Como construir o Reino
de Deus em tempos difíceis?
(Ml 3,19-20; Sl 97/98; 2Tes 3,7-12; Lc
21,5-19)
Na medida em que se aproxima o fim
do ano litúrgico, somos alertados sobre algumas ilusões que se oferecem com
aparência de verdade. Conhecendo-nos e amando-nos a fundo, Jesus questiona
nossa afeição pelas grandes obras e pelos eventos espetaculares. Roque, Afonso
e João não teriam sofrido o martírio (+19.11.1628) se não tivessem se
embrenhado nas matas do sul do Brasil e se tivessem se ocupado com a defesa dos
reinos de Espanha e Portugal ou com o brilho das academias. Os seis jesuítas
assassinados em El
Salvador (+16.11.1989), pelos mesmos grupos que que haviam
calado a voz de Dom Oscar Romero, estariam ainda vivos se acomodassem o saber
aos interesses da oligarquia que comandava em El Salvador . Mas onde se revela
a maturidade e a verdade do ser humano: no sucesso ou na perseverança? No medo
covarde ou na utópica e devorante sede
de liberdade?
“Admirais estas coisas?...”
O poder e a grandeza sempre impressionam,
seduzem e provocam medo: das pirâmides do Egito ao extinto World Trade Center, da represa de Itaipu à Basílica de São Pedro,
do Kremlin à Cidade Proibida, da torre Eiffel à estátua da Liberdade. Os
grandes edifícios se oferecem como sinais eloquentes de estabilidade e como
mensagens contundentes dos vencedores. Expressam a glória daqueles que os
construíram ou habitam, se apresentam como abrigos do sucesso e dos desejos
mais acariciados.
Mas isso acontece também com os grandes
eventos. Um encontro ou celebração que reúne milhões de pessoas causa impacto.
Uma passeata que agrega milhares de pessoas que repetem em uníssono refrões de
protesto ou reivindicação pressionam a opinião pública. Estádios lotados de
torcedores animam até os atletas mais frágeis e desanimados. A religião que conta
seus adeptos aos bilhões pode se dar ao luxo de não se perguntar pela verdade
da sua doutrina ou pela coerência de quem a professa...
Os discípulos de Jesus, os de ontem
e os de hoje, também podem ser vítimas disso. Enquanto Jesus não se deixa
enganar pela aparência meticulosamente pensada dos ricos que versam esmolas
banhadas de sangue no tesouro do Templo e critica a exploração que ele encobre,
muitos se extasiam diante da grandiosidade dos seus muros e das ofertas acumuladas.
A sedução exercida pelas grandeza pode nos tornar cegos à opressão e à
injustiça que as grandes obras costumam esconder no próprio ventre...
“Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra...”
Será que Deus vem a nós montado no
poder e sua glória repousa nos templos suntuosos? Será que a eternidade e a
estabilidade são privilégios do poder e da grandeza? Será que o amor humilde e
perseverante carece de brilho e de esplendor? Será que é no grito dos
vitoriosos que ressoa a voz de Deus? Será que os últimos serão sempre os
últimos? Será que a última palavra penderá sempre da boca da mentira, como
sentença e condenação das vítimas?
A Palavra de Deus afirma outra lógica e assegura outra perspectiva. Para Deus, o futuro não é uma
simples reprodução potencializada dos horrores e injustiças do presente. Segundo
o profeta Malaquias, no projeto de Deus há um dia do Senhor, um dinamismo semelhante ao fogo que queima como
palha o atrevimento daqueles que praticam injustiças: deles não sobrarão nem
raízes, nem ramos. E para os oprimidos, este dia surge como sol depois de uma
tempestade, fazendo-os saltar de alegria.
Sim, a força de Deus que age
mediante pessoas, grupos e comuidades frágeis e perseverantes reduzirá a nada
as grandezas erguidas com o sangue e o suor dos pobres. “Dias virão em que não
ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído.” Não se trata de uma vingança do
destino, nem de algo que acontecerá independente da nossa ação. Quem crê nesta
Palavra se liberta da sedução das
grandes coisas e, na mesma medida, começa a desestabilizar os podres poderes na sua própria base.
“Sereis presos e perseguidos...”
Como discípulos e discípulas de
Jesus, somos chamados/as antes de tudo ao realismo.
Em nenhum momento Jesus nos assegura que
o caminho será fácil, pleno de êxito e de glória. Ao contrário, ele insiste
que a luta é grande e difícil. Para que não deixar dúvidas, ele mesmo percorre
este caminho, e convida-nos a seguir seus passos e estar com ele onde ele está:
entre os últimos, na periferia do mundo; entre os sonhadores, nos caminhos da
Galiléia; entre as vítimas, no alto da cruz.
Viver na nostalgia e na expectativa dos grandes eventos, momentos e
monumentos é contrário ao espírito de Jesus. Deixar-se
seduzir pelo triunfalismo é uma embriaguez que nos faz cambalear de um lado
para outro e acaba arruinando nossa fé. O caminho daqueles/as que levam em
seu corpo individual e eclesial as marcas de Jesus crucificado, mesmo quando se
mostra extraordinariamente duro, é o único capaz de transportar vida e garantir
fidelidade à Igreja do Senhor.
“Não andeis atrás desta gente...”
Mas precisamos também nos libertar da
ingenuidade. Nos momentos de
desorientação e de crise, quando os caminhos se cruzam ou bifurcam, quando os
poderes estabelecidos, sentindo-se ameaçados, inventam novas e terríveis formas
de opressão, costumam surgir mensageiros que se apresentam como libertadores,
propondo estranhos caminhos de salvação e assegurando que ela está à porta.
Convidando-nos a não sermos ingênuos, Jesus diz claramente: “Não andeis atrás
desta gente!”
Não podemos dar crédito a mensagens
e mensageiros/as alheios/as ao Evangelho, ou seja: que passam à margem da
compaixão com os pobres e da humildade da semente de mostarda. E isso mesmo
quando tais mensagens e mensageiros/as vêm do interior da Igreja e revestidos
de ostensiva piedade. Não podemos seguir aqueles/as que nos distanciam de Jesus
Cristo, fundamento e origem da nossa fé. Não podemos ceder a propostas de fuga
dos conflitos e de espera passiva da intervenção de Deus.
“Será uma ocasião
para dardes testemunho...”
Sempre e em todos os lugares, quem segue Jesus Cristo se torna uma
testemunha serena e firme. Os tempos difíceis não são para suspirar,
lamentar e desanimar. É verdade que nestes momentos somos tentados a pedir
demissão da condição de discípulos/as e missionários/as de Jesus Cristo e entregarmo-nos
tranquila e resignadamente ao “salve-se quem puder”. Ou então, lançarmo-nos
afoitos na restauração de estruturas caducas que parecem nos garantir
segurança.
Jesus aponta para uma direção
diferente. Nos tempos difíceis e
contraditórios é preciso aprofundar as raízes, ampliar os horizontes,
identificar o que é essencial e inegociável. Insegurança, marginalização e
perseguição não são sinais de fracasso, mas convites a anunciar o Evangelho com
a vida. “Será uma ocasião para dardes testemunho...” Quando as instituições e
obras que cheiravam a perenidade desmoronam como castelos de areia, somos
convidados a dar testemunho de firmeza e de serenidade.
Cada geração cristã tem seus próprios
problemas e desafios. Sem perder a calma, precisamos encontrar a forma adequada
de testemunhar aquilo que cremos e esperamos. Não precisamos sonhar com
heroísmos que sobrepassam as nossas forças, nem com defesas e seguranças que
impedem que nos tornemos adultos na fé. Não
podemos sacrificar a vocação profética no ambíguo altar da apologética. “Eu
vos darei palavras acertadas que nenhum dos inimigos vos poderá resistir ou
rebater.”
“É pela vossa perseverança que conseguireis salvar a
vossa vida.”
Perseverança e paciência são
características essenciais do cristão. A
vitória e o sucesso são meras possibilidades, enquanto que a perseverança na
luta são uma obrigação. Jesus não deixa dúvidas: “É pela vossa perseverança
que conseguireis salvar a vossa vida!” Trata-se de uma perseverança que
significa também paciência. E é claro que aqui Jesus não se refere a uma
presunta ressurreição ou admissão ao paraíso, mas a uma vida plena de sentido, livre de toda e qualquer atadura.
Jesus, sonhador indomável, verbo eloquente e profeta perseguido: fica
conosco nestes tempos difíceis, de ruína e de reconstrução do mundo e da
Igreja. Ensina-nos a viver a fé, a cultivar um estilo de vida paciente e tenaz,
liberto e criativo, que nos ajude a responder aos muitos desafios sem perder a
serenidade, nem a lucidez e a coragem. Ajuda-nos a construir o mundo que sonhaste nas
situações adversas nas quais vivemos, sem medo, sem passividade e sem ingenuidade,
esperando como se tudo dependesse de ti e sendo criativos como se tudo
dependesse de nós. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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