Não vivemos um tempo de julgamento, mas de conversão!
“Castigo
de Deus por causa dos ritos idolátricos do vudu”. Esta foi a terrível leitura
que um pastor estadunidense fez do terremoto que destruiu o Haiti e vitimou
nossa conhecida doutora Zilda Arns no início do no 2011. Devemos perguntar a ele: o mesmo vale para o
furacão Caterina, que há alguns anos arrasou parte dos EUA, e para o terromoto
que destruiu uma região na Itália em plena semana-santa do ano 2009?
Infelizmente nunca faltam pessoas que se comprazem em culpalizar as vítimas e
alforriar os algozes, nem aquelas que se empenham em convencer-nos de que as
tragédias que se multiplicam não passam de fatalidades imprevisíveis...
Todos
resistimos a encarar e dar nomes aos males que nos rodeiam e com os quais às
vezes colaboramos. Acontece que, para ver a realidade, é preciso ter olhos
perfeitos, mas isso não é suficiente. A realidade é dura e desafia os sentidos
e a inteligência. O conhecimento e o reconhecimento dos fatos e das pessoas
supõem abertura, sensibilidade, conversão. Somos como Moisés que, num primeiro
momento, só consegue ver ovelhas, pastagens, trabalho, projeto pessoal de vida.
O máximo que consegue é deixar-se impressionar por algo que queima e não se
extingue...
Deus
irrompe na vida de Moisés a partir do sofrimento do seu povo. Este sofrimento
profundo, intenso e real é simbolizado no fogo. Deus chega dizendo, quase aos
gritos, que está vendo a opressão do seu povo, que os sofrimentos dele ferem
seu coração e os clamores ferem seus ouvidos, que desceu para fazê-lo subir. É
como se Deus dissesse a Moisés: ‘E você não vê nada, não escuta nada? ’ Damo-nos
conta de que nosso ver e nosso julgar estão sempre a serviço de uma determinada
ideologia, que comportam uma visão de pessoa, um ideal de sociedade e uma
ética.
Esta
questão está bem ilustrada no episódio narrado por Lucas, no evangelho do
terceiro domingo da quaresma. O contexto mais amplo é o ensino de Jesus sobre a
missão profética e solidária dos discípulos e sobre a necessidade de
interpretar corretamente os sinais dos tempos. Alguns fariseus interrompem a
catequese de Jesus trazendo a notícia de que um grupo de galileus rebeldes fora
assassinado por Herodes no templo. É evidente que com isso eles querem censurar
e advertir Jesus, como se dissessem: ‘Continue assim, e verás o que acontecerá contigo!...
’
Mas por
trás disso está também uma acusação às próprias vítimas: sabendo ou não,
Herodes representaria a mão de Deus, que estaria punindo aqueles que, de alguma
forma, eram culpados. Uma leitura terrível de fatos em si mesmo trágicos!... Jesus
critica o preconceito dos fariseus frente aos galileus e questiona a leitura
justificadora e irresponsável que fazem dos fatos. E o faz chamando à memória
outra ocorrência, conhecida de todos: o acidente que matara 18 judeus em
Jerusalém. Com isso, Jesus questiona uma teologia escapista e cínica, e nos
chama à conversão profunda e imediata.
Com
firmeza e lucidez Jesus enfrenta, ao mesmo tempo, as tentativas que querem demovê-lo
da decisão de prosseguir sua missão profética e a teologia cínica elaborada e
ensinada pelos defensores do templo.
Afirmando que todos estamos sujeitos a errar ou a não atingir a meta de
uma vida justa, Jesus nos convida a deixar a cadeira de juízes e abrir os olhos
para uma realidade que é mais complexa que a simples divisão entre culpados e
inocentes. Ele nos propõe uma leitura profética da história, e nos chama a reconhecer
nossos próprios erros, mas sem fechar os olhos aos pecados estruturais.
O apelo
mais forte da liturgia do terceiro domingo da quaresma é à conversão, que
começa com uma mudança no nosso modo de ver a realidade e de julgar os fatos e
as pessoas. A conversão não se faz aos saltos, nem de uma vez para sempre.
‘Conversão, justiça, comunhão e alegria no cristão é missão de cada dia.’ A
conversão começa em Jesus, que nos ama de forma incondicional e aposta nas
nossas possibilidades e na nossa vontade. Mesmo não vendo os frutos esperados e
tendo motivos para não esperar qualquer mudança, ele se dispõe a adubar o
terreno com sua palavra e seu próprio corpo.
Jesus de Nazaré, Filho da Humanidade e
Filho de Deus! Envia teu Espírito para nos inspirar e manter no caminho de
conversão. Não nos deixes cair na tentação de pensar que o ambiente não é nossa
casa comum, de culpar as vítimas pelas próprias misérias e sofrimentos. Que
cada um de nós, nossas comunidades e movimentos, partindo da certeza de que Deus,
teu e nosso pai, é lento e suave na cólera, mas rápido e estável na bondade,
não tratemos com dureza as vítimas. Aduba nossa vida com tua Palavra, teu Corpo
e teu Sangue, para que possamos dar os frutos esperados. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Livro do Êxodo 3,1-8.13-15 * Salmo 102 (103) * Carta
aos Coríntios 10,1-12 * Evangelho de Lucas 13,1-9)
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