Ainda sobre a renúncia de Bento XVI
Estou
chegando da Celebração da Quarta-feira de
Cinzas, presidida pelo (ainda) Papa Bento XVI. A novidade inesperada da
renúncia, comunicada oficialmente na última Segunda-feira e prevista para o
próximo dia 28, fez com que a celebração, tradicionalmente realizada na Igreja
Santa Sabina (sede geral dos Dominicanos, situada próxima da nossa casa), fosse
deslocada para a Basílica São Pedro.
Fila para a Missa de Cinzas na tarde de hoje |
A
novidade da renúncia de Bento XVI ao mais alto cargo da Igreja Católica fez com
que uma multidão acorresse repentinamente à Basílica. O início da missa estava
previsto para as 17:00. Cheguamos (meus colegas Domingos e Genivaldo e eu) na
Paraça São Pedro antes das 15:00, e mais de 3000 pessoas já faziam fila. Eram muistíssimos
os religiosos, religiosas, seminaristas e padres que vestiam hábitos, uns
vistosos e outros discretos. A mistura destes com turistas bem pos-modernos
formava uma cena um pouco surreal.
A
celebração manteve o necessário caráter penitencial, próprio da Quaresma, mas
dentro da moldura de imponência, estabilidade e poder que caracterizam a
basílica São Pedro e os eventos que hospeda. Bento XVI fez algumas referências
ao fato que acaba de criar, mas, como é do seu estilo, permaneceu discreto (se
isso fosse possível no próprio coração de uma liturgia que prima pela
exuberância e pela grandeza e de uma multidão pronta a ovacioná-lo). O
diferencial foi o longuíssimo aplauso que se seguiu ao discurso de agradecimento
e despedida proferida pelo Cardeal Bertone. Poucas pessoas conseguem aceitar
que tudo termina em cinzas e pó, e não se conformam.
A Igreja é tudo?
Depois de
ler o anúncio de renúncia de Bento XVI e de ouvir o discurso do seu secretário
de Estado, olhando para as paredes e colunas da plurissecular basílica, percebi
claramente: para estes senhores – e para uma boa parcela dos cristãos católicos
– a Igreja é tudo: mãe querida a quem
tudo devemos, motivo de impagável alegria, razão de todos os sacrifícios, objeto
do mais desmedido amor. E onde ficam Jesus Cristo e o Reino de Deus, que deu
sentido e direção ao seu anúncio e à sua ação? Seriam apenas detalhes
irrelevantes, aspectos absolutamente dispensáveis? Alguém aceita ser Papa,
Bispo, Cardeal ou Catequista, se consagra como religiosa ou padre, apenas por
amor à Igreja? E por amor à Igreja o Papa também renuncia?
Se eu não
estou radicalmente enganado, isso é terrível. E perigoso. Na ‘hora H’ a Igreja
aparece como realidade absoluta, mesmo que, num e noutro momento, se diga que
ela fica aos cuidados do Bom Pastor. Como se nos tempos comuns bastasse estar
sob os cuidados do Papa. E como se Jesus se ocupasse inteiramente com a Igreja
e suas intrigas, e como se ele não se importasse com o Reinado de Deus, com o
resgate e a promoção da videa integral dos seus filhos e filhas. Deus me
perdoe, mas nas horas críticas, como as que estamos vivendo, acabamos revelando
o ‘núcleo duro’ que se esconde sob nossos discursos mais ou menos renovados: a
Igreja é tudo; o ‘resto’ é relativo... Pobre Jesus e pobre expectativa do Reino
de Deus...
Apenas um sinal de humildade e de liberdade?
A partir
do bombástico anúncio da renúncia, muito
se escreveu sobre os motivos e o sentido da decisão de Bento XVI. Como estou
envolvido numa atividade com um grupo de novos provinciais, não li muita coisa.
Mas percebi que muitos jornalistas e teólogos, inclusive notos opositores do
Papa Ratazinger, sublinham que a renúncia é uma expressão da liberdade e da
humildade que marcam sua personalidade e sua espiritualidade.
Efetivamente,
o Papa Ratzinger confessa publicamente sua fragilidade psíquica e física diante
da grande responsabilidade de guiar os fiéis católicos, e isso é um claro sinal
de humildade. Ao mesmo tempo, abre mão de um ministério e de uma autoridade que
lhe foram conferidas e que teria o direito de exercer até o fim dos seus dias,
e isso demonstra a liberdade e o desapego, inclusive frente a eventuais
críticas. Mas eu pergunto: isso é tudo e o mais importante?
Um recuo diante da complexidade?
Eu creio
que este angu esconde muitos outros ossos. E começo lembrando um dos mais
duros: as instrigas e guerras intestinas que medeiam os palácios vaticanos e
que se tornaram públicas com o vazamento dos documentos secretos, no caso
conhecido como Vaticanoleaks. Pouca
gente lúcida está disposta a engolir a versão de que tudo começa e termina com
o senhor Paolo Gabriele. Ele não passa de um bode expiatório, uma bucha de
canhão ou, na melhor das hipóteses, um inocente útil. Bento XVI se deu conta
das tramas que se fazem ao seu redor e da lama que corre logo abaixo do seu
plácido apartamento. E isso o assusta e imobiliza.
O segundo
osso, mais substancioso e difícil de ser identificado, é aquele que recebe o
nome decomplexidade. O mundo da
teologia e da doutrina, habitat no
qual José Ratzinger cresceu e se ambientou, é composto de teorias e leis claras
e distinttas, muito bem hierarquizadas. Nesta ótica, como não cansou de dizer e
escrever, os problemas se reduzem a um só: o
relativismo, filho da falta de fé e do secularismo. E se a doença é uma só,
basta um único remédio: a doutrina clara, a instituição eclesial forte, as
terapias de choque, o isolamento do paciente. As diversas resistências e
contestações – intra ou extra-eclesiais – acordaram o teólogo e papa para a
complexidade. Assustado e desconcertado, sentindo-se incapaz e despreparado,
decidiu fazer as malas.
Um papado com prazo de validade?
Mas a
decisão historicamente revolucionária de renunciar ao ‘ministério petrino’
poderá ter um efeito colateral positivo: o papado não será mais visto como um
ministério ad vitam, mas com data de
validade. O que passa a contar mesmo não é a estabilidade do ministério (e da
instituição à qual ele serve) mas as condições objetivas de realizá-lo de forma
eficaz e responsável. Pode ser que isso resgate de forma um pouco mais clara e credível
o seu caráter de serviço e coloque em segundo plano seu odor de honra, de
mérito ou de direito adquirido e vitalício.
Porém,
isso não é suficiente. Se não tivermos a coragem de recolocar o papado (assim
como os ministérios e funções) e toda a Igreja no seu devido lugar, avançaremos
pouco. Em outras palavras: funções e ministérios que se queiram cristãos devem
necessariamente pautar seu exercício por Jesus Cristo, colocando-se de forma
indivisa e irrestrita a serviço do Reino de Deus, vale dizer, da vida plena dos
homens e mulheres, começando pelos últimos. Sem isso, não passarão de recursos e
mecanismos a serviço do poder das instituições e dos setores sociais que as
controlam. E acabarão traindo clamorosamente Aquele que dizem anunciar e
servir.
Itacir
Brassiani msf
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