Que o Direito e a
Justiça assegurem a cidadania dos brasileiros e brasileiras!
Terminado o período de carnaval, os carros alegóricos dão lugar aos
ônibus lotados, os salões e trios elétricos são substituídos pelo ritmo
estonteante e pelo som nada harmônico das fábricas e máquinas. E o Brasil
despe-se, um pouco a contragosto, da sua fantasia de país cordial e acolhedor e
escancara sua face brutal, com cicatrizes vivas de exclusão, de preconceito e
de ódio de classe. A quarta-feira de cinzas não tem mais a força de encerrar
definitivamente a folia, mas consegue colocar diante dos nossos olhos, e da
nossa consciência às vezes anestesiada, uma dimensão inegável da vida: somos
radicalmente limitados e ambíguos.
No último domingo, Jesus já ensinava que um cego não pode oferecer-se
como guia de outros cegos, e que não temos condições de apontar o cisco no olho
do próximo se nosso próprio olhar está prejudicado pela sujeira. Com isso, ele
ressalta nossa condição de pecadores, afirma a necessidade de conversão
permanente e alerta para a arrogância descabida de quem quer sentar-se na
cadeira do juiz. Como diz o salmista, todos nascemos no pecado e carregamos em
nossos corpos, sentimentos, ações e projetos marcas de indiferença, egoísmo e
fratricídio. Daí a importância de uma campanha que suscite atitudes e gestos de
fraternidade.
É inegável que o carnaval brasileiro tem as marcas do povo e da
valorização das maiorias esquecidas e vilipendiadas pelas elites do país. Mesmo
que o carnaval de salão continue a existir como passarela para exibicionismo da
classe de cima, o mais puro e original do carnaval de rua continua sendo o
protagonismo do povo. As pessoas que passam o ano inteiro dobradas sob o peso
da exploração rasgam sua fantasia de povo submisso e lançam seu grito alegre e
provocador, afirmando em cores e ritmos que a dignidade e a fraternidade são
inegociáveis. Como o Deus de Jesus, precisamos aprender a ver o que é
escondido!
As Palavra de Deus recorre a imagens fortes e comoventes. Falando em
nome de Deus, o profeta Joel pede que rasguemos o coração e não as vestes, que
mudemos nossas atitudes profundas e não a exterioridade das fantasias. Já
vivemos o suficiente, e sofremos o bastante, para aprendermos que não basta
mudar de governo, de partido ou de Igreja. A desumanidade corroeu todas as
instituições e setores sociais. Sem arrependimento sincero, sem mudança
profunda e estrutural não há esperança possível nem comportamento inocente.
Deus é benigno e paciente, mas insere sua ação nas ações minimamente humanas.
No Evangelho, Jesus ousa lançar suspeita até sobre a religião e suas
expressões mais piedosas, como são o jejum, a esmola e a oração. Não basta
proclamar que Deus está acima de tudo, pois isso pode ser mero artifício para
enganar os piedosos ou uso da religião para esconder interesses de classe. O simples
uso público e político da religião já deve soar como sinal de alarme, pois pode
beirar à hipocrisia e busca de vantagens, elogios e votos. “Deus não atende a
oração daquele que não escuta o grito do pobre, porque não poderá jamais haver
culto autêntico se aqueles que o celebram são causa de injustiça”, dizem os Bispos
do Brasil.
Ao mesmo tempo em que questiona o uso da religião para fins individuais
ou políticos, Jesus repete que Deus vê o que está oculto ou escondido. Junto
com a certeza de que Deus vê aquilo que fazemos sem publicidade, precisamos
cultivar o próprio olhar de Deus, ou seja, a capacidade de ver aquilo que não
tem notoriedade: a doação e o engajamento sincero e cotidiano de milhares de
pessoas pelo bem comum; os grupos e movimentos que dão o melhor de si para que
as políticas públicas beneficiem quem delas necessita; a multidão de homens e
mulheres que, em nome da sua fé, defendem e servem os pobres e as vítimas.
No momento em que presenciamos atônitos a ação de um governo que se
recusa a implementar políticas públicas para enfrentar os problemas e
necessidades que atingem a maioria do povo e pretende alcançar a segurança e a
ordem por caminhos que não asseguram e até desrespeitam os seus direitos, a
Campanha da Fraternidade nos pede engajamento lúcido e incansável. Pois, como
lemos no Texto-base da Campanha da Fraternidade, sem democracia e participação
da sociedade, as políticas públicas tendem a refletir apenas a força dos
agentes do mercado, de um grupo político ou mesmo das próprias burocracias
estatais (cf. nº 23).
Pai misericordioso e
compassivo, que governas o mundo com justiça e amor, dá-nos um coração sábio e
capaz de reconhecer o teu Reino entre nós. Em sua misericórdia e habitando
entre nós, Jesus testemunhou teu infinito amor e anunciou o Evangelho da
fraternidade e da paz. Que seu exemplo nos ensine a acolher os pobres e
marginalizados, nossos irmãos e irmãs, lutando por políticas públicas justas e
inclusivas, e nos estimule a ser construtores de um país mais humano e
solidário. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
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