O papa
tem corpo
“Para governar a barca de são
Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor tanto do corpo como
do espírito, vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de tal forma que hei
de reconhecer minha incapacidade para exercer bem o ministério que me foi
encomendado”.
Essa é, decerto, uma das mais
revolucionárias declarações deste início de século. Ao anunciar sua renúncia, o
papa Bento XVI manifestou uma
constatação que, de tão óbvia, tomou de surpresa a tantas pessoas (dentre as
quais não me incluo) pelo mundo afora. Que constatação é essa? Que, como todos
os seres vivos, também ele tem/é um corpo. Tal como você, eu, tal como Jesus. A
corporeidade é nosso inarredável ponto de partida, que nos torna sensíveis,
relacionais e históricos.
Constatar isso talvez tenha
sido árduo para o cardeal Ratzinger,
que passou boa parte de sua vida religiosa e pontificado olhando para a
corporeidade alheia, em geral nela apontando o que considera mazelas e desvios.
Enquanto isso, instalou-se num mundo platônico, em que manejava com maestria
ideias e doutrinas distantes dos dilemas mais prementes dos companheiros e
companheiras de humanidade.
Eis que – à semelhança de
casais homossexuais, usuários de camisinha e de anticoncepcionais,
perpetradores e vítimas de pedofilia, sacerdotes doidos para casar (ou padres
casados ansiosos para voltar ao serviço sacerdotal), freiras que o povo quer
ver celebrando missa e sacramentos, assim como jovens mergulhados em aluvião
hormonal – de repente o papa exclama: “Olhem, tenho um corpo!” E pede: “Estou
com idade avançada. É difícil compreender isso?”.
Aqui surge um segundo
componente da corporeidade, que introduz carne e sangue no asséptico silogismo
aristotélico “Todos os homens são mortais, eu sou um homem, deinde sou mortal”.
Velhice, dor e doença são sinal da finitude que, por sinal, deslanchou a
conversão do príncipe Sidarta.
Mesmo que os teólogos elaboradores de dogmas insistam em que papas são
infalíveis (ok, em matéria de fé), quando as articulações doem, a próstata
incha e dificulta a reles ação de urinar, o coração exige uma ajuda tecnológica
e periódica troca de pilha e quando isso tudo desemboca em enorme cansaço, só
aí é que se vê que papas, como o atual, são falíveis no nível mais fundamental.
Ao contrário da crença que os
curiais tentaram incutir durante a agonia de João Paulo II – midiaticamente
exposta ao longo de doze anos – o papa não é um holograma, um ectoplasma, um
símbolo. Não, o papa só será simbólico e inspirador se assumir radicalmente a
nossa comum condição humana. A tanto, Bento
XVI foi impelido por seu corpo e contradisse a tradição de que o
papado dura até o momento em que seu titular entra para a eternidade.
A renúncia de Bento XVI só é considerada
grandiosa ou profética porque ocorreu num ambiente enrijecido. Em corporações e
instituições políticas modernas, a troca de poder é normal, desejável e
esperada. Fazendo uma metáfora, piscar o olho é coisa corriqueira e nada digna
de comemorações, a não ser que ocorra num paciente há longo tempo em coma. Essa
renúncia mostrou que ainda há vida no doente principal, a Igreja Católica.
Agora se anuncia a boa
notícia: o gesto de Bento XVI o
coloca no meio de nós. Daqui para a frente, todos os papas terão oficialmente
um corpo, serão mortais, como todos os seres vivos. Sê bem vindo à raça humana,
Herr Joseph, nós amorosamente te acolhemos.
Jorge Cláudio Ribeiro
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