Evitemos a tentação das soluções fáceis e fabulosas.
Escrevendo
aos cristãos de Roma, Paulo sublinha enfaticamente que, a partir de Jesus, as
diferenças religiosas, culturais e nacionais não importam mais: todos têm o
mesmo Senhor, que é generoso para com todos os que a ele se abrem e o invocam.
Esta é uma boa notícia, uma mensagem acessível e estimuladora. Ao mesmo tempo,
é um profético apelo à comunhão ecumênica e à abertura à verdade do outro, a
eliminar os preconceitos e interesses que nos levam a julgar os outros como
inferiores e maus. Infelizmente, é isso que vem marcando a política e a
comunicação no Brasil ultimamente...
Depois do
batismo no rio Jordão, Jesus sentiu necessidade de compreender melhor as
palavras do profeta João, aquilo que viu e a missão que recebeu. E fará isso ao
longo da sua vida, mas Lucas condensa este discernimento num tempo (quarenta
dias) e num lugar (no deserto) bem determinados. Com isso, o evangelista quer
sublinhar a total identificação de Jesus com com o povo hebreu e toda a
humanidade, inclusive nas buscas e provas. Efetivamente, Jesus foi tentado ou
provado, e não somente num período de quarenta dias... Uma leitura atenta dos
evangelhos, especialmente do desfecho da missão de Jesus em Jerusalém, deixa
claro que a tentação acompanhou Jesus durante toda sua vida.
O Espírito
leva Jesus ao deserto, lugar da impotência, da carência e da dependência, mas o
Tentador o conduz aos lugares altos, de onde a riqueza e o poder aparecem mais
claramente... Aqui, o Diabo personifica as forças que se opõem ao plano de
Deus, o espírito do poder, da dominação e da manipulação. Jesus se defronta com
estas forças e caminhos: fugir das carências comuns a todos as criaturas e agir
em causa própria? Seguir a lógica da riqueza e do poder que amedronta,
expropria e oprime? Explorar a fé dos pequenos, manipular as escrituras e
transformar a religião num espetáculo?
Prestemos
atenção à segunda tentação. “O diabo o levou para o alto; mostrou-lhe, num
relance, todos os reinos da terra, e lhe disse: eu te darei todo este poder e a
riqueza destes reinos, pois a mim é que foram dados, e eu os posso dar a quem
eu quiser.” A proposta é tentadora, mas o custo é altíssimo: renunciar à
liberdade e à compaixão que caracterizam o ser humano e sustentam a convivência
social. “Se te prostrares diante de mim, tudo isso será teu.” Riqueza e poder é
o que os adversários da Vontade de Deus oferecem às pessoas que os servem, mas
pedem em troca a obediência submissa...
Ao dizer
que a pessoa humana não vive somente de pão, Jesusestá se referindo a Dt 8,3 e
propondo a fidelidade aos princípios da Aliança como garantia de alimento para
todos. Afirmando que só a Deus devemos adoração e culto, está descartando a
meritocracia e afirmando que não é correto considerar tudo como mérito pessoal
(Dt 6,10-15). Dizendo que não devemos colocar Deus à prova, tem diante de si a
passagem Dt 6,16 e recorda o acontecimento de Massa, quando, atravessando o
deserto, os hebreus protestaram contra Deus pela da falta de água.
Reconhecer
nossos vínculos com Deus, com os irmãos e irmãs e com toda a criação,
reconhecer que tudo é dom recebido e confiado ao nosso cuidado em favor de todos
os seres humanos, é uma forma de manter um horizonte que transcende nossos
interesses ou medos e de evitar o risco da idolatria. Não é Deus que limita se
opõe à liberdade e à autonomia humanas, mas sim os valores e instituições
menores que colocamos em seu lugar: dinheiro, poder, raça, indivíduo, nação e
até a religião. A decisão está posta nas nossas mãos: a quem serviremos,
obedeceremos e adoraremos?
As
tentações fizeram parte da vida de Jesus e fazem parte da caminhada dos seus discípulos
e discípulas (cf. Lc 8,13; 11,4; 22,31). Mas assim como Jesus resistiu às
tentações, também seus discípulos e discípulas podem vencê-las. Por isso, além
de lucidez para percebê-las, precisamos de coragem e estratégias adequadas para
enfrentá-las. E a quaresma se nos oferece como um treinamento especial e
intensivo para esta luta. Para resistir às tentações que, mesmo sob uma
roupagem que aparenta sabedoria, felicidade e sucesso, deixemo-nos guiar pelo Espírito Santo e pelo
Evangelho.
Jesus de Nazaré, filho amado do Pai-Mãe,
irmão e companheiro dos homens e mulheres nas grandes e pequenas tentações.
Cura nossa liberdade e liberta nossas utopias, feridas pelo pecado da ambição.
Ajuda-nos a descobrir, amar e internalizar tua Palavra, a fim de que ela
sustente, guie e julgue todos os nossos projetos, decisões e ações. E não nos
deixes ceder à tentação de negar nossa vulnerabilidade, de aderir à lógica do
dinheiro e do poder e de manipular a fé dos pobres, substituindo a compaixão regeneradora
pela busca da prosperidade. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Livro do Deuteronômio 26,4-10 * Salmo 90 (91) * Carta
aos Romanos 10,8-13 * Ev. de Lucas 4,1-13)
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