envolto em faixas e deitado entre os animais. Mais tarde, guiados por uma estrela, chegarão também os reis magos com seus presentes de ouro, incenso e mirra, provenientes do oriente, ajoelhando-se diante do Senhor dos senhores.
O tradicional presépio familiar, ou aquele montado na comunidade ou Igreja, trazia imagens gravadas com o toque de dedos mágicos em nossa memória mais remota, imagens que o vento não consegue varrer ao longo de toda a existência. Mais tarde, ao lado de Maria e do carpinteiro José, Jesus vive e cresce “em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e diante dos homens” na humilde casa de Nazaré (Lc 2,52). Essas eram as peças que compunham o cenário de uma noite grandiosa, iluminada por um evento inusitado, envolvendo sombras e estrelas, a atmosfera ao mesmo tempo mística e poética do Natal. Deus irrompe no palco da história humana para abrir-lhe novos horizontes!
Hoje o Menino Jesus nasce, em primeiro lugar e com meses de antecedência, nos supermercados, nas lojas dos grandes centros comerciais e até nas agências bancárias ou repartições do poder público. Divide espaço com outros elementos, tais como a árvore recheada com os mais diversos enfeites, os presentes cuidadosamente embalados e uma série de símbolos que expressam desejos, promessas e esperanças de todo tipo. Mas, de forma particular, vem crescendo progressivamente a importância de outro personagem natalino, o simpático e ao mesmo tempo astuto Papai Noel. Embora tenha surgido bem mais tarde no curso dos tempos, atualmente ambos entram em concorrência pela compra e venda de mercadorias, como também pela atenção das pessoas, especialmente das crianças. Além disso, concentram e disputam os holofotes e anúncios da publicidade que precede as festividades natalinas.
Com o passar dos anos, porém, o segundo personagem ganhou espaço sobre o primeiro: o velhindo de cabelos e barbas brancas, exoticamente vestido e sempre sorridente e bonachão, com a expectativa dos brinquedos, deixa o recém-nascido na sombra. Este aparece em cena como que escanteado e meio evergonhado, diante de tantas luzes e cores, música e movimento. Ambos estão envoltos nos apelos e no fascício extraordinários do entusiasmo natalício, mas, no grande teatro da festa, os papéis dos atores parecem inverter-se: o coadjuvante toma o lugar do protagonista e viceversa.
O índolo do comércio sobrepõe-se ao Deus menino – nu, pobre e frágil – “Verbo que se fez carne e armou sua tenda entre nós” (Jo 1,14). Os valores humano-divinos que este representa, bem como sua chamada à conversão e à mudança de vida anunciadas por seu precursor João Batista (Lc 3,1-20), se folclorizam e se neutralizam diante do império, da sedução e da força do mercado. Como se o Natal representasse, nos dias atuais, um mero pretexto para aumentar as oportunidades de novos empregos, a desova de estoques e os ganhos fabulosos. Os shopping-centers em especial representam as grandes catedrais do novo deus mercado/capital.
O que mudou ao longo dos tempos? Por quê as atenções se deslocam do relato original neotestamentário para se concentrarem  em seus dados secundários? Por quê a criança enfaixada na manjedoura comparece para logo desaparecer na penumbra de um afã que, ano a ano, esquenta as vendas e os lucros, conferindo bom humor às bolsas de valores e ao ídolo mercado”?
Ocorre que o mundo contemporâneo, materialista e de economia globalizada, move-se sobre outro pano de fundo. O volume de vendas e dos ganhos, a oportunidade de acumular mais capital, a ânsia febril das novidades, a velocidade da produção, da comercialização e do consumo... Tudo isso toma o lugar e o sabor misterioso do clima natalino. O segredo se desfaz, desnuda-se-lhe a magia e o encanto, perde seu revestimento humano-divino. O marketing e a propaganda, sempre apelativos e estridentes, encarregam-se de apresentá-lo com nova roupagem.
O mistério da encarnação ganha vestes modernas ou pós-modernas, onde a simplicidade da gruta de Belém e da casa de Nazaré vem substituída pela parafernália de objetos, luzes e sons da revolução eletrônica e informática. Os enfeites da árvore de Natal e a eloquência do “bom velhinho” encobrem a nudez incômoda e interpeladora de um Deus que se faz homem, quando os homens buscam a todo custo ignorá-lo ou substitui-lo.
Como conviver com semelhante transformação? Ou melhor, como conciliar essas duas concepções do Natal – a magia do presépio e a euforia do comércio, a visão religiosa e a visão laica? O Menino Jesus e o Papai Noel constituem figuras opostas, ou podem caminhar de mãos dadas? Não se trata, evidentemente, de colocar uma contra a outra, como que opondo a tradição sólida ao oportunismo imediato, ou o verdadeiro ao falso. Teoricamente a tradição natalina não se opõe às revoluções e ao progresso da humanidade. Em termos teológicos, o mistério da encarnação não diminui em nada a liberdade humana. Ao contrário, Deus nos visita e vem caminhar conosco no deserto, no êxodo e no exílio para assumir as opções e a obra da humanidade em seu conjunto. Obra em que a razão, a ciência e a tecnologia, com todos os seus avanços, evolições e descobertas, desempenham um papel decisivo.  Deus entra a fazer parte da trajetória humana não para inaugurar uma outra história – paralela, acima ou superior – e sim para legitimar e sacrementar nossa travessia pessoal e coletiva com sua graça e sua benção. Faz da cidade a sua tenda, para usar a expressão do Livro do Apocalipse (Ap 21,1-8), divinizando a obra por escelência da inteligência humana.
O mais importante, em meio à correria costumeira nas proximidades do Natal, é não perder de vista a centralidade do nascimento de Jesus, o mistério de sua encarnação concretizada na vida e palavras, gestos e obras do Galileu itinerante. Está em jogo o significado mais profundo de um Deus “que não se apega à sua condição divina”, mas “humilha-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,6-11). Pelo nascimento em Belém, vem caminhar conosco, trazendo-nos a Boa Nova do Reino de Deus e da salvação. É Ele o personagem central da festa, assumindo e revestindo a trajetória humana com o seu amor infinito e incondicional.
Talvez o termômetro mais vivo dessa centralidade esteja na forma de realizar a ceia de Natal. Que é ela no cotidiano de nossa existência? Ou em que se tornou nos dias atuais? Um encontro para celebrar o nascimento de Menino Deus, reunindo e reforçando os laços familiares; ou um momento para troca de presentes e para saborear as iguarias inéditas do banquete natalino? Uma celebração rica de significado ou uma festa a mais, entre as tantas que promovemos? Até que ponto mantém uma memória viva e ativa no coração do cristianismo? Até que ponto encontra-se banalizada diante de uma infinidade de atrações que o Natal oferece?
As duas coisas não se excluem. Covém não esquecer que “assim como a fé absolutizada, também a racionalidade absolutizada desencadeia energias destrutivas”, como afirma Hans Kung. É possível, sem dúvida, relembrar o Natal do Senhor, aproveitando ao mesmo tempo para re-unir a família e os amigos ao redor de uma mesa farta, antecipação e anúncio do banquete do Reino. Não raro, e com frequência crescente, o centro dos festejos se desloca do acontecimento primordial para o exagero do consumo, da comida e da bebida. Isso para sequer falar das tensões e conflitos, da violência, divisão e discórdia que, no limite, esse deslocamento pode representar.
A fé religiosa, longe de se opor, contempla a dimensão da festa. Vale aqui o retorno às fontes, à imagem poética da infância, à simplicidade do presépio franciscano – como motivações para retomar e aprofundar o sentido do Natal, brasa viva e vivificante muitas vezes escondida sob as cinzas das paixões, impulsos e desejos e imediatos, dos bens materiais e perecíveis. Resulta que a celebração do Natal foi, é e continua a ser uma oportunidade sem igual para “buscar as coisas do alto onde a traça e a ferrugem não corroem, nem os ladrões podem roubar” (Mt 6,20). Oportunidade e desafio, também, para ampliar o leque da justiça, da solidariedade e da paz, frente às assimetrias e desequilíbrios que marcam tão fortemente a sociedade contemporânea. Natal é tempo kairológico para abrir o coração ao outro, ao pobre, a Deus que vem e a si mesmo.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

Tráfico de pessoas humanas

Olhos para o crime do tráfico de pessoas humanas!

Mais de duzentas e cinquenta lideranças eclesiais de todas as paróquias da diocese de Chapecó (SC) estiveram reunidas durante toda a manhã de hoje em Pinhalzinho (SC) para o VI Seminário de Preparação da Campanha da Fraternidade. Convocadas pela Coordenação Diocesana de Pastoral e acolhidas pelas comunidades da Paróquia de Pinhalzinho – que, além da infra-estrutura física também preparou e ofereceu o café da manhã e o almoço – estes servidores das comunidades eclesiais refletiram sobre fraternidade e tráfico de seres humanos, tema proposto pela Campanha da Fraternidade, edição de 2014.

Penso que iniciativas como essa são louváveis e merecem ser imitadas, pois, com bastante antecipação, informam e provocam nossas comunidades e lideranças para que não adiem para depois que o último bloco ou a última escola de samba fechar o carnaval a preparação da Quaresma e da Campanha da Fraternidade. Mesmo que o período de férias e das festas natalinas e de fim de ano coloquem como que entre parênteses a vida pastoral, de alguma forma o tempo pode ser aproveitado para motivação e organização das atividades, de modo que, quando soar a hora, o lançamento se faça com força e em grande estilo.

O objetivo principal desta enésima Campanha promovida pela Igreja do Brasil é mobilizar as comunidades na missão de identificar e denunciar as práticas de tráfico de pessoas humanas, mobilizando também pessoas e meios para prevenir e erradicar este mal. Trata-se de uma violência na maioria das vezes invisível ou ocultada, que se desdobra em tráfico de trabalhadores, para exploração da força de trabalho; tráfico de pessoas em situação de necessidade, dispostas e vender or próprios órgãos; tráfico de mulheres e crianças para a prostituição; tráfico de crianças para adoção ilegal.

Como de costume, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, através da coordenação nacional da Campanha da Fraternidade, oferece uma grande variedade de bons subsídios de divulgação, animação e reflexão, entre os quais se destaca o Texto-Base. Por quê não aproveitar o tempo de férias, ou a diminuição das atividades no início do ano, para adentrar mais nesta grave e complexa questão e imaginar formas de intervenção, tanto de caráter pastoral como no campo da sociedade civil? Afinal, temos bem presente que não se trata apenas de um tema para estudo ou oração, mas de uma questão que nos pede ação inteligente, continuada e articulada.


Itacir Brassiani msf

A Palavra na vida

(Mt 4,18-22) Fechamos o ano litúrgico com um sereno sorriso, desfazendo o tom preocupado das últimas semanas. O mês e o ano terminam celebrando a festa de um apóstolo (e que apóstolo!): André, irmão de Simão Pedro, discípulo de João Batista e companheiro de João evangelista. Segundo a tradição crsitã, foi André quem evangelizou o oriente cristão, e no primeiro milênio os dois irmãos, Pedro e André, eram os padroeiros das duas igrejas irmãs, a latina e a ortodoxa. Hoje, a memória de um destes apóstolos nos oferece uma preciosa indicação para compreender em qual direção devemos andar para repropor com credibilidade a nossa fé: partindo de novo da pregação dos apóstolos. A mensagem do Evangelho, inserida numa história complexa e nem sempre brilhante, chega a nós às vezes presa a uma complexa rede de tradições e culturas que hoje podem até obscurecer sua vivacidade e esplendor. Repartir da fé apostólica significa, concretamente, voltar às raízes do anúncio, simplificá-lo, reformulá-lo com uma linguagem compreensível ao homem contemporâneo. Somente assim saberemos dar glórias ao Senhor que habita a história e que esperamos na glória. (Paolo Curtaz, Parola & Preghiera, novembro/2013, p. 208)

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Nota da CNBB sobre Povos Indígenas e Agricultores

Bem aventurados os mansos porque possuirão a terra (Mt 5, 5)

O Conselho Episcopal Pastoral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, reunido em Brasília, se une à angústia dos povos indígenas e agricultores diante da inércia do governo federal e dos respectivos governos estaduais em solucionar verdadeira e definitivamente os crescentes conflitos fundiários que envolvem estes nossos irmãos.

Entendemos que a solução para esta situação passa necessariamente pelo reconhecimento do direito histórico e constitucional dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais, bem como, pelo reconhecimento dos títulos de terra denominados de boa fé.

Os entes federados, responsáveis pela emissão de títulos de propriedade sobre terras da União, devem assumir a responsabilidade pelo erro político-administrativo que cometeram e indenizar os agricultores que adquiriram de boa fé e pagaram pela terra onde vivem com suas famílias e formaram comunidades. Além disso, o Estado deve indenizar os agricultores pelas benfeitorias construídas sobre as terras e, aquelas famílias que desejarem ser reassentadas, precisam ter esse direito devidamente respeitado, como estabelece o decreto 1775/96, preferencialmente na mesma região.

Não é aceitável a posição assumida pelo governo federal e pelos distintos governos estaduais neste processo. Impedir e protelar a solução desses problemas potencializa a insegurança, as angústias e os riscos de conflitos entre indígenas e agricultores, ambos vítimas de um modelo equivocado de ocupação do território brasileiro.

A Igreja e seus ministros têm compromisso de evangelização e de pastoral com indígenas e agricultores. Neste compromisso, se colocam a serviço da vida plena. (DGAE 106).

O momento é crítico e exige urgente e efetiva ação por parte do governo brasileiro em defesa da vida, da justiça e da paz entre indígenas e agricultores no país. Que Nossa Senhora, a mãe de todos os povos, olhe por seus filhos nesse momento de dor e preocupações.


Brasília, 27 de novembro de 2013.

Cardeal Raymundo Damasceno Assis Dom José Belisário da Silva
Arcebispo de Aparecida (SP) Arcebispo de São Luís (MA)
Presidente da CNBB Vice Presidente da CNBB

Dom Leonardo Ulrich Steiner
Bispo Auxiliar de Brasília (DF)
Secretário Geral da CNBB

A Palavra na vida

(Lc 21,29-33) A palavra de Jesus não passa. Com esta certeza, concluímos o ano litúrgico, agarrados na promessa do Mestre. E com esta certeza possamos também ler os eventos do mundo e da Igreja, sem medo, sem vontade de voltar atrás, sem visões estreitas e medrosas, mas com o olhar amplo que somente a fé pode nos dar. O/a discíupulo/a olha o mundo com um realismo otimista: sem ceder ao aparente brilho de quem periodicamente encontra soluções definitivas, sabe que todos trazemos no coração uma sombra, o pecado original, e que tal sombra roe, a partir de dentro, toda utopia, projeto ou revolução. Mas isso não significa que permanecemos imóveis, sem fazer nada, que nos resignamos. Nós esperamos novos céus e nova terra, onde a justiça virá para estabelecer morada definitiva. Aqui e agora construímos o reino onde vivemos, com simplicidade, obstinação, alegria. Aqui e agora realizamos o sonho de Deus, sonho de um mundo no qual acolhemo-noss no respeito à diversidade, buscando juntos o sentido último da vida que Cristo nos revelou. E a espera é plena da presença e das palavras de Cristo, que não passam e que se tornam pão cotidiano.  (Paolo Curtaz, Parola & Preghiera, novembro/2013, p. 202)

A Palavra na vida

(Lc 21,29-33) A palavra de Jesus não passa. Com esta certeza, concluímos o ano litúrgico, agarrados na promessa do Mestre. E com esta certeza possamos também ler os eventos do mundo e da Igreja, sem medo, sem vontade de voltar atrás, sem visões estreitas e medrosas, mas com o olhar amplo que somente a fé pode nos dar. O/a discíupulo/a olha o mundo com um realismo otimista: sem ceder ao aparente brilho de quem periodicamente encontra soluções definitivas, sabe que todos trazemos no coração uma sombra, o pecado original, e que tal sombra roe, a partir de dentro, toda utopia, projeto ou revolução. Mas isso não significa que permanecemos imóveis, sem fazer nada, que nos resignamos. Nós esperamos novos céus e nova terra, onde a justiça virá para estabelecer morada definitiva. Aqui e agora construímos o reino onde vivemos, com simplicidade, obstinação, alegria. Aqui e agora realizamos o sonho de Deus, sonho de um mundo no qual acolhemo-noss no respeito à diversidade, buscando juntos o sentido último da vida que Cristo nos revelou. E a espera é plena da presença e das palavras de Cristo, que não passam e que se tornam pão cotidiano.  (Paolo Curtaz, Parola & Preghiera, novembro/2013, p. 202)

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Primeiro domingo do advento

Quando e como o Mundo Novo se manifestará?
Como comunidade cristã, estamos propriamente iniciando a caminhada de preparação para a festa do Natal, a memória da encarnação de Deus na condição humana. É verdade que o comércio já se antecipou em várias semanas e procura nos convencer de que a verdadeira boa notícia não nos vem de um bebê que nasce num abrigo para animais mas de um vovô gorducho e simpático que frequenta e promove os centros comerciais. Então, a primeira atitude que precisamos desenvolver na preparação do natal é o discernimento e a vigilância: uma atenção sem distração.
Não podemos identificar Jesus com um moralista preocupado simplesmente em condenar as festas, a comida ou a bebida. Ele é um profeta que chama a atenção para aquilo que é definitivamente essencial e nos previne sobre os riscos de uma fé vivida de forma alienada ou escapista, sem responsabilidade histórica. No evangelho de hoje, Jesus nos adverte que as rotinas e compromissos cotidianos, impostos pela ditadura da simples sobrevivência ou pelos interesses estreitos e imediatos, pode nos levar a uma perigosa distração em relação ao que é evangelicamente essencial.
É isso que Jesus quer evidenciar recorrendo ao episódio de Noé e à parábola do ladrão. Os contemporâneos de Noé tocam a vida normalmente, inclusive fazendo coisas boas e não condenáveis, mas não atinam para algo decisivo que está por acontecer. Se soubéssemos a hora em que chega o ladrão, montaríamos guarda e evitaríamos o pior. Mas como não sabemos onde, quando e como Deus se manifesta na história, precisamos evitar distrações – inclusive aquelas propostas por liturgias festivas que prometem prosperidade e facilidades! – e sintonizar com a Palavra de Deus e o advento do seu Reino. Precisamos permanecer sempre lúcidos e vigilantes.
Escrevendo aos Romanos e usando outras palavras, Paulo se refere ao mesmo risco. Vivemos numa cultura da distração. A oferta de uma quantidade estonteante de mercadorias, a possibilidade de infinitas e sempre novas experiências, o acesso facilitado aos lugares mais exóticos e distantes, e até a multiplicação das expressões de piedade, têm um só objetivo: oferecer distração e evitar que nos confrontemos com as questões fundamentais que nos interpelam como indivíduos, como Igreja e como humanidade. Esta enxurrada de possibilidades nos envolve como uma noite, e nós dormimos.
Paulo pede também que evitemos brigas e rivalidades. Além dos sangrentos conflitos que contrapõem cidadãos e imigrantes,  ocidentais e orientais, ricos e pobres, consumidores e excluídos, civilizados e bárbaros, partidos de centro-direita e de centro-esquerda..., há a competição pelo maior número de fiéis, pelo presente mais fabuloso, pela carreira mais fulgurante, pelo menor preço e maior qualidade, pela conquista dos mercados emergentes, pelo maior faturamento nas vendas natalinas... A noite se nos apresenta plena de pesadelos e ameaças.
Enfim, Paulo nos convida à sobriedade no comprar, no comer e no beber. Não se trata de austeridade – que é uma espécie de doença espiritual própria de quem despreza o que dá prazer – mas da sobriedade, atitude de quem sabe que está no mundo como hóspede e se deixa guiar por um sonho que ainda armará sua tenda na história. Comemos e bebemos sobriamente para celebrar o advento de Deus na humanidade, mas temos consciência de que o Reino de Deus não se resume à comida e à bebida, a este velho mundo anunciado como o único ou o melhor dos mundos possíveis.
Infelizmente, o tempo de espera vigilante foi se transformando em tempo de comércio alucinante, e a única coisa que se espera é receber um bom presente ou conseguir pagar as despesas das festas...  As milhares de luzes que piscam e seduzem as pessoas incautas, reduzidas a consumidores manipuláveis, não são mais que sinais da noite que nos envolve. “Já é hora de despertardes do sono. A noite está quase passando e o dia vem chegando.” É aqui que a mística do Advento entra como um despertador que nos acorda do sono letárgico e nos coloca de pé, vigilantes.
Ensina-nos, Jesus de Nazaré, a trilhar o caminho que leva ao encontro contigo e nos ajuda a viver acordados, lúcidos e solidários as quatro semanas de Advento que se abrem diante de nós. Dá-nos um olhar límpido e inteligente, capaz de ver onde, como e quando teu Reino está germinando e pedindo nossa colaboração. Desperta em nós a coragem e a criatividade necessárias para transformar espadas em enxadas, lanças em foices, indiferença em compaixão, presentes em presença. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf

(Isaías 2,1-5 * Salmo 121 (122) * Carta aos Romanos 13,11-14 * Lucas 24,37-44)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A Palavra na vida

(Lc 21,12-19) Uma coisa negativa e brutal – ser levado diante dos tribunais, ser perseguido – se torna uma ocasião para testemunhar a compaixão de Deus, para falar do Evangelho, para anunciar o surpreendente rosto de Deus. Jesus é mesmo fora do comum no seu otimismo! Mas isso que ele diz é absolutamente verdadeiro: sem sermos heróis, particularmente bravos e preparados, doutores ou mestres em teologia, podemos dar testemunho do Senhor com nossa fé e nossas palavras, mesmo em contextos desfavoráveis e de perseguição. E este testemunho sempre leva a novas conversões, a novas descobertas, a novos cristãos. Estamos vivendo um tempo em que o ódio contra os cristãos cresce expoenencialmente, e não apenas nos países muçulmanos: também na Europa, tolerante com tudo, menos com os insuportáveis cristãos! Talvez aconteça de termos que dar testemunho do Senhor com a vida... E não sabemos se então estaremos em condições de colocar sua Palavra no centro e de honrá-lo com nossas palavras e nossos gestos. Certamente o seremos se, desde agora, abrirmos o nosso coração à acolhida ardente da sua presença... (Paolo Curtaz, Parola & Preghiera, novembro/2013, p. 186)

domingo, 24 de novembro de 2013

Pe. Rodplpho Ceolin msf

Hoje, 25 de novembro, seria a celebração dos 57 anos de ministério presbiteral do Pe. Rodolpho Ceolin msf, interrompidos (?) no último 3 de julho, quando ele celebrou sua páscoa definitiva. Como memória deste acontecimento e homenagem a quem nos deixou uma herança  humana e espiritual incalculável, partilho estas linhas, escritas em agosto passado.

O que devo fazer para que minha vida tenha sentido?

Procuro teu vulto porque me sinto órfão de humanidade. Ajunto pedaços da tua memória e objetos que estiveram contigo porque me descubro mendigo de espiritualidade. Vazio, inquieto, errante e sedento, bato à tua porta e, pendente da palavra que espero dos teus lábios e das indicações que tua vida pode me oferecer, te pergunto, meu bom amigo e grande mestre: “Que devo fazer de bom para possuir a vida eterna?”

Conheço e guardo com apreço e reverência as palavras sinceras que já me disseste, e que são frutos de uma vida que amadureceu no sofrimento e na busca: “Não passo de um mortal como todo ser humano. O que fui e sou, devo-o unicamente ao bom Deus e a vocês, confrades e a tantos amigos (as) que Ele colocou na minha vida! Por que me chamas de bom?” Não imagino que me remetas aos mandamentos, porque isso nunca fez teu estilo.

Retirei cuidadosamente alguns objetos entre as poucas coisas que nos deixaste, na esperança de que me ajudem a intuir o que pode me conduzir a uma vida que valha a pena. Mas dize-me: de onde vem aquele velho e surrado terço preto, e o que está a me dizer? E em que podem me ajudar aquelas secas canetas douradas, lembrança de meio século de ministério? E para onde me pedem para olhar aqueles óculos velhos e enferrujados?

Na verdade, meu amigo, estou à procura daquilo que me falta, não daquilo que acumulei e que me pesa. Busco ardentemente aquilo que em ti floresceu com naturalidade, como se não existissem espinhos e tempos difíceis. E porque não posso dizer que sempre tenho observado todas as coisas e porque muito daquilo que é essencial à vida cristã continua me escapando, te pergunto: “Que devo fazer de bom para possuir a vida eterna?”

“Seja você mesmo, apenas mas sempre!” Já me pediram algo semelhante há 26 anos atrás, mas vejo que é isso que eu preciso mesmo. Uma vida que valha a pena ser vivida e que seja portadora de uma alegria tão serena quanto indestrutível depende mesmo da capacidade de escutar-se com profundidade e manter-se coerente com a voz das profundezas; da coragem de ser autêntico e não se curvar para agradar os outros e ser bem-sucedido. Sim, meu amigo, tua bela e exigente vida me ensina isso!

“Doe-se por inteiro àqueles/as amas e àquilo que fazes!” A boca calada, o relógio parado, o coração atento e os ouvidos abertos a quem te procurava sempre me impressionou. É claro que isso te fazia sofrer, mas também te proporcionava aquela serenidade que teus olhos, teu rosto e tua postura geralmente demonstravam. Então ajuda-me a superar a ansiedade dos projetos por realizar, a superficialidade de quem pensa que só tem a ensinar, a indiferença de quem não sabe escutar senão a si mesmo. E muito obrigado por essa lição!

“Aceite o despojamento do amor e evite a inflação do saber!” Nunca lamentaste teus poucos diplomas, mas foste um incansável aprendiz no caminho dos mistérios da vida. E neste caminho, o mesmo amor que te despojava de tantos ornamentos também enriquecia aqueles que te encontravam. Vejo que tenho andado afoito atrás de livros e cursos, encho meus dias de palavras e discursos, subo os degraus e pavimentos, e me vejo cada vez mais vazio e insatisfeito. A primazia do amor, em gestos e verdade... Assim seja!

“Seja o próximo dos últimos e sonhe o futuro sem medo!” Tu viveste o presente como penhor do futuro que sonhavas. Sabias que a vida deveria ser bem melhor, mas celebraste agradecido a beleza do presente. E mesmo com teus muitos anos, gostavas de estar ao lado dos pobres e injustiçados e defendê-los com teu timbre de galo. Por isso tua vida não foi em vão e as tuas generosas sementes foram acolhidas pela terra e germinam. Aceito esta indicação e te peço ajuda constante, para que seja este meu caminho e meu tesouro.

Creio que é isso mesmo que me falta. Tenho tantas outras coisas, mas me falta isso, e isso é muito. Sei que é por aqui que passa o convite a desfazer-me do que me ocupa, a dar o que tenho aos pobres e a seguir Jesus para participar do precioso tesouro do Reino de Deus. Os óculos me ajudarão a ver o mundo sob o prisma do Evangelho. As canetas me ajudarão a escrever minha nova história. O terço me aproximará dos humildes. Mas vem em meu socorro, meu amigo, para que a estas palavras eu não volte para casa triste e desiludido.

Itacir Brassiani msf