O legado da crise atual: rever e
reinventar conceitos
(http://www.portalodm.com.br/eventos.php?id_evento=143) |
Nutro a convicção, partilhada por outros analistas, de
que a crise sistêmica atual nos deixará como legado e desafio a urgência de repensar
a nossa relação para com a Terra, para com os modos de produção e consumo,
reinventar uma forma de governança global e uma convivência que inclua a todos
na única e mesma Casa Comum. Para
isso é forçoso rever conceitos-chaves, que como bússola nos possam
apontar um novo norte. Boa parte da crise atual se deriva de premissas
falsas.
O primeiro conceito a rever é o de desenvolvimento.
Na prática ele se identifica com o crescimento material, expresso pelo PIB. Sua
dinâmica é ser o maior possível, o que implica exploração desapiedada da
natureza e a geração de grandes desigualdades nacionais e mundiais. Importa
abandonar esta compreensão quantitativa e assumir a qualitativa, esta sim como
desenvolvimento, bem definido por Amartya Sen (prêmio Nobel) como “o processo
de expansão das liberdades substantivas”, vale dizer, a ampliação das oportunidades
de modelar a própria vida e dar-lhe um sentido que valha a pena. O crescimento
é imprescindível pois é da lógica de todo ser vivo, mas só é bom a partir
das interdependências das redes da vida que garantem a biodiversidade. Em vez
de crescimento ou desenvolvimento deveríamos pensar numa redistribuição do que
já foi acumulado.
O segundo é o manipulado conceito de sustentabilidade
que, no sistema vigente, é inalcançável. Em seu lugar deveríamos introduzir a
temática, já aprovada pela ONU, dos direitos da Terra e da natureza. Se os
respeitássemos, teríamos garantida a sustentabilidade, fruto da
conformação à lógica da vida.
O terceiro é o de meio-ambiente. Este não
existe. O que existe é o ambiente inteiro, no qual todos os seres convivem e se
interconectam. Em vez de meio ambiente faríamos melhor usar a expressão da
Carta da Terra: comunidade de vida. Todos os seres vivos possuem o
mesmo código genético de base, por isso todos são parentes entre si: uma
real comunidade vital. Este olhar nos levaria a ter respeito por cada ser, pois
tem valor em si mesmo para além do uso humano.
O quarto conceito é o de Terra. Importa superar
a visão pobre da modernidade que a vê apenas como realidade extensa e sem
inteligência. A ciência contemporânea mostrou e isso já foi incorporado até nos
manuais de ecologia, que a Terra não só tem vida sobre ela, mas é viva: um
superorganismo, Gaia, que articula o físico, o químico e as energias terrenas e
cósmicas para sempre produzir e reproduzir vida. Em 22 de abril de 2010 a ONU
aprovou a denominação de Mãe Terra.
Este novo olhar, nos levaria a redefinir nossa relação para com ela, não mais
de exploração mas de uso racional e respeito. Nossa mãe a gente não vende nem
compra; respeita e ama. Assim com a Mãe Terra.
O quinto conceito é o de ser humano. Este foi
na modernidade pensado como desligado, fora e acima da natureza, fazendo-o
“mestre e senhor”dela (Descartes). Hoje o ser humano está se inserindo na
natureza, no Universo e como aquela porção da Terra que sente, pensa, ama e
venera. Essa perspectiva nos leva a assumir a responsabilidade pelo destino da
Mãe Terra e de seus filhos e filhas, sentindo-nos cuidadores e guardiães desse
belo, pequeno e ameaçado Planeta.
O sexto conceito é o de espiritualidade. Esta
foi acantonada nas religiões quando é a dimensão do profundo humano universal.
Espiritualidade surge quando a consciência se apercebe como parte do Todo e
intui cada ser e o inteiro Universo sustentados e penetrados por uma força
poderosa e amorosa: aquele Abismo de energia, gerador de todo o ser. É possível
captar o elo misterioso que liga e re-liga todas as coisas, constituindo um
cosmos e não um caos. A espiritualidade nos confere sentimento de veneração
pela grandeur do universo e nos enche de autoestima por podermos
admirar, gozar e celebrar todas as coisas.
Temos que mudar muito ainda para que tudo isso se
torne um dado da consciência coletiva! Mas é o que deve ser. E o que deve ser
tem força de realização.
Leonardo
Boff
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