Para além do fato
A renúncia de Bento
XVI aconteceu. As análises de sociólogos, politólogos e outros têm detido na
dupla referência da situação do Vaticano e da pessoa do Papa. O teólogo tende a
ir por outra direção. Na verdade, esta se caracteriza como renúncia original,
primeira e única. As anteriores, citadas em vários artigos, aconteceram por
contingências políticas conturbadas e além da decisão serena das pessoas. Não
serviram de símbolo nem de exemplo para outros. Por isso, desde a que se
realizou no final do século XIII até hoje não havia acontecido nenhuma outra.
Com a teologia do
primado desenvolvida e extremada, sobretudo depois do Concílio Vaticano I
(1870), a renúncia de Bento XVI assume significado teológico e simbólico
singular. A teologia reconhece nas ações pontifícias a assistência do Espírito
Santo, não necessariamente garantindo-lhe ordinariamente a infalibilidade. Se
assim acontece, o teólogo vê no gesto de Bento XVI, não simplesmente razões
pessoais nem políticas, mas a presença do Espírito que sinaliza para toda a
Igreja algo de profundo. Então nascem as interpretações.
Tal gesto vai além
do presente e da função do Papa. Diz respeito a toda a Igreja. Ele nos faz
lembrar uma blague do então
vice-presidente do Brasil, Pedro Aleixo, ao comentar o AI-5. “Não temo tanto as
arbitrariedades do Presidente da República, mas as do guarda da esquina”! Aqui
inverto a reflexão. Admiro e espero que a lição do Papa não afete unicamente os
próximos pontífices, mas toda a estrutura da Igreja. Não se trata simplesmente
da renúncia a um cargo, mas da consciência que ela manifesta da pequenez humana
diante das missões e da necessidade de reconhecer os próprios limites. Esses,
em casos extremos, pedem a saída, mas,
normalmente, se manifestam na busca de ajuda, de dividir tarefas, de confiar em
outros, de compartihar decisões. O termo político criado chama-se democracia.
Mas, como anda muito gasto e aviltado, prefiro entender o gesto do Papa como
alerta para toda a Igreja a fim de assumir o caminho da escuta, da autocrítica,
da mútua e sincera “correção fraterna” de modo que cada vez mais pessoas se
sintam responsáveis pelo todo da Igreja e não somente os hierarcas e pior ainda
autoritariamente.
Se todos com alguma
responsabilidade na Igreja se perguntassem pela provocação do Espírito Santo presente
no gesto de Bento XVI, talvez se gestasse Igreja aberta às interpelações da cultura
e sociedade da partilha. Os regimes autocráticos já desapareceram quase em todas
as partes. Cabe à Igreja perguntar-se se o gesto do Papa não sinaliza assumir o mesmo processo. Vemo-lo acontecer
embrionariamente nas comunidades eclesiais de base, nas paróquias e dioceses
pensadas em rede de comunidades, em promover Assembleias com poder decisório. O
gesto do Papa vai bem mais longe, se não nos prendermos a conjunturas puramente
pessoais e circunstanciais. Ele nos faz mergulhar nas águas profundas do
Espírito que o inspirou.
João
Batista Libânio sj
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