Em Quito, aos 28 de janeiro de 1912, uma mulher alta, toda
vestida de negro, amaldiçoa o presidente Alfaro enquanto crava o punhal em seu
cadáver. Depois levanta na ponta de um pau, bandeira ondulante, o ensanguentado
farrapo de sua camisa.
Atrás da mulher de negro, marcham os vingadores da
Santa Mãe Igreja. Com cordas vão arrastando, pelos pés, o morto despido. Das janelas
chovem flores. Gritam vivas à religião as velhas come-santos, engole-hóstias,
espalha-intrigas. Alagam-se de sangue as ruas empedradas, que os cães e as
chuvas nunca poderão lavar até o fim.
A carniçaria culmina em fogo. Acende-se uma grande
fogueira e nela atiram o que sobra do velho Alfaro. Depois pisam as cinzas os
assassinos e ladrões pagos pelos filhos dos senhores.
Eloy Alfaro tinha ousado desapropriar as terras da
Igreja, dona de muito Equador, e com suas rendas tinha criado escolas e
hospitais. Amigo de Deus, não do Papa, tinha implantado o divórcio e tinha
libertado os índios presos por dívidas. Ninguém era tão odiado pelos de batina
e tão temido pelos de casaca.
Cai a noite. Fede a carne quimada o ar de Quito. A
banda militar toca valsas e marchas no correto da Praça Grande, como em todos
os domingos.
(Eduardo Galeano, O
século do vento. Memória do fogo, vol. 3, L&PM Editores, Porto
Alegre, 2010, p. 58-59)
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