A
tentação das soluções fáceis, fabulosas e individualistas
(Dt 26,4-10; Sl 90/91; Rm 10,8-13; Lc
4,1-13)
Na última quarta-feira reavivamos mais uma vez a
certeza de que tudo termina em cinza e de que tudo recomeça com nova força e
vigor quando assumimos nossa condição de vulnerabilidade e dependência do outro
e de Deus. A grande tentação do Homem moderno é o sentimento de onipotência e a
reivindicação de uma autonomia absoluta diante de tudo e de todos. Tudo acaba
sendo subordinado ao bem-estar individual e imediato. Daí o chamamento da Campanha da Fraternidade a buscar e
conservar a jovialidade, expressão do vigor de Deus, e a convertermo-nos e ir
ao encontro dos jovens, acolhendo-os na sua riqueza e diversidade e
acompanhando-os no encontro profundo e pessoal com Jesus Cristo e na adesão ao
seu projeto de vida. A Igreja reconhece: “Não é raro certo fechamento de
comunidades eclesiais às organizações juvenis, muitas vezes até desvalorizadas
e desmotivadas pelos adultos” (Texto-Base
da Campanha da Freternidade 2013, n° 119).
“Ali foi posto à prova pelo diabo...”
Jesus voltava do rio Jordão, onde fora batizado por
João Batista, depois de ouvi-lo anunciar que haveria de chegar alguém mais
forte e poderoso que ele. Lucas descreve a experiência subjetiva ou espiritual
que acompanhou e se seguiu à imersão de Jesus nas águas do Jordão em termos
áudio-visuais: o céu aberto e o Espírito Santo descendo; uma voz divina
afirmando que ele era seu filho amado. Mas o que essa visão e estas palavras
significavam?
Jesus sentiu necessidade de compreender melhor tanto
as palavras do profeta João como a visão e o chamado experimentados no batismo.
E ele o fará durante toda sua breve vida subsequente, mas o evangelista, por
razões pedagógicas, condensa este discernimento num tempo (quarenta dias) e num
lugar (no deserto) bem determinados. Com isso quer sublinhar a total
identificação de Jesus com os/as simples filhos/as de Adão e com o povo hebreu,
inclusive nas buscas e provas.
Jesus efetivamente foi tentado ou provado, e não somente
num período de quarenta dias. Uma leitura atenta dos evangelhos, especialmente
do desfecho da missão de Jesus em Jerusalém, deixa-o muito claro. E isso não
deve escandalizar ninguém, uma vez que ‘tentação’ significa originalmente ‘prova’
ou ‘tentativa’. Jesus tentou diferentes
caminhos para expressar sua filiação divina e desempenhar sua missão. Ele
teve que escolher entre as possibilidades disponíveis no seu tempo.
“Se
és o Filho de Deus...”
É interessante perceber que o Espírito leva Jesus ao deserto, lugar caracterizado pela
impotência, pela carência e pela dependência. E o Tentador o conduz aos lugares altos, de onde a riqueza e o poder
aparecem mais claramente. Levemos em conta que aqui o Diabo não significa um
ser radicalmente mau, mas a personificação
das forças que se opõem ao plano de Deus, o espírito do poder, da dominação
e da manipulação. E estas forças estavam presentes nas pessoas e instituições do tempo de Jesus.
Como missionário do Pai e filho da humanidade, Jesus
aprendeu a obedecer (cf. Hb 4,9), teve que crescer em sabedoria e graça (cf. Lc
2,52), e se defrontou com todas as falsas expectativas que o judaísmo
depositava no Messias. Ecoava em todas as suas células aquilo que ouvira às
margens do rio Jordão: “Tu és o meu filho amado; em ti está meu pleno agrado”
(Lc 3,22). E ele se perguntava o que isso significava concretamente e que
possibilidades e poderes especiais esta condição lhe assegurava.
No fundo, as
tentações de Jesus giram em torno da imagem de Deus e dos meios a serem usados
para realizar seu plano no mundo: fugir das carências inerentes a todos as
criaturas e agir em benefício próprio? Submeter-se à lógica da riqueza e agir
mediante o poder que amedronta, expropria e oprime? Explorar a fé dos pequenos,
manipular as escrituras e transformar a religião num espetáculo que impressiona
e mantém o controle das consciências?
“Eles
nos maltrataram e oprimiram...”
Centremos nossa atenção à segunda tentação. A narração
é direta: “O diabo o levou para o alto; mostrou-lhe, num relance, todos os
reinos da terra, e lhe disse: eu te darei todo este poder e a riqueza destes
reinos, pois a mim é que foram dados, e eu os posso dar a quem eu quiser.” A proposta é tentadora, mas o preço é
altíssimo: renunciar à liberdade e à compaixão humanas. “Se te prostrares
diante de mim, tudo isso será teu.”
Riqueza e poder é o que os adversários da Vontade de
Deus oferecem às pessoas que os servem. O Problema não está em sonhar com uma
simples casa-própria, com um automóvel confortável ou com os proventos necessários
para gozar de um bom período de férias, mas na ambição desmedida, predatória e
escravizadora. E esta tentação é mais do que real. A ONU revela que atualmente
225 pessoas controlam uma riqueza equivalente ao valor do salário de 2,5
bilhões de trabalhadores/as. Como não perceber que isto é coisa do diabo?
Alguém deve pagar por estes privilégios, e boa parte
destes custos recai sobre os frágeis ombros dos/as jovens (cf. TB 96): 30,6%
dos jovens brasileiros vive em famílias com renda inferior a meio salário-mínimo
e 53,7% em famílias cuja renda vai de meio a dois salários-mínimos; e a maioria
dos jovens pobres (70,9%) é composta de negros ou pardos (embora a população
branca represente apenas 47,1%). Se os hebreus afirmam com força que Deus ouviu
a voz e viu a opressão, a fadiga e a angústia que sofriam no Egito, como
podemos ser indiferentes a esta situação que flagela nossos/as jovens?
“Adorarás
o Senhor teu Deus e só a ele prestarás culto.”
A consciência de que somos beneficiados por Deus e
pelos filhos e filhas de Deus é um princípio que nos leva a relativizar a posse
e o uso de tudo e a servir unicamente a Deus, princípio e fundamento da nossa
vida. É a isso que Jesus acena no enfrentamento das tentações. Ao dizer que não
vivemos somente de pão, ele está se referindo a Dt 8,3 e propondo a fidelidade aos princípios da Aliança como garantia
de alimento para todos. Afirmando que só a Deus devemos adoração e culto, está
afirmando que não é correto considerar
tudo como mérito pessoal (Dt 6,10-15). Dizendo que não devemos colocar Deus
à prova, está citando Dt 6,16 e recordando o acontecimento de Massa, quando,
atravessando o deserto, os hebreus
protestaram contra Deus pela da falta de água.
Reconhecer nossos vínculos com Deus, com os irmãos e
irmãs e com toda a criação, reconhecer que tudo, de alguma forma, é dom
recebido e bem destinado a todos os seres humanos, é uma forma de manter um
horizonte que transcende nossos interesses ou medos e de evitar o risco da
idolatria. O problema da liberdade e da autonomia humana não é propriamente
Deus, mas os valores e instituições menores que colocamos em seu lugar:
dinheiro, poder, raça, indivíduo, corpo e até a religião. A decisão está posta
nas nossas mãos: a quem serviremos, obedeceremos e adoraremos?
“A
Palavra está perto de ti, em tua boca, em teu coração.”
As tentações fizeram parte da vida de Jesus e fazem
parte da caminhada dos/as discípulos/as de Jesus (cf. Lc 8,13; 11,4; 22,31).
Mas se os evangelhos as descrevem é para deixar claro que, assim como Jesus
resistiu às tentações, também seus discípulos e discípulas podem vencê-las. Por
isso, além de lucidez para percebê-las, precisamos ter coragem e estratégias adequadas
para enfrentá-las. E a quaresma se nos oferece como um treinamento especial e
intensivo para esta batalha.
A forma de resistir às tentações que, mesmo sob uma roupagem
que aparenta sabedoria, felicidade e sucesso, é deixar-se guiar pelo Espírito Santo. Ele nos leva aos desertos, onde a nossa
prepotência conta pouco (Lc 4,1-13); nos vincula às necessidades e aspirações
dos pobres, presos e oprimidos (cf. Lc 4,14-22); e nos conduz às fontes vivas da Palavra libertadora de Deus.
É na Palavra de Deus, gritada na vida e na história do povo, que Jesus encontra
luz e força para resistir às investidas do inimigo.
“A
Palavra está perto de ti...”
Jesus de Nazaré,
filho amado do Pai-Mãe, irmão e companheiro dos homens e mulheres nas grandes e
pequenas tentações. Cura nossa nossa liberdade e utopia, feridas pelo pecado da
ambição. Ajuda-nos a descobrir, amar e internalizar tua Palavra, a fim de que
ela sustente, guie e julgue nossos projetos e ações. E não nos deixes ceder à
tentação de negar nossa vulnerabilidade, de aderir à lógica do dinheiro e do
poder e de manipular a fé dos pobres, substituindo a compaixão pela exploração.
Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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