Partir
do coração da Igreja para agir na arena do mundo
(Gn 15,5-12.17-18; Sl 26/27; Fil
3,17-4,1; Lc 9,28-36)
Estamos chegando ao segundo momento da nossa caminhada
quaresmal. No primeiro domingo, fomos lembrados/as da atualidade das tentações e
da força atrativa que exercem sobre nós. Neste segundo domingo somos convidados/as
a refletir sobre o lugar onde erguemos a tenda
do nosso encontro com Deus. O consolo e o brilho atraente dos momentos de êxtase
e de transfiguração, assim como dos grandes e festivos encontros tão apreciados
pela juventude, podem nos afastar da exigente missão de encarnar a fé na vida
cotidiana. Para amar o próximo e sermos justos/as diante de Deus, precisamos ‘sair’ dos estreitos limites de uma rotina
eclesial habituada a repetir velhas fórmulas, a reciclar devoções antigas e a
esperar que os cristãos que se afastaram e os jovens que se tornaram
indiferentes à religião voltem e batam à porta dos nossos templos. Os
jovens estão sim no coração da Igreja (cf. TB 191), mas não é no interior dela
que devem construir suas tendas: a missão tem seu lugar na arena do mundo.
“Uns
oito dias depois destas palavras...”
A cena descrita no Evangelho de hoje é precedida por
uma catequese muito exigente que Jesus dirige aos discípulos. Depois de ter sido
reconhecido formalmente por Pedro como “o Cristo de Deus”, Jesus
acrescentara: “É necessário o Filho do Homem
sofrer muito e ser rejeitado pelos
anciãos, sumos sacerdotes e escribas, ser
morto e, no terceiro dia, ressuscitar” (Lc 9,22). E dissera, voltando-se
aos que o seguiam: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz, cada dia, e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá,
e quem perder sua vida por causa de mim a salvará” (Lc 9,23).
Parece que os discípulos não conseguem entender e
aceitar o caminho proposto por Jesus. Sentem-se envergonhados e desconcertados diante
de um Messias servidor e perseguido. Resistem a um caminho que os levará
inexoravelmente a ser companheiros de Jesus no anúncio do Reino e na
perseguição. Não passa pela cabeça deles
carregar a cruz da rejeição e da criminalização, imposta a quem ousa se
rebelar contra os poderes do Império. Eles lutam desesperadamente contra essa
posibilidade. Segundo Lucas, esta luta interior dos discípulos se prolongava
por mais ou menos oito dias.
“Pedro
e os companheiros estavam com muito sono.”
É neste contexto que Jesus, pressionado pelos próprios
discípulos, sente necessidade de se retirar (mas não de renunciar!) para rezar
e discernir o caminho que deve seguir para revelar o rosto do Pai e realizar
sua vontade libertadora. Chama e leva consigo Pedro, Tiago e João, os primeiros
discípulos que havia chamado a segui-lo, mas também os mais resistentes ao
caminho que propunha e os mais aferrados às ambições de poder e à imagem de um
Messias potente e vitorioso.
O medo e a
resistência dos discípulos se mostra também no sono, como aconteceria de novo mais tarde, no Jardim das Oliveiras (cf. Lc
22,45), ou como ocorrera com Abraão, enquanto esperava angustiado um sinal da
fidelidade de Deus às suas promessas. O sono expressa o desejo insuportável de fugir, de dar as costas, de voltar atrás, de não
escutar nada senão as próprias idéias e ambições. E os discípulos
simplesmente não suportam escutar o
diálogo de Jesus com Moisés e Elias, respectivamente, guia e profeta do
povo, ambos duramente perseguidos e não muito bem-sucedidos.
Por que os discípulos não conseguem escutar o diálogo
entre Jesus, Moisés e Elias? Acontece que este diálogo é sobre a saída ou o êxodo de Jesus que aconteceria mais tarde em Jerusalém. Em outras
palavras: Jesus conversava sobre aquilo que havia anunciado anteriormente aos
próprios discípulos: seu enfrentamento
com os poderes opressores e a necessária ruptura e saída das malhas de uma
religião estreita e sedenta de sucesso, discriminadora e opressora dos mais fracos.
Essa conversa não interessava minimamente aos discípulos...
“Este
é o meu Filho, o Eleito. Escutai-o!”
O trio resistente e sonolento é despertado pela glória e pelo brilho de Jesus e seus convidados, mas
não pelo conteúdo da conversa. A glória e o poder estão sim no horizonte do
interesse deles, tanto que desejam reter
o tempo, separar os espaços e eternizar esta agradável visão. Estando todos
atordoados e sem saber o que dizer, Pedro toma a iniciativa: “Mestre, é bom
ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas...” Não lhes interessa acolher e
compreender nem as palavras de Jesus, nem a memória do êxodo e da profecia. O que desejam é simplesmente construir tendas
ou templos nos quais possam encontrar paz e sossego, longe dos desafios de
consruir um mundo segundo o coração de Deus.
Mas a glória e o esplendor do poder e da vitória não
são expressões inequívocas de Deus e da realização da sua vontade. É a sombra
tenebrosa de uma nuvem – imagem daquela nuvem que acompanhara o povo na caminhada
através do deserto e envolvera a montanha na celebração da Aliança – que desfaz
o entusiamo dos discípulos e os conduz à verdade à qual resistem: “Este é o meu
filho, o eleito. Escutai-o!” É a
profecia e o serviço, e não as vestes de glória, que manifestam o esplendor de
Deus...
Nenhum/a discípulo/a pode fechar os ouvidos a esta
exigente Palavra. A proposta de Jesus não é uma vida tranquila no interior dos
templos ou uma vida vitoriosa frente às perseguições, mas um percurso de serviço aos irmãos e irmãs, de enfrentamento com os
poderes que oprimem, de superação das próprias ambições e interesses. Mas
os três discípulos calam esta experiência. “Os discípulos ficaram calados e,
naqueles dias, a ninguém contaram nada do que tinham visto.” Calaremos também
nós?
“Há
muitos que se comportam como inimigos da cruz de Cristo...”
É com lágrimas
que Paulo escreve aos cristãos filipenses: “Há muitos por aí que se comportam
como inimigos da cruz de Cristo.” São cristãos para os quais Deus se confunde
com o próprio desejo, e a glória é a indiferença frente às dores dos outros.
“Apreciam só as coisas terrenas.” Para estes, Paulo se apresenta como modelo.
“Nós, ao contrário, somos cidadãos do céu... Sede meus imitadores...” Paulo é
modelo porque une a esperança na vida eterna com o empenho pela justiça na
terra.
Ser cidadão do céu significa pautar a vida pela lógica do Evangelho, seguir os passos de Jesus
Cristo, como Paulo o fez de modo exemplar. Neste sentido, a Campanha da Fraternidade convoca
todos/as a caminhar com os jovens e a refazer
com eles a experiência de Jesus. E é claro que essa experiência não tem
nada a ver com as propostas que excitam artificialmente e esploram
irresponsavelmente o entusiasmo, a motivação e a disponibilidade que
caracterizam a juventude (cf. TB 3; 75).
A jovialidade e a originalidade do projeto de Jesus
consiste em apresentar a novidade do Reino de Deus como renovação radical da relação com Deus e alargamento universal da
relação com o próximo. Para Jesus, Deus não é um inimigo ou um juiz
implacável, mas amigo e pai (cf. TB 154). E o próximo não é necessariamente a
pessoa bela e inofensiva que pertence ao mesmo grupo, mas aquela que está em
situação de vulnerabilidade e necessita de ajuda. Precisamos ouvir o que Jesus nos diz, para evitar a
tentação de pedir que os jovens construam tendas confortáveis no interior dos
nossos templos...
“Tua
face, Senhor, eu busco...”
Deixemos que o Senhor nos tome pela mão e, como fez
com Abraão, nos leve para fora da
nossa tenda, nos ensine a contemplar a imensidão inapreensível do universo e
nos convença de que a descendência daqueles/as que crêem é inimaginável. Abraão
nos ensina que a terra não nos pertence, que ela é dada e precisa ser guardada
para aqueles/as que virão. E eles a passarão aos que virão depois... Deus nos faz sair, nos chama ao êxodo, nos leva para além de nós mesmos
e de nossas instituições.
Na raiz da nossa fé está um desejo que arde como fogo:
“Tua face, Senhor, eu busco. Não escondas o teu rosto!” Este é um desejo que
permanece sempre radicalmente aberto e, se o eliminarmos, nossa vida perderá o
rumo e o sabor. Mas, em
Jesus Cristo , Deus fez resplandecer o seu verdadeiro rosto, e
sua face é a de um ser humano próximo
e solidário, de um servo que entra na
fila dos excluídos e é tratado como último. Numa palavra: um rosto crucificado!
É este o rosto que buscamos?
Jesus de Nazaré,
companheiro de Moisés e de Elias, fonte de jovialidade e de renovação. Por
vezes tua liberdade nos causa vertigens e tua compaixão nos assusta. Ajuda-nos
a contemplar teu rosto nesta terra povoada de jovens que desejam ardentemente
viver. Ensina-nos a escutar tua Palavra sussurrada nas atitudes inquietas e nas
ações indignadas e até violentas de uma juventude a quem foram roubados os
sonhos. E dá-nos a humilde e a sabedoria para acompanhá-la no caminho de
descida que possibilita o verdadeiro encontro contigo. Tu que és vida, lealdade
e caminho. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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