Precisamos
avançar para águas mais profundas!
(Is 6,1-8; Sl 137/138; 1Cor 15,1-11; Lc
5,1-11)
(http://www.opusdei.pt/art.php?p=47583) |
Nestes primeiros domingos do tempo comum estamos sendo
brindados com belíssimos encontros com a Palavra de Deus. Depois do episódio da
sinagoga de Nazaré, quando Jesus foi expulso da cidade depois de apresentar-se
como o profeta que veio para ir ao encontro dos marginalizados, temos hoje o
belo relato da pesca que termina em chamado. Jesus já havia estado em Cafarnaum e
curado um homem possuído por um espírito impuro, a sogra de Pedro curvada sob a
febre, e muita gente que estava doente (cf. Lc 4,31-41). Mesmo sendo procurado
por uma multidão de necessitados, Jesus se retirara para rezar, e tomara
consciência de que sua missão não poderia ficar restrita a Nazaré e a Cafarnaum
(cf. Lc 4,42-44) e que precisava de gente disposta aprender com ele e a
participar da sua missão. E desde então, não cessa de irromper na nossa
tranquila existência e provocar intermináveis redemoinhos...
“Certo
dia, Jesus estava à beira do lago de Genesaré.”
A vida cristã nasce de um encontro pessoal com Jesus
de Nazaré. As formas, tempos e lugares deste encontro são diversos, mas seu
núcleo é sempre o mesmo. Sem este encontro pode haver ideologia religiosa,
pertença sociológica à Igreja ou engajamento ético, mas não existe propriamente
vida cristã. O encontro pessoal com Jesus Cristo é uma espécie de raiz que
sustenta e alimenta tudo o mais. Sem isso, nossa fé corre o risco de permanecer
na exterioridade, na superficialidade e na esterilidade.
Mas este encontro nem sempre ocorre numa espécie de
meio vazio, com Jesus Cristo antes e o povo depois. Se não encontramos Jesus
ativo e compassivo junto ao povo que sofre, poderemos ter encontrado apenas uma
idéia desencarnada ou falsa de Jesus. “Jesus estava à beira do lago de
Genesaré, e a multidão se comprimia ao seu redor para ouvir a Palavra de Deus.”
É no meio de um povo sedento de boas notícias que os primeiros discípulos
encontram Jesus.
“Subiu
num dos barcos, o de Simão.”
Pode acontecer que o encontro vivo com Jesus Cristo
tenha lugar depois de uma longa e criteriosa busca, mediada por exercícios
espirituais e leituras teológicas. Mas pode suceder também que ele mesmo venha
ao nosso encontro, irrompendo exatamente no meio das nossas ocupações cotidianas,
rompendo com nossas rotinas e introduzindo novidades desestabiliadoras. O
silêncio das igrejas e a harmonia do canto gregoriano não as únicas vias de
acesso a Jesus de Nazaré.
Simão, Tiago e João voltam de uma noite de trabalho. Os
barcos estão vazios de peixe e cheios de frustração e cansaço. Jesus vê os
barcos e, mesmo percebendo que os pescadores não estão interessados na sua
palavra, pede licença e sobe num deles. É de dentro da própria vida,
frequentemente dura e às vezes vazia, que Jesus se aproxima do povo e assegura
que as promessas de Deus estão se cumprindo; que com ele uma boa notícia
finalmente é anunciada aos pobres e opimidos.
“Avança
mais para o fundo!”
Simão, Tiago e João não parecem interessados com o que
está acontecendo naquele momento às margens do lago de Genesaré. O cansaço e a
sensação do trabalho frustrado os invade por inteiro. Não vislumbram um
horizonte que não seja voltar ao mesmo trabalho na noite seguinte. Para eles, a
vida dos trabalhadores não pode fazer concessão a sonhos e utopias. Seu destino
está desde sempre escrito a ferro e fogo nas instituições. ‘A vida é um combate
que aos fracos abate’, diz o ditado.
Não é muito diferente a vida de muitos cristãos.
Infelizmente são muitos/as aqueles/as que se contentam com as rotinas de uma
cultura religiosa recebida por herança e conservada por inércia. Outros/as
vivem a fé como um fardo que cansa ou como um hábito que envergonha. Permanecem
cristãos por conveniência ou por medo de mudar, mas o vazio e a frustração
exalam por todos os poros. E o que dizer dos bispos, padres e catequistas que
se conformam com às ‘antigas lições’ e lamentam o vazio dos tempos e a falta de
perseverança dos catequizandos?
Jesus pede que Pedro avance para lugares mais fundos e
recomece a pesca.A superficialidade nos parece tentadoramente segura, mas
normalmente também é menos fecunda. Lugares profundos costumam ser arriscados e
exigem prudência e habilidade. Mas a prudência não pode impedir o avanço. Como
Pedro, precisamos superar a idéia de que somos pescadores experientes e
tornarmo-nos discípulos e aprendizes. A superficialidade conduz inexoravelmente
à esterilidade. A abertura e obediência à Palavra abre as portas à abundância e
à fecundidade.
“Sou
o menor dos apóstolos...”
Raramente o encontro existencial com Deus é sereno e
tranquilo. Frequentemente se assemelha a um terremoto, que destrói e
desestabiliza, que põe tudo de cabeça para baixo, que expõe nossa
vulnerabilidade à luz do sol. Diante de uma Presença gloriosa que enche e
ultrapassa o templo, Isaías descobre-se radicalmente incompetente e indigno:
“Ai de mim, estou perdido! Sou um homem de lábios impuros, vivo entre um povo
de lábios impuros...” E Pedro, diante do abundante resultado da pesca, cai de
joelhos e pede: “Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um pecador!” Paulo, por
sua vez, insiste que é o menor entre os apóstolos e se compara a um corpo
abortado.
E esta é uma constante no verdadeiro encontro com
Deus: somos colocados/as cara a cara com a nossa realidade mais profunda e
autêntica. Nossa verdade é a vulnerabilidade e a finitude, e, se as esquecemos
ou negamos, a humanidade acaba pagando um alto preço. Mas somos também
preciosos/as aos olhos de Deus. Ele dá impérios em troca da nossa liberdade
(cf. Is 43,3-4), tatua nosso nome na palma da sua mão (cf. Is 49,16) e, tocando
nossos lábios,perdoa nosso pecado e afirma nossa dignidade. Deus não é
ciumento, não assegura sua glória apagando o brilho das criaturas humanas.
A experiência de encontro com Deus suscita a
consciência de que somos criaturas. E isso significa, entre tantas coisas, que
aquilo que somos não é uma questão de mérito, mas de dom, de graça. “É pela
graça de Deus que sou o que sou”, proclama Paulo com humildade e gratidão. Somos
semelhantes a Deus, e isso significa que somos chamados a ser dom, gratuidade. Quem
se considera meritório/a acaba assumindo uma postura de credor/a e de cobrador/a
diante de tudo e de todos. Quem se descobre agraciado/a, sente-se livre e dá
livre vazão à própria generosidade.
“De
agora em diante serás pescador de homens!”
Mas o encontro vivo com Jesus Cristo, que é também um
encontro sincero com nossa verdade e nossa raíz mais profundas, não termina na
auto-complacência ou numa quietude muito mística e pouco cristã. Depois de
experimentar aquela Presença luminosa, que queimava e purificava como brasa,
Isaías não consegue fazer-se indiferente à voz que pergunta quem está disposto
a ser enviado, e responde: “Aqui estou! Envia-me!” E esta é também a
experiência de Pedro e seus companheiros.
Jesus parece não ter dado ouvidos às palavras sinceras
de Pedro, com as quais sublinhava sua indignidade. “Não tenhas medo! De agora
em diante serás pescador de homens!” E ‘pescar’ (zôgreô) significa literalmente: vivificar, reunir para conservar a
vida (como fez o herói nacional Sepé Tiarajú, cuja memória celebramos nesta
semana). E o chamado de Pedro não é isolado. Tiago e João, companheiros e
sócios no ofício da pesca, descobrem-se também companheiros e participantes da
nova missão. “Eles levaram os barcos para a margem, deixaram tudo e seguiram
Jesus.”
Se Deus nos acolhe e ama gratuitamente, sua graça não
pode parar em nós. Quem
recebe algo como presente não é devedor, mas precisa ser agradecido. A graça se
realiza plenamente em nós quando nos tornamos pessoas agradecidas e gratuitas,
quando amamos e acolhemos como fomos amados/as e acolhidos/as por Deus. Paulo
gosta de dizer que a graça que Deus reservou para ele não foi estéril, e isto é
comprovado pelo seu engajamento incansável em favor do seu povo e dos pagãos.
“Celebro teu nome pela tua bondade e pela tua
fidelidade!”
Jesus de Nazaré,
peregrino nos santuários das dores e buscas humanas: vem, entra nesta barca que
é a tua Igreja e transforma seus limitados viajantes em ardorosas testemunhas. Abre
nossos ouvidos à tua Palavra, preenche nossos vazios com tua presença, cura
nossas frustrações e desamarra as mãos que o medo e a acomodação imobilizaram.
Engaja-nos na tua missão de reunir teus irmãos e irmãs, de promover e conservar
a vida e de anunciar uma Boa Notícia que faça sentido às pessoas do nosso
tempo. E isso sem esquecer que somos simples e humildes discípulos/as e
servidores/as. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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