sexta-feira, 29 de março de 2019

O Evangelho dominical - 31.03.2019

COM OS BRAÇOSSEMPRE ABERTOS
Para não poucos, Deus é tudo menos alguém capaz de colocar alegria na sua vida. Pensar nele traz-lhes más recordações: desperta-lhes a ideia de um ser ameaçador e exigente, que torna a vida mais fastidiosa, incômoda e perigosa. Pouco a pouco prescindiram Dele. A fé foi reprimida no seu interior. Hoje não sabem se acreditam ou não acreditam. Ficaram sem caminhos para Deus. Alguns recordam ainda a parábola do filho pródigo, mas nunca a ouviram nos seus corações.
O verdadeiro protagonista desta parábola é o pai. Por duas vezes repete o mesmo grito de alegria: “Este meu filho estava morto e voltou à vida: estava perdido e nós o encontramos”. Este grito revela o que está no coração de seu pai. Esse pai não se importa com a sua honra, os seus interesses ou com o tratamento que os seus filhos lhe dão. Nunca usa uma linguagem moralista. Pensa apenas na vida do seu filho: que não seja destruído, que não fique morto, que não viva perdido sem conhecer a alegria da vida.
O relato descreve com todos os detalhes o encontro surpreendente do pai com o filho que abandonou o lar. Estando ainda longe, o pai viu-o chegar cheio de fome e humilhado, e comoveu-se até às entranhas. Esse olhar bom, cheio de bondade e compaixão é o que nos salva. Só Deus nos olha assim. Então começa a correr. Não é o filho que volta para casa. É o pai que sai a correr e procura o abraço com mais ardor que o próprio filhoAtirou-se ao pescoço e começou a beijá-lo”. Assim está sempre Deus. Correndo com os braços abertos para aqueles que voltam para Ele.
O filho começa a sua confissão: preparou longamente no seu interior. O pai interrompe-o para poupa-lo a mais humilhações. Não lhe impõe qualquer castigo, não lhe exige nenhum rito de expiação; não lhe impõe nenhuma condição para recebê-lo em casa. Só Deus acolhe e protege assim os pecadores. O pai só pensa na dignidade de seu filho. Tem  pressa. Manda trazer o melhor vestido, o anel do filho e as sandálias para entrar em casa. Assim, será recebido num banquete realizado em sua honra. O filho deve conhecer junto com o seu pai a vida digna e feliz que ele não pôde desfrutar longe dele.
Quem houve esta parábola do lado de fora não entenderá nada. Continuará a caminhar pela vida sem Deus. Quem a escuta no seu coração, talvez chore de alegria e gratidão. Sentirá pela primeira vez que o mistério final da vida é Alguém que nos acolhe e nos perdoa porque só quer a nossa alegria.

José Antônio Pagola

Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quinta-feira, 28 de março de 2019

ANO C | TEMPO DE QUARESMA | QUARTO DOMINGO | 31.03.2019


Os pobres são os juízes da vida democrática de uma nação!
Esta afirmação parece extraída de um panfleto distribuído por movimentos sociais em uma de suas manifestações. Entretanto, é parte da reflexão que os Bispos do Brasil nos propõem para esta quaresma. Segundo a CNBB, as políticas públicas devem sempre levar em conta o princípio do bem comum e privilegiar os mais pobres, “pois a existência de milhões de empobrecidos é a negação da ordem democrática. A situação em que vivem os pobres é critério para medir a bondade, a justiça, a moralidade, enfim, a efetivação da ordem democrática. Os pobres são os juízes da vida democrática de uma nação” (Texto-base da CF, nº 181).
A realidade política, social e cultural que vivemos hoje no Brasil é muito semelhante àquela que Jesus evidencia no evangelho: são dois filhos do mesmo pai, mas o filho mais velho reclama seus méritos, acusa quem vive miseravelmente e não o reconhece como seu irmão. Há quem bata panelas cheias e proteste contra a inclusão de gente historicamente excluída. Mas Jesus age como uma espécie de transgressor, beneficiando pessoas que não pertencem ao judaísmo (7,1-10; 10,25-37), acolhendo outras de má fama (5,27-32; 7,36-50), ajudando as que são consideradas impuras (4,38-39; 5,1-16; 7,11-17; 8,26-56).
O filho mais jovem da parábola representa exatamente estes pobres e excluídos, menosprezados e perseguidos pelo mais alto mandatário do país. Uma leitura apressada e moralista da parábola põe a atenção na controversa atitude do filho mais jovem: pedir a parte da herança à qual tem direito; esbanjar tudo imprudentemente; arrepender-se e voltar à casa do pai. O mais importante na parábola, porém, é a alusão à situação em que vivem aqueles com quem Jesus se solidariza: são como desempregados num país estranho; mendigam para sobreviver; são tratados pior que os porcos, mas são os que denunciam e julgam a nação!
Com esta parábola, Jesus quer chamar a atenção para a figura do pai, sacramento da ação de Deus. Sua bondade supera uma justiça que se restringe a dar a cada um aquilo que, segundo a lei ou os costumes, lhe corresponde e, ‘tomado de compaixão’, corre ao encontro do filho necessitado, abraça-o, veste-o e beija-o. O pai não se importa com o refrão ensaiado por aquele que não é mais reconhecido como gente, tanto que sequer permite que o recite até o fim. Para o pai misericordioso, aquele resto humano nunca deixou de ser seu filho, e isso é o mais importante, o que realmente importa.
Deus não trata ninguém como empregado, muito menos como estrangeiro ou devedor. Ele não é contador, nem juiz! Todos são filhos e filhas, e podem usufruir incondicionalmente da sua acolhida e dos seus bens. Na sua casa há lugar para todos! Para os filhos e filhas maltratados e mais necessitados ele reserva as melhores túnicas, o anel com o brasão da família e a festa com carne do novilho mais gordo. No seu projeto, ninguém é excluído nem padece fome. No plano do Pai, as políticas sociais em favor dos pobres e vulneráveis ocupam o primeiro lugar! E isso mesmo que seja verdade que o fim da miséria seja apenas o começo.
Mas infelizmente existem cristãos que, por ignorância ou por maldade, murmuram contra a proposta de um mundo diferente e acusam os que ousam ensaiá-lo. Representando os fariseus e escribas, o filho mais velho é o protótipo do cidadão e do crente preconceituoso e observante das leis. Não lhe falta nada e tem tudo em abundância, mas não esconde que, frente a Deus, se sente credor. Não consegue disfarçar sua raiva diante de um pai que acolhe generosamente o jovem inquieto e necessitado de tudo. Ofende o próprio pai, acusando-o violentamente de ser parcial, injusto e avarento.
O filho mais velho não reconhece aquela criatura miserável e necessitada como seu irmão. Discutindo com o pai, refere-se a ele como ‘esse teu filho’. Mas o pai, depois de afirmar que os bens que julga seus na verdade lhe foram doados, insiste que aquele não-cidadão acolhido com festa é ‘teu irmão’. A solidariedade faz da humanidade uma família onde todas as pessoas se reconhecem e protegem mutuamente, e a ação contra a exclusão está intimamente associada à criação e recomposição dos laços sociais, laços de humanidade, ao nascimento como nova criatura, que desconhece a cínica fronteira entre “homens de bem” e “os outros”.
Jesus de Nazaré, peregrino no santuário das dores e esperanças humanas: desejamos ardentemente sentar à mesa do teu Reino, entre os pobres resgatados e os fiéis agraciados. Livra o nosso país da violência e da apartação social, do opróbrio da discriminação e da necessidade de mendigar direitos humanos. Infunde em nós a generosidade daquele pai com um coração de mãe, para que saiamos ao encontro dos oprimidos e os acolhamos festivamente, compartilhando com eles a palavra, a mesa e a missão. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Livro de Josué 5,9-12 | Salmo 33 (34) | Segunda Carta de Paulo aos Coríntios 5,17-21 | Evangelho de São Lucas 15,1-3.11-32

quarta-feira, 20 de março de 2019

O Evangelho dominical - 24.03.2019


ANTES QUE SEJA TARDE

Já tinha passado bastante tempo desde que Jesus tinha se apresentado na sua cidade de Nazaré como Profeta, enviado pelo Espírito de Deus para anunciar aos pobres a Boa Nova. Mas ele continua repetindo incansavelmente a sua mensagem: Deus já está próximo, abrindo caminho para fazer um mundo mais humano para todos.
Jesus sabe bem, realista que é, que Deus não pode mudar o mundo sem que nós mudemos. Por isso esforça-se em despertar nas pessoas a conversão: “Convertei-vos e acreditai nesta Boa Nova”. Esse empenho de Deus em fazer um mundo mais humano só dará frutos se respondermos acolhendo o Seu projeto.
Vai passando o tempo e Jesus vê que as pessoas não reagem ao seu chamado como ele esperava. São muitos os que vêm para o ouvir, mas não se abrem ao Reino de Deus. Jesus insiste. É urgente mudar antes que seja tarde demais.
Num certo momento, Jesus conta uma pequena parábola. O proprietário de um terreno tem plantada uma figueira no meio da sua vinha. Ano após ano, vem procurar frutas e não consegue encontrá-las. A sua decisão parece a mais sensata: a figueira não produz frutos e está a ocupar inutilmente o terreno, o mais razoável é cortá-la.
Mas o encarregado da vinha reage de forma inesperada. Por que não a deixar ainda um pouco mais? Ele conhece aquela figueira, ele viu-a crescer, cuidou-a, não quer vê-la morrer. Ele mesmo dedicará mais tempo e mais cuidados, para ver se dará frutos.
A história é interrompida abruptamente. A parábola fica em aberto. O dono da vinha e o seu encarregado desaparecem de cena. É a figueira que decidirá seu destino final. Entretanto receberá mais cuidados do que nunca daquele agricultor que nos faz pensar em Jesus, “aquele que veio para procurar e salvar o que foi perdido.
O que precisamos hoje na Igreja não é apenas introduzir pequenas reformas, promover a atualização ou cuidar da adaptação aos nossos tempos. Precisamos de uma conversão a um nível mais profundo, um coração novo, uma resposta responsável e decidida à chamada de Jesus para entrar na dinâmica do Reino de Deus.
Temos que reagir antes que seja tarde demais. Jesus está vivo no meio de nós. Como o encarregado da vinha, Ele cuida das nossas comunidades cristãs, cada vez mais frágeis e vulneráveis. Ele alimenta-nos com o seu Evangelho, sustenta-nos com o seu Espírito.
Devemos olhar para o futuro com esperança, ao mesmo tempo que vamos criando esse novo clima de conversão e renovação que tanto necessitamos e que os decretos do Concílio Vaticano não conseguiram até agora consolidar na Igreja.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

ANO C | TEMPO DE QUARESMA | TERCEIRO DOMINGO | 24.03.2019


Não somos chamados a julgar e condenar, mas a amar e servir!
Não faltam entre nós pessoas que se comprazem em culpabilizar as vítimas e alforriar os algozes, nem pessoas que querem nos convencer-nos de que as tragédias que se multiplicam não passam de fatalidades imprevisíveis. E isso não só em relação à recente tragédia de Suzano. E há muita gente resiste a encarar e dar nomes aos males que nos rodeiam e com os quais às vezes colaboramos. O conhecimento e o reconhecimento dos fatos e das pessoas supõem abertura, sensibilidade, conversão. Somos como Moisés que, num primeiro momento, só consegue ver ovelhas, pastagens, trabalho, projeto pessoal de vida.
Deus irrompe na vida de Moisés a partir do sofrimento do seu povo. Este sofrimento profundo, intenso e real é simbolizado no fogo. Deus chega dizendo, quase aos gritos, que está vendo a opressão do seu povo, que os sofrimentos dele ferem seu coração e os clamores ferem seus ouvidos, que desceu para fazê-lo subir. É como se Deus dissesse a Moisés: ‘E você não vê nada, não escuta nada?’ E, como diz São Paulo, isso foi escrito para nos orientar! Nosso ver e nosso julgar podem estar a serviço de uma determinada ideologia ou por ela condicionados, de modo que vemos algumas coisas e estamos cegos para outras
Esta questão está bem ilustrada no episódio narrado por Lucas, no evangelho do terceiro domingo da quaresma. O contexto mais amplo é o ensino de Jesus sobre a missão profética e solidária dos discípulos e sobre a necessidade de interpretar corretamente os sinais dos tempos. Alguns fariseus interrompem a catequese de Jesus trazendo a notícia de que um grupo de galileus rebeldes fora assassinado por Herodes no templo. É evidente que com isso o grupo dos fariseus quer censurar e advertir Jesus, como se dissessem: ‘Continue assim, e verás o que acontecerá contigo! Não esqueça que Herodes e Pilatos estão atentos’
Mas por trás disso está também uma acusação às próprias vítimas: no entendimento dos fariseus, sabendo ou não, Herodes representaria a mão de Deus, que pune aqueles que, de alguma forma, são culpados. Esta é uma interpretação terrível de fatos em si mesmo trágicos! Jesus reage criticando o preconceito dos fariseus frente aos galileus e questionando a leitura justificadora e irresponsável que eles fazem dos fatos. E o faz chamando à memória dos discípulos e fariseus outra ocorrência, conhecida de todos: a queda de uma torre que resultou na morte de 18 judeus em Jerusalém.
Com firmeza e lucidez Jesus enfrenta, ao mesmo tempo, as tentativas que querem demovê-lo da decisão de prosseguir sua missão profética e a teologia cínica elaborada e ensinada pelos defensores do templo.  Afirmando que somos todos pecadores, que estamos sujeitos a errar ou a não atingir a meta de uma vida justa, Jesus nos convida a deixar a cadeira de juízes e abrir os olhos para uma realidade que é mais complexa que a simples divisão entre ‘pessoas de bem’ e ‘gente que não presta’. Ele nos chama a reconhecer nossos próprios erros, mas sem fechar os olhos aos pecados estruturais.
Em relação ao tema da Campanha da Fraternidade que vivemos na Quaresma, os Bispos do Brasil dizem que “cabe às Políticas Públicas o papel de reparação das iniquidades, com a oferta de bens e serviços públicos que rompam com a exclusividade do poder do dinheiro no atendimento das necessidades humanas”. Por trás de algumas feridas que doem na vida do povo está o império do dinheiro, o poder dos capital de uns poucos e as decisões de governantes que a eles se submetem. A culpa não é das vítimas!
A mensagem mais forte da liturgia do terceiro domingo da quaresma é o apelo à conversão, que começa com uma mudança no nosso modo de ver a realidade e de julgar os fatos e as pessoas. A conversão não se faz aos saltos, nem de uma vez para sempre. ‘Conversão, justiça, comunhão e alegria no cristão é missão de cada dia.’ A conversão começa em Jesus, que nos ama de forma incondicional e aposta nas nossas possibilidades e na nossa vontade. Mesmo não vendo os frutos esperados e tendo motivos para não esperar qualquer mudança, ele se dispõe a adubar o terreno com sua palavra e seu próprio corpo.
Jesus de Nazaré, Filho da Humanidade e Filho de Deus! Não nos deixes cair na tentação de pensar que as políticas públicas não tem nada a ver com nossa fé e de culpar as vítimas pelas próprias misérias. Que cada um de nós, nossas comunidades e movimentos, partindo da certeza de que Deus, teu e nosso pai, é lento e suave na cólera, mas rápido e estável na bondade, não tratemos com dureza as vítimas. Aduba nossa vida com tua Palavra, teu Corpo e teu Sangue, para que possamos dar os frutos esperados. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Livro do Êxodo 3,1-8.13-15 | Salmo 102 (103)| Primeira Carta de Paulo aos Coríntios 10,1-12 | Evangelho de São Lucas 13,1-9

terça-feira, 19 de março de 2019

O Brasil de Brumadinho


Pão ou aço?
Combinando o tema da Campanha da Fraternidade de 2019 (CF/2019), Fraternidade e políticas públicas, com a recente tragédia de Brumadinho, vem à tona o subtítulo da obra do estudioso Josué de Castro (Geografia da Fome, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2010) – O dilema brasileiro: pão ou aço!
A formação do Brasil assenta-se sobre o tripé do latifúndio, da monocultura de exportação e do trabalho escravo. São ao mesmo três chaves para ler a história do país, três bússolas para orientar o presente e três faróis para guiar as opções de uma futura política econômica. Desde os chamados ciclos econômicos – pau-brasil, açúcar, algodão, cacau, ouro, café – até os dias atuais, com a produção de carne, de soja, de milho, de minério de ferro, etc., o Brasil se especializou como produtor e exportador de matérias primas para os países centrais. Especialização que, no decorrer dos séculos, mudou de produto sem mudar o sistema de drenagem para o exterior.Tomando como exemplo o minério de ferro (entre outros), sua extração e exportação gera uma certa quantidade de empregos, sem dúvida, mas os postos de trabalhos mais qualificados ficam por conta dos países que agregam valor às matérias primas.
Além disso, como ficou claro pelos exemplos de Mariana e Brumadinho, as condições da extração não oferecem um sistema de segurança compatível com o gigantismo da empresa e de seus ganhos. Em lugar de proteger os trabalhadores e suas respectivas famílias e de garantir a preservação do ecossistema e do meio ambiente, privilegia-se o acúmulo de renda e capital. No modo de armazenar os rejeitos, opta-se pela barragem reforçada a montante e não a jusante, seguindo assim a maneira mais barata de fazê-lo, o que vale dizer, a melhor forma de maximizar os rendimentos líquidos. Na contramão do que diz afirma o ensino social da Igreja, o capital acaba tendo primazia sobre o trabalho. Sacrificam-se as pessoas em prol dos lucros.
Daí o dilema quem vem de longe e foi ressaltado por Josué de Castro: pão ou aço! Ambos aqui adquirem um significado figurado. Enquanto o pão representa não apenas o alimento, mas tudo o que o ser o homem/mulher precisa para manter-se de pé como ser humano e manter uma justa dignidade para a própria família, o aço tem a ver não apenas com o minério de ferro em si, mas também com o montante em moeda corrente que ele capitaliza para a empresa e o Estado. A partir dos desastres já ocorridos e de tantos outros anunciados, constata-se que a política pública para a mineração se preocupa em primeiro lugar com a riqueza, e somente em segundo lugar com a vida, seja esta humana, animal ou vegetal. Ou melhor, com a biodiversidade. Entretanto, a constatação vai bem mais longe: semelhante riqueza, longe de beneficiar os seus produtores diretos e os cidadãos de todo o país, acaba concentrando-se no pico da pirâmide econômica e social, deixando os moradores da base com as migalhas e as sobras. E, em casos extremos, com o rastro de cadáveres, feridas, cicatrizes, abandono e muito sofrimento.
O dilema “pão ou aço!” permanece vivo e ativo. Os estratos sociais ligados à força do aço enquanto renda e capital sabem como infiltrar-se nos corredores obscuros e tortuosos da administração pública. Conhecem bem a matemática para orquestrar o lobby, o balcão de negócios, o toma lá dá cá – em vista da perpetuação de seus privilégios e benesses. Estão perfeitamente cientes de que o poder chama riqueza e esta reforça aquele. Já os estratos de baixa renda, que ajudaram a eleger seus representantes, assistem inermes e impotentes à sua deserção na luta pela ética na política e no empenho pelo bem comum. Trata-se, em última instância, dos esforços para conseguir para todos o “pão nosso de cada dia”. Por que nessa luta os políticos e autoridades saem de campo no meio do jogo? Simples, porque para eles o resultado positivo vem por antecipação. Diga o que disser, o placar é sempre enganoso. Aos torcedores, apinhados nas arquibancadas, resta esperar pelo gol da salvação, ou melhor, pelo milagre das migalhas. Em lugar de políticas públicas, se tiverem sorte, serão alvo de políticas compensatórias.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
Rio de Janeiro, 19 de março de 2019

quinta-feira, 14 de março de 2019

O Evangelho dominical - 17.03.2019


ESCUTAR JESUS

Os cristãos de todos os tempos foram atraídos pela cena tradicionalmente chamada “a transfiguração do Senhor”. No entanto, para aqueles que pertencemos à cultura moderna, não é fácil penetrarmos no significado de uma história escrita com imagens e recursos literários típicos de uma teofania ou revelação de Deus.
No entanto, o evangelista Lucas introduziu detalhes que nos permitem descobrir com mais realismo a mensagem de um episódio que muitos hoje acham estranho e inverossímil. Desde o início, Lucas indica que Jesus sobe com seus discípulos mais próximos ao topo de uma montanha simplesmente para rezar, não para contemplar uma transfiguração.
Tudo acontece durante a oração de Jesus: “Enquanto ele estava a orar, a aparência de seu rosto mudou”. Jesus, profundamente recolhido, acolhe a presença de seu Pai e seu rosto muda. Os discípulos percebem algo da Sua identidade mais profunda e oculta. Algo que eles não conseguem entender na vida cotidiana.
Na vida dos seguidores de Jesus não faltam momentos de clareza e certeza, de alegria e de luz. Ignoramos o que aconteceu no topo daquela montanha, mas sabemos que na oração e no silêncio é possível vislumbrar, a partir da fé, algo da identidade oculta de Jesus. Essa oração é fonte de um conhecimento que não é possível obter dos livros.
Lucas diz que os discípulos mal entenderam, pois caíam de sono e só quando acordaram captaram algo. Pedro só sabe que ali se está muito bem e que essa experiência nunca deveria terminar. Lucas diz que “não sabia o que dizia”.  Portanto, a cena culmina com uma voz e um mandato solene. Os discípulos estão envoltos numa nuvem. Assustam-se pois tudo aquilo os ultrapassa. No entanto, dessa nuvem sai uma voz: Este é o meu Filho, o escolhido. Escutai-O”. Ouvir deverá ser a primeira atitude dos discípulos.
Os cristãos de hoje precisamos urgentemente interiorizar a nossa religião se quisermos reavivar a nossa fé. Não basta ouvir o Evangelho de forma distraída, rotineira e gasta, sem qualquer desejo de escutar. Não basta tampouco ouvir de forma inteligente, apenas preocupados em entender.
Precisamos ouvir Jesus vivo no mais íntimo do nosso ser. Todos, pregadores e pessoas fiéis, teólogos e leitores, precisamos escutar a Sua Boa Nova de Deus, não desde fora, mas desde dentro. Deixar que as Suas palavras desçam das nossas cabeças até ao coração. A nossa fé seria mais forte, mais alegre, mais contagiante.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 13 de março de 2019

ANO C | TEMPO DE QUARESMA | SEGUNDO DOMINGO | 17.03.2019


Escutemos o Filho de Deus e sigamos seu caminho de fraternidade!
O brilho atraente dos momentos de êxtase e dos grandes e festivos encontros, podem nos afastar da exigente missão de encarnar a fé na vida cotidiana.  A oração inicial da missa deste domingo nos convida a ouvir o Filho Amado do Pai, a purificar o nosso olhar e a buscar a verdadeira face de Deus. E Paulo nos adverte insistentemente, e em lágrimas: não nos comportemos como inimigos da cruz de Cristo, ou seja: não corramos atrás de facilidades, sucessos, prosperidades... Deus usa roupas de servo, porque essa é sua essência. Por isso, nada de tendas longe da luta por um mundo fraterno, casa de todos...
A cena do Evangelho de hoje é precedida por uma catequese muito exigente de Jesus aos discípulos. Depois de ter sido reconhecido formalmente por Pedro como “o Cristo de Deus”, Jesus acrescentara: “É necessário o Filho do Homem sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos, sumos sacerdotes e escribas, ser morto e, no terceiro dia, ressuscitar” (Lc 9,22). E dissera, voltando-se aos que o seguiam: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz, cada dia, e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá, e quem perder sua vida por causa de mim a salvará” (Lc 9,23).
Parece que os discípulos não conseguem entender e aceitar este caminho proposto por Jesus. Sentem-se envergonhados e desconcertados diante de um Messias servidor e perseguido. Resistem a um caminho que os levará a ser companheiros dele no anúncio do Reino e na perseguição. Não passa pela cabeça dos discípulos carregar a cruz da rejeição e da criminalização, imposta a quem ousa se rebelar contra os poderes do Império. Eles lutam desesperadamente contra essa possibilidade. Segundo Lucas, esta luta interior dos discípulos se prolongava por mais ou menos oito dias.
É neste contexto que Jesus, pressionado pelos próprios discípulos, sente necessidade de se retirar para rezar e discernir o caminho que deve seguir para revelar o rosto do Pai e realizar sua vontade. Chama e leva consigo Pedro, Tiago e João, os primeiros discípulos que havia chamado a segui-lo, mas também os mais resistentes ao caminho que propunha e os mais aferrados às ambições de poder e à imagem de um Messias potente e vitorioso. Nesta cena, o medo e a resistência dos discípulos se mostra simbolicamente no sono, como aconteceria de novo mais tarde, no Jardim das Oliveiras (cf. Lc 22,45).
O sono expressa o desejo de fugir, de dar as costas, de voltar atrás, de não escutar nada senão as próprias ideias e ambições. Os discípulos simplesmente não suportam escutar o diálogo de Jesus com Moisés e Elias, respectivamente, guia e profeta do povo, ambos duramente perseguidos e não muito bem-sucedidos. O diálogo é sobre o êxodo de Jesus que aconteceria mais tarde em Jerusalém, ou seja: o enfrentamento com os poderes opressores e a saída das malhas de uma religião estreita e sedenta de sucesso, discriminadora e opressora dos mais fracos. Essa conversa não interessava aos discípulos.
O trio resistente e sonolento é despertado pelo brilho de Jesus e seus convidados, não pelo conteúdo da conversa. A glória e o poder estão claramente no horizonte do interesse deles, tanto que desejam reter o tempo, separar os espaços e eternizar esta agradável visão. Estando todos atordoados e sem saber o que dizer, Pedro toma a iniciativa: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas...” Não lhes interessa acolher e compreender nem as palavras de Jesus, nem a memória do êxodo e da profecia. O que desejam é um lugar no qual possam encontrar paz e sossego, longe dos desafios da missão.
Mas a glória e o esplendor do poder não são expressões inequívocas de Deus e da realização da sua vontade. É a sombra tenebrosa de uma nuvem – imagem daquela nuvem que acompanhara o povo na caminhada através do deserto e envolvera a montanha na celebração da Aliança – que desfaz o entusiasmo dos discípulos e os conduz à verdade à qual resistem: “Este é o meu filho, o eleito. Escutai-o!” É a profecia e o serviço, e não as vestes de glória, que manifestam o esplendor de Deus.
Jesus de Nazaré, companheiro de Moisés e de Elias, filho amado do Pai. Por vezes tua liberdade nos causa vertigens e tua compaixão nos assusta. Ajuda-nos a contemplar teu rosto nesta terra povoada de gente que deseja ardentemente viver. Ensina-nos a escutar tua Palavra sussurrada nas atitudes inquietas e nas ações indignadas e até violentas das pessoas e grupos a quem foram roubados os sonhos. E dá-nos a humilde e a sabedoria para acompanhá-las no caminho de descida ao encontro contigo. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Livro do Gênesis 15,5-18 | Salmo 26 (27)| Carta de Paulo aos Filipenses 3,17-4,1 | Evangelho de São Lucas 9,28-36

domingo, 10 de março de 2019

Fraternidade & Políticas Públicas


As Políticas Públicas existem para limitar o poder do capital
Políticas Públicas são ações e programas que Estado (municípios, estados e federação) desenvolve para garantir ao povo o acesso aos seus direitos constitucionais. São as iniciativas colocadas em movimento para enfrentar os problemas e necessidades da população, garantindo a segurança e a soberania mediante a garantia dos direitos civis e sociais, jamais limitando-os ou revogando-os.
Se entendemos as Políticas Públicas como a busca de soluções para os problemas que atingem uma determinada faixa da população, podemos agrupá-las em políticas públicas para a educação, políticas públicas para saúde, políticas públicas para a previdência social, políticas públicas para a segurança dos cidadãos, políticas públicas para a moradia, políticas públicas para o ambiente, os indígenas e os jovens; etc.
Os Bispos do Brasil sublinham que, sem democracia e participação dos cidadãos, as Políticas Públicas acabam refletindo mais as forças dos agentes do Mercado (setores financeiros e empresariais, organizações patronais), dos grupos políticos dominantes e da burocracia estatal do que os direitos e necessidades do povo. Infelizmente, no Brasil, as Políticas Públicas dependem mais da vontade dos administradores do que da Constituição e das urgências da população.
Nos últimos anos, as políticas sociais desenvolvidas em âmbito federal, estadual e municipal representam 25% do Produto Interno Bruto do Brasil. Desse montante, 29% foi aplicado em Previdência Social, 19% na Educação, 17% na previdência dos servidores públicos, 15% na Saúde, 7% em habitação e saneamento, e 5% em Assistência Social. Mas, sozinho, o pagamento dos juros e de parte da dívida pública consumiu mais de 40% do PIB!
Mas, olhando para a América Latina, “percebe-se nestes anos de ajuste do modelo neoliberal um importante descuido do gasto social, em particular nas áreas da educação, da saúde e da segurança social, na medida em que deu preferência para o pagamento da dívida externa ou a desvios dos escassos recursos públicos para interesses de uma minoria” (Texto-base da CF, nº 252). No Brasil, o novo governo federal está querendo limitar drasticamente as políticas sociais e ceder tudo o que for possível à voracidade do Mercado, ou seja, dos capitalistas.
É importante ressaltar que um dos objetivos das Políticas Públicas seria exatamente enfrentar e limitar os problemas gerados pela competição desigual ou pela voracidade predatória dos agentes econômicos, corrigindo e regulando o Mercado. O desenvolvimento não é por si mesmo democrático, e sempre privilegia os setores mais fortes ou astutos, e as políticas e programas sociais precisam combater as desigualdades e beneficiar os setores sociais mais fragilizados.
Neste sentido, as Políticas Públicas tem o papel de “desmercantilizar”, “desprivatizar” e “politizar” a ação do Estado. Como dizem os Bispos do Brasil, “cabe às Políticas Públicas o papel de reparação das iniquidades, com a oferta de bens e serviços públicos que rompam com a exclusividade do poder do dinheiro no atendimento das necessidades humanas” (Texto-base da CF, 60). Daí a importância do tema para que nosso país trate as pessoas como cidadãos e sujeitos de direitos, e não como problema ou despesas.
O profeta Isaías se formou e cresceu no ambiente do Templo de Jerusalém, mas soube tomar distância da sua ideologia religiosa e afirma que Jerusalém abandonou a Aliança, está repleta de criminosos e se comporta como prostituta (cf. Is 1,21-28), pois as autoridades não fazem justiça aos órfãos e não protegem as viúvas, ou seja: não implantam políticas públicas que favoreçam a população mais pobre. Por isso, o deus da Aliança pede satisfação àqueles que governam em seu nome e promete despertar justas e fiéis. “Sião será resgatada com o direito, e os repatriados com justiça” (Is 1,27). Este é o contexto e o texto que a Igreja do Brasil escolheu para guiar sua reflexão e ação durante a quaresma de 2019.
Itacir Brassiani msf

quarta-feira, 6 de março de 2019

ANO C | TEMPO DE QUARESMA | PRIMEIRO DOMINGO | 10.03.2019


A quaresma nos ajuda a sair da nossa alienação existencial.
Escrevendo aos cristãos de Roma, Paulo sublinha enfaticamente que, a partir de Jesus, as diferenças religiosas, culturais e nacionais não importam mais: todos têm o mesmo Senhor, que é generoso para com todos os que a ele se abrem e o invocam. Esta é uma boa notícia, uma mensagem acessível e estimuladora. Ao mesmo tempo, é um profético apelo à comunhão ecumênica e à abertura à verdade do outro, a eliminar os preconceitos e interesses que nos levam a julgar os outros como inferiores e maus, negando-lhes direitos fundamentais. Infelizmente, é isso que vem marcando a política e a comunicação no Brasil ultimamente...
Depois do batismo no rio Jordão, Jesus sentiu necessidade de compreender melhor aquilo que viu e ouviu. Ele fará isso ao longo da sua vida, mas Lucas condensa este discernimento num tempo e num lugar bem determinados. Com isso, o evangelista sublinha a total identificação de Jesus com o povo hebreu e com toda a humanidade, inclusive nas buscas e provas. Efetivamente, Jesus foi tentado ou provado, e não somente num período de quarenta dias. Uma leitura atenta dos evangelhos, especialmente do desfecho da missão de Jesus em Jerusalém, deixa claro que a tentação o acompanhou durante toda sua vida.
O Espírito leva Jesus ao deserto, lugar da impotência, da carência e da dependência, mas o Tentador o conduz aos lugares altos, onde a riqueza e o poder brilham mais. O Diabo personifica as forças que se opõem ao plano de Deus, o espírito do poder, da dominação e da manipulação. Jesus se defronta com estas forças e caminhos: fugir das carências comuns a todos as criaturas e agir em causa própria; seguir a lógica da riqueza e do poder que amedronta, expropria e oprime; explorar a fé dos pequenos, manipular as escrituras e transformar a religião num espetáculo. Isso configura uma espécie de alienação existencial e social.
Prestemos atenção à segunda tentação. “O diabo o levou para o alto; mostrou-lhe, num relance, todos os reinos da terra, e lhe disse: eu te darei todo este poder e a riqueza destes reinos, pois a mim é que foram dados, e eu os posso dar a quem eu quiser.” A proposta é tentadora, mas o custo é altíssimo: renunciar à liberdade e à compaixão que caracterizam o ser humano e sustentam a convivência social. “Se te prostrares diante de mim, tudo isso será teu.” Riqueza e poder é o que os adversários da Vontade de Deus oferecem, em troca de obediência e submissão, às pessoas que os servem.
Ao dizer que a pessoa humana não vive somente de pão, Jesus está se referindo a Dt 8,3 e propondo a fidelidade aos princípios da Aliança como garantia de alimento para todos. Afirmando que só a Deus devemos adoração e culto, não está afirmando “Deus acima de tudo”, mas descartando a meritocracia e afirmando que não é correto considerar tudo como mérito pessoal (Dt 6,10-15). Dizendo que não devemos colocar Deus à prova, Jesus tem diante de si a passagem Dt 6,16 e recorda o acontecimento de Massa, quando, atravessando o deserto, os hebreus protestaram contra Deus por causa da falta de água.
Reconhecer nossos vínculos com Deus, com os irmãos e irmãs e com toda a criação, reconhecer que tudo é dom recebido e confiado ao nosso cuidado em favor de todos os seres humanos, é uma forma de manter um horizonte que transcende nossos interesses ou medos e de evitar o risco da idolatria. Deus não limita nem se opõe à liberdade e à autonomia humanas, mas questiona os valores e instituições menores que colocamos em seu lugar: dinheiro, poder, raça, indivíduo, nação e até a religião. A decisão está posta nas nossas mãos: a quem serviremos, obedeceremos e adoraremos?
As tentações fizeram parte da vida de Jesus e fazem parte da caminhada dos seus discípulos e discípulas (cf. Lc 8,13; 11,4; 22,31). Mas assim como Jesus resistiu às tentações, também seus discípulos e discípulas podemos vencê-las. Por isso, além de lucidez para percebê-las, precisamos de coragem e de estratégias adequadas para enfrentá-las. E a quaresma se nos oferece uma espécie de treinamento especial e intensivo para esta luta. Para resistir às tentações que, mesmo sob uma roupagem que aparenta sabedoria, felicidade e sucesso, deixemo-nos guiar pelo Espírito Santo e pelo Evangelho de Jesus de Nazaré.
Jesus de Nazaré, irmão e companheiro dos homens e mulheres nas grandes e pequenas tentações: cura nossa liberdade e liberta nossas utopias, feridas pelo pecado da ambição. Ajuda-nos a descobrir, amar e internalizar tua Palavra, para que ela sustente, guie e julgue todos os nossos projetos, decisões e ações. E não nos deixes ceder à tentação de negar nossa vulnerabilidade, de aderir à lógica do dinheiro e do poder e de manipular a fé dos pobres, substituindo a compaixão regeneradora pela busca da prosperidade. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Livro do Deuteronômio 26,4-10 | Salmo 90 (91)| Carta de Paulo aos Romanos 10,8-13 | Evangelho de São Lucas 4,1-13

O Evangelho dominical - 10.03.2019


NÃO NOS DESVIEMOS DE JESUS

As primeiras gerações cristãs interessaram-se muito pelas provações que Jesus teve de superar para permanecer fiel a Deus e viver sempre colaborando no seu projeto de uma vida mais humana e digna para todos.
A história das tentações de Jesus não é um episódio isolado, que ocorre num determinado momento e lugar. Lucas adverte-nos que, ao terminar estas tentações, “o diabo partiu até outra oportunidade”. As tentações voltarão à vida de Jesus e à dos Seus seguidores.
Portanto, os evangelistas apresentam a história das tentações antes de narrar a atividade profética de Jesus. Os Seus seguidores deverão conhecer bem essas tentações desde o início, porque são as mesmas que terão de superar ao longo dos séculos se não quiserem desviar-se Dele.
Na primeira tentação, fala-se de pão. Jesus resiste a usar Deus para satisfazer a Sua própria fome: “nem só de pão vive o homem. A primeira coisa para Jesus é procurar o reino de Deus e sua justiça: que haja pão para todos. É por isso que ele irá um dia pedir pão a Deus, mas para alimentar uma multidão faminta.
Também hoje, a nossa tentação é pensar apenas no nosso pão e preocupar-nos exclusivamente com a nossa crise. Desviamo-nos de Jesus quando acreditamos que temos direito de ter tudo, e esquecemos o drama, os medos e os sofrimentos daqueles a quem falta quase tudo.
Na segunda tentação fala-se de poder e glória. Jesus renuncia a tudo isso. Não se prostrará diante do diabo que lhe oferece o império sobre todos os reinos do mundo. Jesus nunca procurará ser servido, mas servir.
Também hoje, cresce em alguns cristãos a tentação de manter a ferro e fogo o poder que teve a Igreja em tempos passados. Desviamo-nos de Jesus quando pressionamos as consciências tentando impor à força as nossas crenças. Abrimos o caminho para o reino de Deus quando trabalhamos por um mundo mais compassivo e solidário.
Na terceira tentação, pede-se a Jesus que desça da torre do templo diante o povo, de forma grandiosa, apoiado pelos anjos de Deus. Jesus não se deixará enganar. Mesmo que lhe peçam, nunca fará um sinal espetacular do céu. Irá dedicar-se a fazer sinais de bondade para aliviar o sofrimento e as doenças das pessoas.
Desviamos de Jesus quando confundimos a nossa própria ostentação com a glória de Deus. A nossa exibição não revela a grandeza de Deus. Somente uma vida de humilde serviço aos necessitados manifesta e difunde seu amor.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

domingo, 3 de março de 2019

ANO C | TEMPO DE QUARESMA | QUARTA-FEIRA DE CINZAS | 06.03.2019


Que o Direito e a Justiça assegurem a cidadania dos brasileiros e brasileiras!
Terminado o período de carnaval, os carros alegóricos dão lugar aos ônibus lotados, os salões e trios elétricos são substituídos pelo ritmo estonteante e pelo som nada harmônico das fábricas e máquinas. E o Brasil despe-se, um pouco a contragosto, da sua fantasia de país cordial e acolhedor e escancara sua face brutal, com cicatrizes vivas de exclusão, de preconceito e de ódio de classe. A quarta-feira de cinzas não tem mais a força de encerrar definitivamente a folia, mas consegue colocar diante dos nossos olhos, e da nossa consciência às vezes anestesiada, uma dimensão inegável da vida: somos radicalmente limitados e ambíguos.
No último domingo, Jesus já ensinava que um cego não pode oferecer-se como guia de outros cegos, e que não temos condições de apontar o cisco no olho do próximo se nosso próprio olhar está prejudicado pela sujeira. Com isso, ele ressalta nossa condição de pecadores, afirma a necessidade de conversão permanente e alerta para a arrogância descabida de quem quer sentar-se na cadeira do juiz. Como diz o salmista, todos nascemos no pecado e carregamos em nossos corpos, sentimentos, ações e projetos marcas de indiferença, egoísmo e fratricídio. Daí a importância de uma campanha que suscite atitudes e gestos de fraternidade.
É inegável que o carnaval brasileiro tem as marcas do povo e da valorização das maiorias esquecidas e vilipendiadas pelas elites do país. Mesmo que o carnaval de salão continue a existir como passarela para exibicionismo da classe de cima, o mais puro e original do carnaval de rua continua sendo o protagonismo do povo. As pessoas que passam o ano inteiro dobradas sob o peso da exploração rasgam sua fantasia de povo submisso e lançam seu grito alegre e provocador, afirmando em cores e ritmos que a dignidade e a fraternidade são inegociáveis. Como o Deus de Jesus, precisamos aprender a ver o que é escondido!
As Palavra de Deus recorre a imagens fortes e comoventes. Falando em nome de Deus, o profeta Joel pede que rasguemos o coração e não as vestes, que mudemos nossas atitudes profundas e não a exterioridade das fantasias. Já vivemos o suficiente, e sofremos o bastante, para aprendermos que não basta mudar de governo, de partido ou de Igreja. A desumanidade corroeu todas as instituições e setores sociais. Sem arrependimento sincero, sem mudança profunda e estrutural não há esperança possível nem comportamento inocente. Deus é benigno e paciente, mas insere sua ação nas ações minimamente humanas.
No Evangelho, Jesus ousa lançar suspeita até sobre a religião e suas expressões mais piedosas, como são o jejum, a esmola e a oração. Não basta proclamar que Deus está acima de tudo, pois isso pode ser mero artifício para enganar os piedosos ou uso da religião para esconder interesses de classe. O simples uso público e político da religião já deve soar como sinal de alarme, pois pode beirar à hipocrisia e busca de vantagens, elogios e votos. “Deus não atende a oração daquele que não escuta o grito do pobre, porque não poderá jamais haver culto autêntico se aqueles que o celebram são causa de injustiça”, dizem os Bispos do Brasil.
Ao mesmo tempo em que questiona o uso da religião para fins individuais ou políticos, Jesus repete que Deus vê o que está oculto ou escondido. Junto com a certeza de que Deus vê aquilo que fazemos sem publicidade, precisamos cultivar o próprio olhar de Deus, ou seja, a capacidade de ver aquilo que não tem notoriedade: a doação e o engajamento sincero e cotidiano de milhares de pessoas pelo bem comum; os grupos e movimentos que dão o melhor de si para que as políticas públicas beneficiem quem delas necessita; a multidão de homens e mulheres que, em nome da sua fé, defendem e servem os pobres e as vítimas.
No momento em que presenciamos atônitos a ação de um governo que se recusa a implementar políticas públicas para enfrentar os problemas e necessidades que atingem a maioria do povo e pretende alcançar a segurança e a ordem por caminhos que não asseguram e até desrespeitam os seus direitos, a Campanha da Fraternidade nos pede engajamento lúcido e incansável. Pois, como lemos no Texto-base da Campanha da Fraternidade, sem democracia e participação da sociedade, as políticas públicas tendem a refletir apenas a força dos agentes do mercado, de um grupo político ou mesmo das próprias burocracias estatais (cf. nº 23).
Pai misericordioso e compassivo, que governas o mundo com justiça e amor, dá-nos um coração sábio e capaz de reconhecer o teu Reino entre nós. Em sua misericórdia e habitando entre nós, Jesus testemunhou teu infinito amor e anunciou o Evangelho da fraternidade e da paz. Que seu exemplo nos ensine a acolher os pobres e marginalizados, nossos irmãos e irmãs, lutando por políticas públicas justas e inclusivas, e nos estimule a ser construtores de um país mais humano e solidário. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Profecia de Joel 2,12-18 | Salmo 50 (51)2ª. Carta de Paulo aos Coríntios 5,20-6,2 | Evangelho de São Mateus 6,1-6.16-18