Sejamos
solidários com os jovens em seus sofrimentos!
(Ex 3,1-8.13-15; Sl 102/103; 1Cor
10,1-6.10-12; Lc 13,1-9)
“Castigo de Deus por causa dos ritos idolátricos do
vudu”. Esta foi a terrível leitura que um pastor estadunidense fez do terremoto
que destruiu o Haiti e vitimou nossa conhecida doutora Zilda Arns. Devemos perguntar a ele: o mesmo vale para o
furacão Caterina, que há alguns anos arrasou parte dos EUA, e para o terromoto
que destruiu uma região na Itália em plena semana-santa do ano 2009? Infelizmente
nunca faltam pessoas que se comprazem em culpalizar as vítimas e alforriar os
algozes, nem aquelas que se empenham em convencer-nos de que as tragédias que
se multiplicam não passam de fatalidades imprevisíveis. E tem gente que, para
desencorajar qualquer engajamento por um Outro
Mundo, se esmera em recordar o destino trágico dos/as sonhadores/as e dos lutadores/as.
Mas nos seguimos Jesus Cristo porque estamos dispostos/as a fazer-nos
solidários/as com as pessoas em seus sofrimentos, especialmente com os jovens, um
dos objetivos da Campanha da Fraternidade
deste ano.
“Vou
chegar mais perto para ver esta coisa estranha...”
Todos resistimos, mais ou menos, a encarar e dar nome
aos males que nos rodeiam e com os quais às vezes colaboramos, direta ou indiretamente.
Como ignorar sem culpa que os 300 maiores proprietários de terras do Brasil
possuem o equivalente aos estados de São Paulo e Paraná juntos? E que mais de
30% do orçamento do Brasil é consumido pelo pagamento de juros da dívida
pública, e só 11,73% vai para saúde, a educação,a habitação, a assistência
social, a segurança e saneamento?
Para ver a realidade é preciso ter olhos perfeitos,
mas isso não é suficiente. A realidade é dura e desafia os sentidos e a
inteligência. O conhecimento e o reconhecimento
dos fatos e das pessoas requer mais que inteligência: supõe abertura,
sensibilidade, saída de si, conversão. Somos como Moisés que, num primeiro
momento, só consegue ver ovelhas, pastagens, trabalho, interesses do sogro,
projeto pessoal de vida. O máximo que consegue é deixar-se impressionar por
algo que queima e não se extingue.
Deus irrompe na vida de Moisés a partir do sofrimento
do seu povo, simbolizado no fogo. Deus chega dizendo, quase aos gritos, que está vendo a opressão do seu povo, que
seus sofrimentos ferem seu coração e seus clamores ferem seus ouvidos, que
desceu para fazê-lo subir. É como se Deus dissesse a Moisés: ‘E você não vê
nada, não escuta nada?’ E nós, para onde voltamos nosso olhar e o que gostamos
de escutar? “Escutando e compreendendo os gritos e clamores dos jovens, a
Igreja é chamada não somente a evangelizar, mas também a ser evangelizada”, diz
o Texto-Base da CF 3013 (cf. n° 3).
“Pensais
que eram mais culpados do que qualquer outro?”
Não podemos esquecer que sobre a nossa ambígua
realidade existem leituras insuficientes, erradas e perversas. Nosso ver e nosso julgar estão sempre a
serviço de uma determinada ideologia, que comporta uma visão de pessoa, um
ideal de sociedade e uma ética. Esta questão está bem ilustrada no episódio
narrado por Lucas, no evangelho de hoje. O contexto mais amplo é o ensino sobre
a missão profética e solidária dos discípulos e sobre a necessidade de
interpretar corretamente os sinais dos tempos.
Alguns fariseus interrompem o ensino de Jesus trazendo
a notícia de que um grupo de galileus rebeldes fora assassinado por Herodes no
templo. É evidente que com isso eles querem censurar e advertir Jesus, como se
dissessem: ‘Continue assim e verás o que acontecerá contigo!’ Mas por trás disso
está também uma acusação às próprias vítimas: sabendo ou não, Herodes
representaria a mão de Deus, que puniu aqueles que, de alguma forma, eram
culpados. Uma leitura terrível de fatos em si mesmo trágicos.
Jesus critica o preconceito dos fariseus frente aos
galileus e questiona a leitura justificadora e irresponsável que fazem dos
fatos. E o faz chamando à memória outro fato, conhecido de todos: um acidente
que matara 18 judeus em Jerusalém. Com isso, Jesus não quer afirmar que tudo é
fatalidade. Ele deseja questionar uma teologia escapista e cínica, sempre
pronta a culpar as vítimas, defender os verdadeiros culpados e evitar o
exigente caminho da conversão.
“Se
vós não vos converterdes, perecereis todos do mesmo modo.”
Com firmeza e lucidez Jesus enfrenta, ao mesmo tempo,
as tentativas de desencorajá-lo de prosseguir sua missão profética e a teologia
cínica e discriminadora elaborada e ensinada pelos defensores do templo. Afirmando que todos estamos sujeitos a errar
ou não atingir a meta de uma vida justa, Jesus nos convida a deixar a cadeira
de juízes e a abrir os olhos para uma realidade que é mais complexa que a simples
divisão entre culpados e inocentes. Ele nos propõe uma leitura profética da
história e nos chama a reconhecer nossos próprios erros, assim como os males gerados
pelas estruturas sociais.
E a dura realidade dos jovens brasileiros está nesse
contexto: 40% das mortes dos jovens têm como causa o homicídio (enquanto que,
para o total da população, é de 2%); e a maioria das vítimas está entre os
jovens negros (a proporção é de dois jovens negros para cada jovem branco); a
maioria dos assassinatos ocorre nas camadas mais pobres da população e no
contexto do consumo e do tráfico de drogas. Não falta gente disposta a jogar a
culpa nas costas dos próprios jovens. Jesus nos interroga: “Pensais que eram
mais culpados do que qualquer outro morador de Jerusalém? Eu vos digo que não.”
“Corta-a! Para que está ocupando inutilmente a
terra?”
“Se não vos converterdes...” O apelo mais forte da
liturgia do terceiro domingo da quaresma é à conversão, que começa com uma
mudança no nosso modo de ver a realidade e de julgar os fatos e as pessoas. A
vida ambivalente que os jovens levam não é causa dos seus próprios sofrimentos
nem simplesmente parte de um problema maior: é funesta consequência de um sistema injusto e irresponsável, centrado
no maior desfrutamento possível e na lei do mais forte.
A conversão não se faz aos saltos, nem de uma vez para
sempre. ‘Conversão, justiça, comunhão e alegria no cristão é missão de cada
dia.’ E parte do próprio Jesus, que nos ama de forma incondicional e aposta nas
nossas possibilidades e na nossa vontade. Mesmo não vendo os frutos esperados e
tendo motivos para não esperar qualquer mudança da parte dos líderes religiosos
do seu tempo, Jesus, como bom agricultor, se dispõe a trabalhar e adubar o
terreno com sua palavra e seu próprio corpo.
Mas o processo de conversão, impulsionado pela
convicção de que o Reino de Deus está à porta e pela convocação a acreditar
nesta boa notícia, tem também seu tempo e
suas exigências. Que ninguém se resigne em ser como uma figueira “que está
ocupando inutilmente a terra”. “Mais um ano” é um tempo bem determinado e exige
responsabilidade! O perdão de Deus é
certo, mas o tempo de mudança é hoje, e não um hipotético amanhã. É para
ontem a necessidade de exercitar um novo estilo de vida!
“Estas coisas foram escritas como advertências
para nós.”
Paulo nos recorda que aquilo que lemos na Sagrada
Escritura foi escrito para nos advertir e orientar. “Estes acontecimentos se
tgornaram símbolos para nós... Estas coisas foram escritas como advertências
para nós.” Por isso não calemos nossa voz diante dos poderes que governam
ameaçando, armados de capacetes ou de mitras, mas evitemos a tentação do dedo
em riste contra quem quer que seja. A denúncia é indispensável, mas não é tudo.
O testemunho – pessoal e eclesial – conta mais, é irrefutável.
A retidão de Deus se manifesta na defesa dos
oprimidos, canta o salmista. Ele não se faz surdo aos clamores dos oprimidos,
nem cego aos sofrimentos que machucam a carne e a alma deles. Ele chama
aqueles/as que acreditam nele a ter o mesmo olhar e a mesma sensibilidade,
descendo para que os oprimidos possam sair da opressão e subir dos infernos da
dominação. Deus é misericordioso e compassivo, e espera de nós a compaixão e a
misericórdia. E estas não se reduzem a romântico e piedoso sentimento, mas
devem desembocar na indignação revolucionária que vemos hoje na juventude,
apesar das suas contradições, que, ademais, não são exclusividade dos jovens.
“Ele
te coroa com sua bondade e sua misericórdia!”
Jesus de Nazaré,
jovem galileu, Filho da Humanidade e Filho de Deus! Envia o teu Espírito, para
que ele nos inspire e mantenha no caminho de conversão que nos ofereces nesta
quaresma. Não nos deixes cair na tentação de fechar os ouvidos aos clamores dos
jovens, de fechar os olhos às dores dos oprimidos e de culpar as vítimas pelas
próprias misérias e sofrimentos. Que cada um de nós, nossas comunidades e
movimentos e a Igreja inteira, partindo da certeza de Deus, teu e nosso pai, é
lento e suave na cólera mas rápido e estável na bondade, não tratemos com
dureza as pessoas já frágeis. Aduba nossa vida com tua Palavra, teu Corpo e teu
Sangue, para que possamos dar os frutos esperados. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf