sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O evangelho dominical

ONDE ESTAMOS NÓS?

Uns desconhecidos comunicam a Jesus a notícia da horrível matança de uns galileus no recinto sagrado do templo. O autor da chacina foi mais uma vez, Pilatos. O que mais os horroriza é que o sangue daqueles homens se tenha misturado com o sangue dos animais que estavam a oferecer a Deus.
Não sabemos por que recorrem a Jesus. Desejam que se solidarize com as vítimas? Querem que lhes explique por que horrendo pecado foi cometido para merecer uma morte tão ignominiosa? E se não pecaram, porque Deus permitiu aquela morte sacrílega no Seu próprio templo?
Jesus responde recordando outro acontecimento dramático ocorrido em Jerusalém: a morte de dezoito pessoas esmagadas pela queda de uma torre da muralha próxima da piscina de Siloé. Pois bem, a respeito de ambas as situações Jesus faz a mesma afirmação: as vítimas não eram mais pecadoras que outros. E termina a Sua intervenção com a mesma advertência: «se não vos converteis, todos perecereis».
A resposta de Jesus faz pensar. Antes de mais nada, recusa a crença tradicional de que as desgraças são um castigo de Deus. Jesus não pensa num Deus «justiceiro» que vai castigando os Seus filhos e filhas repartindo aqui ou ali doenças, acidentes ou desgraças, como resposta aos Seus pecados.
Depois, muda a perspectiva da situação. Não se detém em elucubrações teóricas sobre a origem última das desgraças, falando da culpa das vítimas ou da vontade de Deus. Volta o Seu olhar para os presentes e confronta-os consigo mesmos: devem escutar nestes acontecimentos o chamado de Deus à conversão e à mudança de vida.
Todavia vivemos abalados pelo trágico terramoto do Haiti. Como ler esta tragédia a partir da atitude de Jesus? Certamente, em primeiro lugar não devemos perguntar-nos onde está Deus, mas onde estamos nós. A pregunta que pode encaminhar-nos para uma conversão não é «porque permite Deus esta horrível desgraça?», mas «como consentimos nós que tantos seres humanos vivam na miséria, tão indefesos ante a força da natureza?».
Ao Deus crucificado não o encontraremos pedindo contas a uma divindade longínqua, mas identificando-nos com as vítimas. Não o descobriremos protestando contra Sua indiferença ou negando a Sua existência, mas colaborando de mil formas para mitigar a dor no Haiti e no mundo inteiro. Então, talvez, possamos intuir entre luzes e sombras que Deus está nas vítimas, defendendo a Sua dignidade eterna, e nos que lutam contra o mal, alentando o seu combate.
José Antonio Pagola

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Fatos & Personagens: batismo do Pe. Berthier


“Tu és o filho que amo, motivo do meu prazer!”

Por ocasião do batismo recebido no rio Jordão, Jesus descobre e anuncia que Deus não é somente compaixão (como se isso fosse pouco!): ele é também complacência. A palavra que Jesus ouve poderia ser assim traduzida: “Tu és o filho que amo, o motivo do meu prazer!” Ou seja: Deus compartilha tanto as dores quanto os prazeres dos homens e mulheres, seus filhos e filhas. A humanidade tem tudo a ver com ele.

Pia do batismo do Pe. Berthier, em Chatonnay
É possível que não fosse exatamente esta a compreensão que Pedro e Maria Berthier tinham quando, naquela fria manhã do dia 26 de fevereiro de 1840, levaram o recém-nascido primogênito João à pia batismal, na pequena paróquia de Châtonnay. É lícito presumir que partilhassem da compreensão que predominava na Igreja de então: o batismo é o sacramento que apaga o pecado original e abre ao recém-nascido as portas da Salvação, simbolizadas nas portas da igreja paroquial e na acolhida na Comunidade eclesial.
No livro que escreveu às crianças em 1893, o próprio Berthier revelava, em grandes linhas, essa mesma compreensão. “Quando você veio ao mundo, meu filho, sua alma era feia, desfigurada pelo pecado original que todos trazemos ao nascer, e que é um dos frutos da desobediência de Adão, nosso primeiro pai. Se morremos sem fazer desaparecer esta feiúra, jamais veremos Deus. O que é que lava esta mancha da nossa alma? O batismo! É com água que você lava as mãos, e é com a água do batismo que o padre lava as almas. O batismo lava nossos pecados... E quando a alma é lavada pela graça, a imagem de Deus resplandece nela. Ela se torna o templo do Espírito Santo, e a criança batizada se torna filha de Deus, irmã dos anjos e digna da glória eterna” (J. Berthier, Le livre des petits enfants, 1915, p. 167).
Com um pouco de imaginação, mas sem trair o sentido original das suas palavras, podemos dizer que, para o Pe. Berthier, na celebração do batismo damo-nos conta de que somos belos e bons aos olhos de Deus; de que, apesar de tudo, somos dignos de apreço e não merecemos desprezo; de que Deus tem prazer em fazer em nós sua morada. E, ao mesmo tempo, pelo batismo proclamamos nossa ruptura com a desobediência e fazemos do Evangelho uma espécie de GPS que dá rumo à nossa titubeante caminhada.
Sabemos muito bem que são sempre outras pessoas que experimentam e prometem isso em nome da criança que recebe o batismo. Assim como está nas mãos dos pais a sobrevivência, a saúde física e o crescimento do bebê, também depende deles o crescimento coerente com a fé que eles professaram. E disso Berthier não foi privado. Mais tarde ele mesmo reconhecerá: “Considero uma das maiores graças que recebi do bom Deus o fato de ter me dado uma santa mãe. Ela me formou, me reprendeu e não deixou passar nada em branco. Ela tinha consciência de que, antes de ser mãe, era cristã, e que seu primeiro dever era formar o cristão” (apud. João Maria de Lombaerde, Un apôtre de nos jours, p. 27).
Placa ao lado da Pia batismal do Pe. Berthier
Numa das suas homilias sobre o significado e os frutos do batismo, partindo da força maravilhosa que transforma um simples e bruto bulbo em uma bela e exuberante tulipa, Berthier exclama: “Coisas mais maravilhosas ainda opera a vida ou a alma no corpo humano!... Se uma força natural produz tão grandes resultados, o que diremos de uma força sobrenatural, da vida divina comunicada à alma pela graça?! Esta graça é a vida da alma. Como são felizes as pessoas que a possuem! Neste mundo, os cristãos não se distinguem das demais pessoas, assim como, durante o inverno, não distinguimos as árvores vivas daquelas que estão mortas. Mas, com a chegada da primavera, tudo fica evidente...” (J. Berthier, Le prêtre, vol. I, p. 271).
Fazendo memória do batismo do Pe. Berthier, acolhamos sua exortação: “Recordemos frequentemente as promessas do nosso batismo e examinemos se estamos sendo fiéis a elas.” E sejamos conscientes de que, como uma criança, mesmo estando armada,  não é um soldado, nós também  necessitamos do dinamismo e da luz do Espírito Santo para realizar nossa vocação e nossa missão no mundo (cf. J. Berthier, Le livre des petits enfants, p. 169).

Itacir Brassiani msf

ANO C – TERCEIRO DOMINGO DA QUARESMA – 28.02.2016

Não vivemos um tempo de julgamento, mas de conversão!
“Castigo de Deus por causa dos ritos idolátricos do vudu”. Esta foi a terrível leitura que um pastor estadunidense fez do terremoto que destruiu o Haiti e vitimou nossa conhecida doutora Zilda Arns no início do no 2011.  Devemos perguntar a ele: o mesmo vale para o furacão Caterina, que há alguns anos arrasou parte dos EUA, e para o terromoto que destruiu uma região na Itália em plena semana-santa do ano 2009? Infelizmente nunca faltam pessoas que se comprazem em culpalizar as vítimas e alforriar os algozes, nem aquelas que se empenham em convencer-nos de que as tragédias que se multiplicam não passam de fatalidades imprevisíveis...
Todos resistimos a encarar e dar nomes aos males que nos rodeiam e com os quais às vezes colaboramos. Acontece que, para ver a realidade, é preciso ter olhos perfeitos, mas isso não é suficiente. A realidade é dura e desafia os sentidos e a inteligência. O conhecimento e o reconhecimento dos fatos e das pessoas supõem abertura, sensibilidade, conversão. Somos como Moisés que, num primeiro momento, só consegue ver ovelhas, pastagens, trabalho, projeto pessoal de vida. O máximo que consegue é deixar-se impressionar por algo que queima e não se extingue...
Deus irrompe na vida de Moisés a partir do sofrimento do seu povo. Este sofrimento profundo, intenso e real é simbolizado no fogo. Deus chega dizendo, quase aos gritos, que está vendo a opressão do seu povo, que os sofrimentos dele ferem seu coração e os clamores ferem seus ouvidos, que desceu para fazê-lo subir. É como se Deus dissesse a Moisés: ‘E você não vê nada, não escuta nada? ’ Damo-nos conta de que nosso ver e nosso julgar estão sempre a serviço de uma determinada ideologia, que comportam uma visão de pessoa, um ideal de sociedade e uma ética.
Esta questão está bem ilustrada no episódio narrado por Lucas, no evangelho do terceiro domingo da quaresma. O contexto mais amplo é o ensino de Jesus sobre a missão profética e solidária dos discípulos e sobre a necessidade de interpretar corretamente os sinais dos tempos. Alguns fariseus interrompem a catequese de Jesus trazendo a notícia de que um grupo de galileus rebeldes fora assassinado por Herodes no templo. É evidente que com isso eles querem censurar e advertir Jesus, como se dissessem: ‘Continue assim, e verás o que acontecerá contigo!... ’
Mas por trás disso está também uma acusação às próprias vítimas: sabendo ou não, Herodes representaria a mão de Deus, que estaria punindo aqueles que, de alguma forma, eram culpados. Uma leitura terrível de fatos em si mesmo trágicos!... Jesus critica o preconceito dos fariseus frente aos galileus e questiona a leitura justificadora e irresponsável que fazem dos fatos. E o faz chamando à memória outra ocorrência, conhecida de todos: o acidente que matara 18 judeus em Jerusalém. Com isso, Jesus questiona uma teologia escapista e cínica, e nos chama à conversão profunda e imediata.
Com firmeza e lucidez Jesus enfrenta, ao mesmo tempo, as tentativas que querem demovê-lo da decisão de prosseguir sua missão profética e a teologia cínica elaborada e ensinada pelos defensores do templo.  Afirmando que todos estamos sujeitos a errar ou a não atingir a meta de uma vida justa, Jesus nos convida a deixar a cadeira de juízes e abrir os olhos para uma realidade que é mais complexa que a simples divisão entre culpados e inocentes. Ele nos propõe uma leitura profética da história, e nos chama a reconhecer nossos próprios erros, mas sem fechar os olhos aos pecados estruturais.
O apelo mais forte da liturgia do terceiro domingo da quaresma é à conversão, que começa com uma mudança no nosso modo de ver a realidade e de julgar os fatos e as pessoas. A conversão não se faz aos saltos, nem de uma vez para sempre. ‘Conversão, justiça, comunhão e alegria no cristão é missão de cada dia.’ A conversão começa em Jesus, que nos ama de forma incondicional e aposta nas nossas possibilidades e na nossa vontade. Mesmo não vendo os frutos esperados e tendo motivos para não esperar qualquer mudança, ele se dispõe a adubar o terreno com sua palavra e seu próprio corpo.
Jesus de Nazaré, Filho da Humanidade e Filho de Deus! Envia teu Espírito para nos inspirar e manter no caminho de conversão. Não nos deixes cair na tentação de pensar que o ambiente não é nossa casa comum, de culpar as vítimas pelas próprias misérias e sofrimentos. Que cada um de nós, nossas comunidades e movimentos, partindo da certeza de que Deus, teu e nosso pai, é lento e suave na cólera, mas rápido e estável na bondade, não tratemos com dureza as vítimas. Aduba nossa vida com tua Palavra, teu Corpo e teu Sangue, para que possamos dar os frutos esperados. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro do Êxodo 3,1-8.13-15 * Salmo 102 (103) * Carta aos Coríntios 10,1-12 * Evangelho de Lucas 13,1-9)

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Natal do Pe. Jean Berthier ms

“Marcas do que se foi, sonhos que vamos ter...”

Pia Batismal do Pe. Berthier, em Chatonnay
Há 176 anos, no dia 24 de fevereiro de 1840, nascia, em Châtonnay (Isère, França), Jean Berthier. Primeiro filho do casal Marie Putaud e Pierre Berthier, Jean tornar-se-ia Missionário de Nossa Senhora da Salette (1862), escritor e pregador muito conhecido (publicou em em torno de 40 livros, alguns traduzidos em até oito línguas, e pregou retiros e missões populares em dezenas de dioceses da França!) e, mais tarde, fundador dos Missionários da Sagrada Família (1895).

Todos sabemos que uma vida não se resume à recordação daquilo que se foi, por mais que não podemos esquecer impunemente que o passado deixa marcas vivas e suscita dinamismos no presente. Nossas visitas ao passado servem para identificar raízes e, mais ainda, para suscitar e alimentar sonhos que, projetados no futuro, iluminem e orientem o presente. Por isso, recordo o nascimento do nosso Fundador com o desejo de acolher e dar vida ao sonho dele e nosso.

Uma das principais marcas da vida e do ministério do Pe. Berthier é sua atenção a todos os grupos de pessoas. Ainda jovem, com 23 anos de vida, escreveu um livro para ajudar as mães cristãs a viverem sua vocação específica e a educar seus filhos numa perspectiva cristã. E depois não parou mais: escreveu livros direcionados aos jovens, às jovens, aos homens, às crianças, aos vocacionados, aos religiosos e religiosas, aos padres... E não cansava de insistir: uma missão nunca será frutífera se deixar em segndo plano os homens e as crianças...

Uma segunda marca desta vida plena de espírito evangélico e amor pela Igreja é a paixão pela formação à vida religiosa e missionária. A este ministério o Pe. Berthier dedicou quase três décadas de sua vida. Para dar carne e sangue a esta paixão, quis conhecer novas experiências, ousou tomar iniciativas inéditas, situou-se ao lado dos formandos e no nível deles, partilhou com eles os trabalhos, mesmo os mais duros, fez-se tudo para todos... E sem esquecer o acompanhamento sério e competente de outras pessoas na realização da  vocação.

Quando jovem diácono da diocese de Grenoble, Berthier sentiu-se seduzido pela vida religiosa, assim como lhe foi mostrada na pequenez e simplicidade da nascente comunidade dos Missionários Saletinos. Mais tarde, ressoou no seu grande coração os contundentes apelos do Papa Leão XIII, que sacudiam a Igreja e pediam um novo despertar missionário. Mesmo sem jamais ter pisado uma “terra de missão”, a mente e o coração inquieto do Pe. Berthier habitaram todas elas. E ele não descansou enquanto não reuniu em torno de si um grupo de jovens dispostos a ir "àqueles que estão longe".

Aos 55 anos de idade, e mesmo sem contar com uma saúde robusta, Pe. Berthier deixou sua França amada e refugiou-se na Holanda, então um oásis do catolicismo, para realizar seu sonho de formar missionários eoferecê-los às necessidades apostólicas da Igreja. Sendo já autor de dezenas de livros, sua bagagem não passava de um pequeno baú e uma sacola. Esta simplicidade, que impressionou um cardeal amigo, prosseguiu e amadureceu em Grave, onde, até à morte (1908) dividiu com seus discípulos o refeitório, o dormitório, o trabalho, a sala de estudos, a pobreza e os sonhos, enfim: tudo!...

Serão estas apenas “marcas do que se foi”, como diz a conhecida canção que entoamos no final do ano? Ou serão também traços dos “sonhos que vamos ter”, da utopia que orienta nosso caminhar, quase dois séculos depois? De minha parte, creio que a atenção às necessidades e possibilidades de cada pessoa e grupo, a paixão pelas missões, a busca de uma pedagogia inovadora, a simplicidade e a proximidade em relação ao povo, são preciosos elementos na consolidação da vida cristã, religiosa e apostólica também no tempo que se chama hoje.

Itacir Brassiani msf

domingo, 21 de fevereiro de 2016

29 anos de ministério

Hoje, 21 de fevereiro, recordo e celebro agradecido a passagem do 29° de vida presbiteral. Aquele 21 de fevereiro de1987, na Igreja Santa Lúcia, em Anchieta (SC) já me parece distante no tempo, mas algumas cenas, experiências, sentimentos, palavras e rostos não se apagaram da minha memória, e fazem parte da minha história mais profunda, mais significativa e mais viva.

Naquela época, não conseguia imaginar minimamente o que significariam quase três décadas de ministério e vida religiosa. Por mais que me esforçasse, não seria capaz de visualizar as experiências que viveria, as pessoas que encontraria, os irmãos e irmãs que ganharia, os amigos que perderia precocemente, as dificuldades que enfrentaria, as alegrias que me seriam proporcionadas... Ainda bem que a vida é assim!...

29 anos não é uma daquelas cifras redondas que pedem celebração especial. Mas, transcorrido um certo tempo da vida, cada ano e cada data merece sua solenidade, sua memória. Não se trata de festejar com publicidade e destaque, mas de colher a oportunidade para se retirar e abrigar no interior das melhores experiências vividas, de reencontrar o amor original e juvenil, de resgatar as utopias límpidas e generosas.

Hoje, com mais que o dobro dos anos que contabilizava naquela época, tenho menos ilusões e fantasias, acho que sou um pouco menos ambicioso e menos arrogante, aprendi a duvidar mais que confiar em minhas pretensas capacidades... Mas posso dizer que uma certeza me foi dada: percorri um caminho que não trocaria por nenhum outro, respondi a um chamado que enche de luz e de sentido minha opaca e limitada vida, recebi muito mais do que fui capaz de dar, e, em termos de crescimento humano e espiritual, o caminho que tenho pela frente é muito maior do que o percurso feito.

Creio que foi o Espírito que me sugeriu o texto do Evangelho que iluminou a celebração de ordenação: a parábola do bom samaritano (Lc 10,25-37). Via nesta cena uma interpelação a fazer-me próximo daqueles que estão longe, a não me afastar dos pobres e necessitados por nenhum pretexto, mesmo os mais piedosos, a ser mais gente que funcionário ou sacerdote.

Bem, estes 29 anos me ensinaram que esse é um ideal tão bonito quanto difícil, e que a contradição é uma constante na vida presbiteral e missionária. Conforta-me perceber que tenho sido agraciado pela experiência de muitas pessoas queridas terem se aproximado de mim para socorrer-me em minhas fraquezas, corrigir-me em meus erros, despertar-me das minhas ilusões, carregar-me nos braços ou nas costas, hospedar-me em suas casas, encarregarem-se das despesas... São eles, em primeiro lugar, meus coirmãos de Congregação, mas também tanta gente anônima e simples, desinteressada. Sim, nessas pessoas, é Jesus, o bom e belo samaritano, que vem se fazendo meu próximo e me tratando com todo cuidado, pagando os custos da minha pobre vida.

Inspirado no poeta e cantador Gonzaguinha, proclamo: Vivo sem ter vergonha de ser feliz. Canto a alegria de ser um eterno aprendiz. Mesmo sabendo que minha vida deveria ser bem melhor e muito mais generosa, e será, eu repito: é linda demais a aventura de quem percorre os caminhos de Jesus de Nazaré!

Itacir Brassiani msf

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O evangelho dominical

ESCUTAR SOMENTE A JESUS

A cena é considerada tradicionalmente como «a transfiguração de Jesus». Não é possível reconstruir com certeza a experiência que deu origem a este surpreendente relato. Sabemos apenas que os evangelistas lhe dão uma grande importância pois, segundo o seu relato, é uma experiência que deixa entrever algo da verdadeira identidade de Jesus.
Num primeiro momento, o relato destaca a transformação do Seu rosto e, apesar de estar a conversar com Ele, Moisés e Elias, talvez como representantes da lei e dos profetas respetivamente, apenas o rosto de Jesus permanece transfigurado e resplandecente no centro da cena.
Ao que parece, os discípulos não captam o conteúdo profundo do que estão a viver, pois Pedro diz a Jesus: «Mestre, que bem que se está aqui. Faremos três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias». Coloca Jesus no mesmo plano e ao mesmo nível que aos dois grandes personagens bíblicos. A cada um a Sua tenda. Jesus não ocupa todavia um lugar central e absoluto nos seus corações.
A voz de Deus vai corrigi-los, revelando a verdadeira identidade de Jesus: «Este é o Meu Filho, o escolhido», o que tem o rosto transfigurado. Não tem de ser confundido com os de Moisés ou Elias, que estão apagados. «Escutai-o». A ninguém mais. A Sua Palavra é a única decisiva. As outras apenas nos levam até Ele.
É urgente recuperar na Igreja atual a importância decisiva que teve nos seus começos a experiência de escutar no seio das comunidades cristãs o relato de Jesus recolhido nos evangelhos. Estes quatro escritos constituem para os cristãos uma obra única que não devemos equiparar ao resto dos livros bíblicos.
Há algo, que só neles podemos encontrar: o impacto causado por Jesus nos primeiros que se sentiram atraídos por Ele e o seguiram. Os evangelhos não são livros didáticos que expõem doutrina acadêmica sobre Jesus. Tampouco são biografias escritas para informar com detalhe sobre a Sua trajetória histórica. São «relatos de conversão» que convidam à mudança, a seguir Jesus e a identificar-se com o Seu projeto.
Por isso pedem para ser escutados numa atitude de conversão. E nessa atitude têm de ser lidos, pregados, meditados e guardados no coração de cada crente e de cada comunidade. Uma comunidade cristã que sabe escutar cada domingo o relato evangélico de Jesus numa atitude de conversão, começa a transformar-se. Não tem a Igreja um potencial mais vigoroso de renovação que o que se encerra nesses quatro pequenos livros.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

ANO C – SEGUNDO DOMINGO DA QUARESMA – 21.02.2016

Escutemos o Filho de Deus e sigamos seu caminho de doação!
No segundo domingo somos convidados a perguntarmo-nos: Onde erguemos a tenda do nosso encontro com Deus? O brilho atraente dos momentos de êxtase e dos grandes e festivos encontros, podem nos afastar da exigente missão de encarnar a fé na vida cotidiana.  A oração inicial nos convida a ouvir o Filho Amado do Pai, a purificar o nosso olhar e a buscar a verdadeira face de Deus. E Paulo nos adverte insistentemente, e em lágrimas: não nos comportemos como inimigos da cruz de Cristo, ou seja: não corramos atrás de facilidades, sucessos, prosperidades... Deus usa roupas de servo, porque essa é sua essência. Por isso, nada de tendas longe da luta por um mundo fraterno, casa de todos...
A cena do Evangelho de hoje é precedida por uma catequese muito exigente de Jesus aos discípulos. Depois de ter sido reconhecido formalmente por Pedro como “o Cristo de Deus”, Jesus acrescentara:  “É necessário o Filho do Homem sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos, sumos sacerdotes e escribas, ser morto e, no terceiro dia, ressuscitar” (Lc 9,22). E dissera, voltando-se aos que o seguiam: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz, cada dia, e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá, e quem perder sua vida por causa de mim a salvará” (Lc 9,23).
Parece que os discípulos não conseguem entender e aceitar este caminho proposto por Jesus. Sentem-se envergonhados e desconcertados diante de um Messias servidor e perseguido. Resistem a um caminho que os levará a ser companheiros dele no anúncio do Reino e na perseguição. Não passa pela cabeça dos discípulos carregar a cruz da rejeição e da criminalização, imposta a quem ousa se rebelar contra os poderes do Império. Eles lutam desesperadamente contra essa posibilidade. Segundo Lucas, esta luta interior dos discípulos se prolongava por mais ou menos oito dias.
É neste contexto que Jesus, pressionado pelos próprios discípulos, sente necessidade de se retirar para rezar e discernir o caminho que deve seguir para revelar o rosto do Pai e realizar sua vontade libertadora. Chama e leva consigo Pedro, Tiago e João, os primeiros discípulos que havia chamado a segui-lo, mas também os mais resistentes ao caminho que propunha e os mais aferrados às ambições de poder e à imagem de um Messias potente e vitorioso. O medo e a resistência dos discípulos se mostra também no sono, como aconteceria de novo mais tarde, no Jardim das Oliveiras (cf. Lc 22,45)...
O sono expressa o desejo de fugir, de dar as costas, de voltar atrás, de não escutar nada senão as próprias ideias e ambições... Os discípulos simplesmente não suportam escutar o diálogo de Jesus com Moisés e Elias, respectivamente, guia e profeta do povo, ambos duramente perseguidos e não muito bem-sucedidos. O diálogo é sobre o êxodo de Jesus que aconteceria mais tarde em Jerusalém: o enfrentamento com os poderes opressores e a saída das malhas de uma religião estreita e sedenta de sucesso, discriminadora e opressora dos mais fracos. Essa conversa não interessava aos discípulos...
O trio resistente e sonolento é despertado pelo brilho de Jesus e seus convidados, não pelo conteúdo da conversa. A glória e o poder estão sim no horizonte do interesse deles, tanto que desejam reter o tempo, separar os espaços e eternizar esta agradável visão. Estando todos atordoados e sem saber o que dizer, Pedro toma a iniciativa: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas...” Não lhes interessa acolher e compreender nem as palavras de Jesus, nem a memória do êxodo e da profecia. O que desejam é lugares nos quais possam encontrar paz e sossego, longe dos desafios da missão.
Mas a glória e o esplendor do poder não são expressões inequívocas de Deus e da realização da sua vontade. É a sombra tenebrosa de uma nuvem – imagem daquela nuvem que acompanhara o povo na caminhada através do deserto e envolvera a montanha na celebração da Aliança – que desfaz o entusiamo dos discípulos e os conduz à verdade à qual resistem: “Este é o meu filho, o eleito. Escutai-o!” É a profecia e o serviço, e não as vestes de glória, que manifestam o esplendor de Deus... Nenhum discípulo pode fechar os ouvidos a esta exigente Palavra!
Jesus de Nazaré, companheiro de Moisés e de Elias, filho amado do Pai. Por vezes tua liberdade nos causa vertigens e tua compaixão nos assusta. Ajuda-nos a contemplar teu rosto nesta terra povoada de gente que deseja ardentemente viver. Ensina-nos a escutar tua Palavra sussurrada nas atitudes inquietas e nas ações indignadas e até violentas das pessoas e grupos a quem foram roubados os sonhos. E dá-nos a humilde e a sabedoria para acompanhá-las no caminho de descida que possibilita o verdadeiro encontro contigo. Tu que és vida, lealdade e caminho. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro do Gênesis 15,5-12.17 * Salmo 26 (27) * Carta aos Filipenses 3,17;4,1 * Evangelho de Lucas 9,28-36)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

ANO C – PRIMEIRO DOMINGO DA QUARESMA – 14.02.2016

Evitemos a tentação das soluções fáceis e fabulosas.
Escrevendo aos cristãos de Roma, Paulo sublinha enfaticamente que, a partir de Jesus, as diferenças religiosas, culturais e nacionais não importam mais: todos têm o mesmo Senhor, que é generoso para com todos os que a ele se abrem e o invocam. Esta é uma boa notícia, uma mensagem acessível e estimuladora. Ao mesmo tempo, é um profético apelo à comunhão ecumênica e à abertura à verdade do outro, a eliminar os preconceitos e interesses que nos levam a julgar os outros como inferiores e maus. Infelizmente, é isso que vem marcando a política e a comunicação no Brasil ultimamente...
Depois do batismo no rio Jordão, Jesus sentiu necessidade de compreender melhor as palavras do profeta João, aquilo que viu e a missão que recebeu. E fará isso ao longo da sua vida, mas Lucas condensa este discernimento num tempo (quarenta dias) e num lugar (no deserto) bem determinados. Com isso, o evangelista quer sublinhar a total identificação de Jesus com com o povo hebreu e toda a humanidade, inclusive nas buscas e provas. Efetivamente, Jesus foi tentado ou provado, e não somente num período de quarenta dias... Uma leitura atenta dos evangelhos, especialmente do desfecho da missão de Jesus em Jerusalém, deixa claro que a tentação acompanhou Jesus durante toda sua vida.
O Espírito leva Jesus ao deserto, lugar da impotência, da carência e da dependência, mas o Tentador o conduz aos lugares altos, de onde a riqueza e o poder aparecem mais claramente... Aqui, o Diabo personifica as forças que se opõem ao plano de Deus, o espírito do poder, da dominação e da manipulação. Jesus se defronta com estas forças e caminhos: fugir das carências comuns a todos as criaturas e agir em causa própria? Seguir a lógica da riqueza e do poder que amedronta, expropria e oprime? Explorar a fé dos pequenos, manipular as escrituras e transformar a religião num espetáculo?
Prestemos atenção à segunda tentação. “O diabo o levou para o alto; mostrou-lhe, num relance, todos os reinos da terra, e lhe disse: eu te darei todo este poder e a riqueza destes reinos, pois a mim é que foram dados, e eu os posso dar a quem eu quiser.” A proposta é tentadora, mas o custo é altíssimo: renunciar à liberdade e à compaixão que caracterizam o ser humano e sustentam a convivência social. “Se te prostrares diante de mim, tudo isso será teu.” Riqueza e poder é o que os adversários da Vontade de Deus oferecem às pessoas que os servem, mas pedem em troca a obediência submissa...
Ao dizer que a pessoa humana não vive somente de pão, Jesusestá se referindo a Dt 8,3 e propondo a fidelidade aos princípios da Aliança como garantia de alimento para todos. Afirmando que só a Deus devemos adoração e culto, está descartando a meritocracia e afirmando que não é correto considerar tudo como mérito pessoal (Dt 6,10-15). Dizendo que não devemos colocar Deus à prova, tem diante de si a passagem Dt 6,16 e recorda o acontecimento de Massa, quando, atravessando o deserto, os hebreus protestaram contra Deus pela da falta de água.
Reconhecer nossos vínculos com Deus, com os irmãos e irmãs e com toda a criação, reconhecer que tudo é dom recebido e confiado ao nosso cuidado em favor de todos os seres humanos, é uma forma de manter um horizonte que transcende nossos interesses ou medos e de evitar o risco da idolatria. Não é Deus que limita se opõe à liberdade e à autonomia humanas, mas sim os valores e instituições menores que colocamos em seu lugar: dinheiro, poder, raça, indivíduo, nação e até a religião. A decisão está posta nas nossas mãos: a quem serviremos, obedeceremos e adoraremos?
As tentações fizeram parte da vida de Jesus e fazem parte da caminhada dos seus discípulos e discípulas (cf. Lc 8,13; 11,4; 22,31). Mas assim como Jesus resistiu às tentações, também seus discípulos e discípulas podem vencê-las. Por isso, além de lucidez para percebê-las, precisamos de coragem e estratégias adequadas para enfrentá-las. E a quaresma se nos oferece como um treinamento especial e intensivo para esta luta. Para resistir às tentações que, mesmo sob uma roupagem que aparenta sabedoria, felicidade e sucesso, deixemo-nos guiar pelo Espírito Santo e pelo Evangelho.  
Jesus de Nazaré, filho amado do Pai-Mãe, irmão e companheiro dos homens e mulheres nas grandes e pequenas tentações. Cura nossa liberdade e liberta nossas utopias, feridas pelo pecado da ambição. Ajuda-nos a descobrir, amar e internalizar tua Palavra, a fim de que ela sustente, guie e julgue todos os nossos projetos, decisões e ações. E não nos deixes ceder à tentação de negar nossa vulnerabilidade, de aderir à lógica do dinheiro e do poder e de manipular a fé dos pobres, substituindo a compaixão regeneradora pela busca da prosperidade. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Livro do Deuteronômio 26,4-10 * Salmo 90 (91) * Carta aos Romanos 10,8-13 * Ev. de Lucas 4,1-13)

domingo, 7 de fevereiro de 2016

ANO C – QUARTA-FEIRA DAS CINZAS – 10.02.2016

Cuidar da casa comum é responsabilidade de cada um!

O período quaresmal se abre como um tempo de convergência de forças na busca do essencial, como um convite a voltar a Deus de todo o coração, a vencer a tendência à fragmentação e à indiferença, a verter todas as as energias para o único objetivo realmente decisivo: acolher a oferta de reconciliação que o próprio Deus nos faz; refazer as relações fraternas e avançar na construção de uma sociedade justa. E, neste ano, a Campanha Ecumênica da Fraternidade nos chama à responsabilidade pelo cuidado da terra, nossa casa comum, com uma atenção particular ao saneamento básico em benefício de todos.
Escrevendo aos cristãos de Corinto, Paulo sublinha que o próprio Deus toma a iniciativa de refazer a sua aliança conosco e superar a ruptura que provocamos com a sua proposta: em Jesus Cristo, ele reconciliou definitivamente consigo o mundo e cada um de nós. É deste dom incondicional, desta amizade reatada unilateralmente, que brota para nós a exigência de reconciliação com o Pai e com os irmãos e irmãs. Para os cristãos, isso não é algo secundário, mas uma tarefa essencial. É coisa para hoje, para agora! “É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação!”, sublinha São Paulo.
A tradição das comunidades cristãs privilegiou três ações para expressar a mudança de direção e a convergência de forças que marcam o tempo quaresmal: a esmola, a oração e o jejum. Mas, em relação a estas práticas de piedade, Jesus Cristo pede vigilância e auto-crítica, pois nem mesmo estas ações estão livres da falsificação e do faz-de-conta. Por mais piedosos que pareçam, estes gestos podem ser motivados apenas pela busca de aprovação, de estima e de reconhecimento e, então, nos afastam da lógica de Deus, pois ele espera de nós mais justiça que piedade. “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca!”
Em relação à tradição da esmola, Jesus não a descarta, mas também não se entusiasma ingenuamente. De fato, ele questiona a motivação e a disposição com a qual costumamos dar esmola. “Não mande tocar trombeta na frente... Que a sua mão esquerda não saiba o que a sua direita faz...” O sentido autêntico da esmola é a solidariedade e a partilha daquilo que temos com as pessoas mais necessitadas que nós. Mais que dar daquilo que sobra ou não faz falta, a esmola deve ser partilha aquilo que é fruto da terra e do trabalho da humanidade e que, por isso mesmo, pertence a todos.
A maioria das religiões vê a oração como uma privilegiada expressão de fé e de comunhão com a divindade. E não faltam pregadores que insistem na necessidade de rezar muito, de multiplicar terços, ladainhas, missas e promessas. Mas Jesus insiste mais na qualidade e na motivação que na quantidade da oração.  Para ele, a oração é abertura radical a Deus e à sua vontade; superação dos estreitos limites dos nossos gostos, preferências e necessidades; diálogo íntimo e amigo com Aquele que quer nosso bem e que não descansa enquanto todos os seus filhos e filhas não vivem plenamente.
Quanto ao jejum, hoje ele está de novo na moda, e recebe o simpático nome de dieta. Mas quem a pratica está muito preocupado consigo mesmo – com  a saúde ou com a aparência – e pouco interessado na compaixão e na partilha. No tempo de Jesus, muitas pessoas usavam o jejum, sinal de arrepedimento e de mudança, para impressionar os outros e aumentar a influência e o poder sobre eles. Como cristãos, precisamos resgatar o sentido pedagógico do jejum: fazer experiência da própria vulnerabilidade e participar solidariamente das necessidades dos irmãos e irmãs.
Na espiritualidade quaresmal, o jejum, a esmola e a oração estão a serviço do fortalecimento para combater todas as formas de mal, da nossa conversão ao tesouro do reino de Deus, da renovação da nossa vida em todas as suas expressões. E isso se mostra cotidianamente na abertura humilde e reverente a Deus,  na consciência da interdependência em relação aos nossos irmãos e irmãs, na luta permanente para superar a indiferença e o pragmatismo interesseiro que pode guiar as igrejas e religiões em suas relações com a sociedade civil e o estado brasileiro.
Deus da vida, da justiça e do amor, Tu fizeste com ternura o nosso planeta, morada de todas as espécies e povos. Tu queres a humanidade e as Igrejas convivendo como uma grande família, na qual estão incluídas também as demais criaturas. Ajuda-nos a sermos cuidadores de um jardim que reflita claramente a harmonia, a diversidade e a comunhão que desejas desde sempre. E dá-nos assumir, na força da fé e em irmandade ecumênica, a corresponsabilidade na construção de um mundo sustentável e justo, para todos. No seguimento de Jesus, com a alegria do Evangelho e com a opção pelos pobres. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Profeta Joel 2,12-18 * Salmo 50 (51) * Segunda Carta aos Coríntios 5,20-6,2 * Mateus 6,1-6.16-18)

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Para aLém de um simples mosquito

A GUERRA CONTRA O MOSQUITO
Temos medo de muitas coisas hoje em dia: da violência, do trânsito, da insegurança do amanhã, de quanto vai ser a conta da luz no fim do mês, de quantos mais impostos o governo vai inventar para assaltar nosso bolso etc. Por trás de todos esses medos, existe algo maior, mais forte, mais poderoso que nós. Por isso, nos parece um tanto estranho que nesses tempos mais recentes nosso maior receio seja de um pequeno mosquito.
Pois é verdade, sem tirar nem por: um mosquito. Pequeno, com asas e ferrão afiado. Com essas pequenas armas ele está tirando o nosso sossego e nos fazendo enfrentar uma epidemia nos moldes daquelas que já acreditávamos desterradas pelos progressos da medicina e da imunização. Nosso inimigo tem um nome latino que soa sofisticado: Aedes Aegypti. E com seu zumbido e suas mordidas está tirando o sono dos brasileiros.
O Brasil está enfrentando uma epidemia de zika, doença aparentada com a dengue, já nossa velha conhecida. Os sintomas são parecidos, porém mais brandos do que os da dengue: febre, dor de cabeça, dor no corpo e nas juntas, coceira e manchas avermelhadas espalhadas pelo corpo.
O mais assustador é o Ministério da Saúde ter confirmado que este vírus transmitido pelo mosquito está estreitamente relacionado com a microcefalia, uma doença que pode atingir o feto, fazendo com que a criança nasça com o perímetro cefálico menor que o convencional, que é de 33 centímetros. O bebê pode morrer ou apresentar diversas sequelas graves no seu desenvolvimento: dificuldade de visão, de audição e retardo mental.
A região do país mais afetada pelo surto de microcefalia é o Nordeste. O alerta foi dado nos hospitais e maternidades de Pernambuco e do Ceará. Desde então, o zika alastrou-se como um rastilho de pólvora que ateou fogo rapidamente por onde passava. Hoje, milhares de casos suspeitos da doença são investigados.
O pânico é maior entre as grávidas. As autoridades sanitárias não poupam conselhos, advertências, orientações às gestantes ou às mulheres que desejam ter filhos. Chegam a sugerir que elas adiem este projeto e esperem a epidemia ser controlada. E fazem recomendações óbvias, como a importância de se submeterem a todos os exames habituais, além do acompanhamento pré-natal. Como se isso não fosse recomendável em qualquer gravidez, mesmo a mais saudável.
Como em toda crise – e essa indubitavelmente entra nessa categoria – os problemas éticos e morais começam a emergir. Discute-se a pertinência ou não de interromper a gravidez quando acontece a doença; levanta-se a hipótese de que ser contra o aborto é punir os pobres por não terem recursos para tal.
O que me surpreende é que o foco das discussões e debates esteja tão distanciado daquilo que deveria ser o centro das preocupações de todos: o combate ao mosquito.
Com todas essas notícias apavorantes veiculadas exaustivamente pelos meios de comunicação, ainda se descuida da água parada, local ideal para a proliferação do mosquito, dos focos onde as larvas se reproduzem e se desenvolvem.
Por outro lado, constata-se o despreparo não apenas sanitário, mas também ético e moral para lidar com as situações que o mosquito provoca. Instituições de saúde que dedicam atenção exclusiva a pessoas com lesão cerebral ou problemas dela oriundos estão preocupadas com a epidemia. A lesão cerebral pode acontecer associada à microcefalia. Portanto, o crescimento da epidemia representaria um aumento exponencial dos casos a serem atendidos.
E além das dificuldades financeiras para a manutenção, essas instituições enfrentam outros problemas, como o abandono do doente pela família. Muitos pequenos pacientes com lesões cerebrais são abandonados após a internação.
O medo não é só do mosquito, mas das marcas que ele deixa sobre as pessoas. E numa sociedade como a nossa, que só valoriza a eugenia e o sucesso, a presença no seio da família de uma criança com dificuldades sérias para mover-se, aprender a comunicar-se é um estorvo do qual desviamos os olhos.
Pensamos que estamos conquistando os últimos limites da ciência e, no entanto, sentimo-nos ameaçados por um simples mosquito. Pisamos na lua e queremos ir a Marte, mas não sabemos entrar na terra sagrada da compaixão para acolher um ser vulnerável e desvalido em nosso próprio meio.
Combater o mosquito é necessário. Mas talvez mais ainda seja combater nosso egoísmo e nossos demônios interiores. Pois atrás do mosquito vem gente. E gente não se fumiga, nem se afasta com repelente. Gente se acolhe, se trata, se cuida. Que o zika, que ameaça atrofiar cérebros e cujo combate já mostramos incompetência não atrofie nosso coração!

Maria Clara Bingemer

O Evangelho dominical

RECONHECER O PECADO

O relato da pesca milagrosa no lago da Galileia foi muito popular entre os primeiros cristãos. Vários evangelistas recolhem o episódio, mas só Lucas culmina a narração com uma cena comovedora que tem por protagonista Simão Pedro, discípulo crente e pecador ao mesmo tempo.
Pedro é um homem de fé, seduzido por Jesus. As Suas palavras têm para ele mais força que a sua própria experiência. Pedro sabe que ninguém se põe a pescar ao meio dia no lago, sobretudo se não capturaram nada pela noite. Mas foi dito por Jesus e Pedro confia totalmente Nele: «Apoiado na Tua palavra, lançarei as redes».
Pedro é, ao mesmo tempo, um homem de coração sincero. Surpreendido pela enorme pesca obtida, «atira-se aos pés de Jesus» e com uma espontaneidade admirável diz-lhe: «Afasta-te de mim, que sou pecador». Pedro reconhece ante todos a sua absoluta indignidade para conviver de perto com Jesus.
Jesus não se assusta de ter junto a si um discípulo pecador. Pelo contrário, sentindo-se pecador, Pedro poderá compreender melhor a Sua mensagem de perdão para todos e o Seu acolhimento a pecadores e indesejáveis. «Não temas. Desde agora, serás pescador de homens». Jesus tira-lhe o medo de ser um discípulo pecador e associa-o à Sua missão de reunir e convocar a homens e mulheres de todas as condições a entrar no projeto salvador de Deus.
Porque a Igreja resiste tanto a reconhecer os seus pecados e a confessar a sua necessidade de conversão? A Igreja é de Jesus Cristo, mas ela não é Jesus Cristo. A ninguém pode estranhar que ela tenha pecado. A Igreja é «santa» porque vive animada pelo Espírito Santo de Jesus, mas é «pecadora» porque não poucas vezes resiste a esse Espírito e se afasta do evangelho. O pecado está nos crentes e nas instituições; na hierarquia e no povo de Deus; nos pastores e nas comunidades cristãs. Todos necessitamos conversão.
É muito grave habituar-nos a ocultar a verdade pois impede-nos de comprometer-nos numa dinâmica de conversão e renovação. Por outro lado, não é mais evangélica uma Igreja frágil e vulnerável que tem a coragem de reconhecer os seus pecados, que uma instituição empenhada inutilmente em ocultar ao mundo as suas misérias? Não são mais credíveis as nossas comunidades quando colaboram com Cristo na tarefa evangelizadora, reconhecendo humildemente os seus pecados e comprometendo-se a uma vida cada vez mais evangélica? Não temos muito que aprender também hoje do grande apóstolo Pedro reconhecendo o seu pecado aos pés de Jesus?

José Antonio Pagola

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Os primeiros discipulos

O chamado dos primeiros discípulos (Lc 5,1-11)

Neste texto, Lucas conta como Pedro foi chamado por Jesus e como ele entrou na caminhada. Primeiro, escutou as palavras de Jesus ao povo. Em seguida, presenciou a pesca milagrosa. Foi só depois desta dupla experiência surpreendente que veio o chamado de Jesus. Pedro atendeu, largou tudo e se tornou "pescador de gente". 
SITUANDO
No capítulo 4, Jesus iniciou sua missão e, até agora, era só ele que anunciava a Boa Nova do Reino. Agora, neste terceiro bloco, outras pessoas vão sendo chamadas e envolvidas na missão junto com Jesus. Esse jeito de Jesus trabalhar em equipe é também uma Boa Nova para o povo. Assim, pela força do Espírito, o Novo vai abrindo caminho e a transformação vai acontecendo.
O Evangelho de Marcos situa o chamado dos primeiros discípulos logo no início do ministério público de Jesus (Mc 1,16-20). Lucas o situa depois que a fama de Jesus já se havia espalhado por toda a regi"ao (Lc 4,24). Jesus já havia curado muita gente e pregado nas sinagogas de todo o país. O povo já o procurava em massa e a multidão o apertava por todos os lados para ouvir a Palavra de Deus. Lucas torna o chamado mais compreensível.
COMENTANDO
1. Lucas 5,1-3: Jesus ensina a partir da barca
O povo busca Jesus para ouvir a Palavra de Deus. É tanta gente que se junta ao redor, que ele fica comprimido. Jesus busca ajuda com Simão Pedro e mais alguns companheiros que acabavam de voltar de uma pescaria. Ele entra no barco deles e, de lá, responde à expectativa do povo, comunicando-lhe a Palavra de Deus. Sentado, Jesus tem a postura e a autoridade de um mestre, mas ele fala a partir da barca de um pescador. A novidade consiste no fato de ele ensinar não só na sinagoga para um público selecionado, mas em qualquer lugar onde tenha gente que queria escutá-lo, até mesmo na praia.
2. Lucas 5,4-5: Pela tua palavra lançarei as redes!
Termina a instrução ao povo, Jesus se direge a Simão e o anima a pescar de novo. Na resposta de Simão transparecem frustração, cansaço e desânimo: "Mestre, pelejamos a noite toda e não pescamos nada!" Mas, confiantes na palavra de Jesus, eles voltam a pescar e continuam a peleja. A palavra de Jesus teve mais força do que a experiência frustrante da noite! É o que estava acontecendo nas comunidades do tempo de Lucas, e acontece conosco, até hoje.
3. Lucas 5, 6-7: O resultado é surpreendente
A pesca é tão abundante que as redes quase se rompem e as barcas ameaçam afundar. Simão precisa da ajuda de João e Tiago, que estão na outra barca. Ninguém consegue ser completo sozinho. Uma comunidade deve ajudar a outra. O conflito entre as comunidades, tanto no tempo de Lucas como hoje, deve ser superado em vista do objetivo comum, que é a missão. A experiência da força transformadora da Palavra de Jesus é o eixo em torno do qual as diferenças se abraçam e se superam.
4. Lucas 5, 8-11: Sejam pescadores de gente!
A experiência da proximidade de Deus em Jesus faz Simão perceber que ele é: “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador!” Diante de Deus somos todos pecadores! Pedro e os companheiros sentem medo e, ao mesmo tempo, se sentem atraídos. Deus é um mistério fascinante: mete medo e atrai, ao mesmo tempo. Jesus afasta o medo: "Não tenham medo!" e os chama; "Venham!" Ele os compromete na missão e manda que sejam pescadores de gente. Eles experimentam, bem concretamente, que a Palavra de Jesus é como a Palavra de Deus. Ele é capaz de fazer acontecer o que diz. Em Jesus aqueles rudes trabalhadores fizeram uma experiência de poder, de coragem e de confiança. Então, "deixaram tudo e seguiram a Jesus!".
Carlos Mesters e Mercedes Lopes

ANO C – QUINTO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 07.02.2016

Precisamos avançar para águas mais profundas!

Nos primeiros domingos do tempo comum somos brindados com belíssimos encontros com a Palavra de Deus. Depois do episódio da sinagoga de Nazaré, quando Jesus foi expulso da cidade depois de apresentar-se como o profeta que prioriza a vida dos marginalizados, temos hoje o belo relato da pesca que termina em vocação. Jesus já havia estado em Cafarnaum e curado um homem possuído por um espírito impuro, a sogra de Pedro curvada sob a febre, e muita gente que estava doente (cf. Lc 4,31-41). Jesus então se retira para rezar (cf. Lc 4,42-44)... E agora chama e reúne os primeiros colaboradores.
Simão, Tiago e João voltam de uma noite de trabalho. Os barcos estão vazios de peixe e cheios de frustração e cansaço. Jesus vê os barcos parados à margem do lago e, mesmo percebendo que os pescadores não estão interessados na sua palavra, pede licença e sobe num dos barcos. É de dentro da própria vida, da lida cotidiana frequentemente dura e às vezes vazia, que Jesus se aproxima do povo e assegura que as promessas de Deus estão se cumprindo, que com ele uma boa notícia finalmente é anunciada aos pobres e opimidos. Jesus entra na nossa vida e, desde o interior dela, nos ama e chama...
Os pescadores e candidatos a discípulos não parecem muito interessados com o que está acontecendo naquele momento às margens do lago de Genesaré. O cansaço e a sensação de frustração os invade por inteiro. Não vislumbram um horizonte que não seja voltar ao mesmo e rotineiro trabalho na noite seguinte. Para eles, a vida dos trabalhadores não pode fazer concessão a sonhos e utopias... Seu destino está desde sempre escrito a ferro e fogo nas instituições. Poderiam repetir o ditado: ‘A vida é um combate que aos fracos abate’. Inicialmente, o jovem pregador não suscita neles nenhuma expectativa.
Não é muito diferente a vida de muitos cristãos. Infelizmente, são muitos aqueles que se contentam com as rotinas de uma cultura religiosa recebida por herança e conservada por inércia. Outros vivem a fé como um fardo que cansa ou como um hábito que envergonha. Permanecem cristãos por conveniência ou por medo de mudar, mas exalam vazio e a frustração por todos os poros. E o que dizer dos bispos, padres, religiosos e catequistas que se conformam com às ‘antigas lições’ e não cansam de lamentar o vazio dos tempos e a falta de perseverança dos catequizandos?
Jesus pede que Pedro avance para águas mais profundas e recomece a pesca. A superficialidade sempre nos parece tentadoramente segura, mas normalmente também é menos fecunda. Lugares profundos costumam ser arriscados e exigem prudência e habilidade, mas a prudência não pode impedir o avanço. A superficialidade conduz inexoravelmente à esterilidade. A abertura e obediência à Palavra abre portas à abundância e à fecundidade. Como Pedro, precisamos superar a idéia de que somos pescadores experientes e tornarmo-nos discípulos e aprendizes.
Em atenção à Palavra de Jesus, Pedro lança as redes novamente, e o resultado é surpreendente. Ele então reconhece e sublinha sua indignidade, mas Jesus não dá ouvidos às suas palavras. “Não tenhas medo! De agora em diante serás pescador de homens!” E ‘pescar’ (zôgreô) significa literalmente: vivificar, reunir para conservar a vida (como fez o herói nacional Sepé Tiarajú, cuja memória celebramos neste domingo). E este chamado que Jesus dirige Pedro não é isolado: Tiago e João, companheiros e sócios no ofício da pesca, são agora também companheiros e participantes desta nova identidade e missão. “Eles levaram os barcos para a margem, deixaram tudo e seguiram Jesus.”
Há uma uma constante no verdadeiro encontro com Deus: somos colocados cara a cara com a nossa realidade mais profunda e autêntica. Nossa verdade é a vulnerabilidade e a finitude, e, se as esquecemos ou negamos, a humanidade acaba pagando um alto preço. Mas, ao mesmo tempo, nos descobrimos preciosos aos olhos de Deus. Ele dá impérios em troca da nossa liberdade (cf. Is 43,3-4), tatua nosso nome na palma da sua mão (cf. Is 49,16) e, tocando nossos lábios, perdoa nosso pecado e confirma nossa dignidade. E nos engaja, lado a lado, ombro a ombro, na sua própria missão...
Jesus de Nazaré, peregrino nos santuários das dores e buscas humanas... Vem, entra nesta barca que é a tua Igreja e transforma seus tímidos viajantes em ardorosas testemunhas. Abre nossos ouvidos à tua Palavra, preenche nossos vazios com tua presença, cura nossas frustrações e desamarra as mãos que o medo e a acomodação imobilizaram. Engaja-nos na tua missão de reunir teus irmãos e irmãs, de promover e conservar a vida e de anunciar uma Boa Notícia que faça sentido às pessoas do nosso tempo. E isso sem esquecer que somos sempre simples discípulos e servidores. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Profecia de Isaías 6,1-8* Salmo 137 (138) * 1ª Carta aos Coríntios 15,1-11 * Evang. Lucas 5,1-11)