(Lc 13,31-35) Herodes quer acabar com Jesus.
Não lhe bastava ter dado fim a João Batista?... Mas veja só!... Agora é um dos
discípulos do profeta do deserto, o Nazareno, que não o deixa em paz. Os poderosos,
de ontem e de hoje, sempre pretendem resolver os problemas da mesma maneira:
acabando com aqueles que os provocam. Os métodos mudaram, mas a arrogância é a
mesma. A resposta de Jesus é certeira: não será Herodes a decidir a hora da sua
morte. Herodes não passa de uma raposa, de um insignificante instrumento no
plano de Deus. Esta é a lógica divina: aqueles que se julgam poderosos e pensam
deter o controle da situação são, na realidade, homens insignificantes, recordados
apenas porque acabaram envolvidos com um obscuro asceta ou com um carpinteiro
que se fez profeta. Diante de tanta hostilidade, o coração de Jesus sangra: com
muita dor, ele reconhece que sua mensagem sofre violência, e o ódio contra ele
vai se tornando insustentável. É claro que Jesus teria preferido um outro
epílogo, não este que está para acontecer. Mas, em certas ocasiões, o único
modo de revelar a verdade das coisas nas quais se acredita é ir a fundo nas próprias
decisões... (Paolo Curtaz, Parola &
Preghiera, outubro/2013, p. 200)
quinta-feira, 31 de outubro de 2013
quarta-feira, 30 de outubro de 2013
Dia dos Finados
A morte não têm poder sobre a vida de quem ama.
(Sb 4,7-15; Sl 102/103; 2Cor 5,1.6-10; Jo
11,17-27)
É possível celebrar a morte, o fim sem
volta da existência humana? Não seria ela sempre uma tragédia, ou, ao menos,
uma perda irreparável? É verdade que sempre procuramos desesperadamente
construir pontes – com os tijolos das palavras, dos ritos, dos símbolos, do
amor saboreado, da esperança utópica, da fé teimosa – sobre o abismo que separa
os que estamos aqui e os que se foram. Mas a morte seria mesmo apemas um abismo
entre duas terras firmes, o aqui e o além, ou o fim obscuro e lamentável da
nossa bela, apesar de tudo, mas sempre precária existência? Que sentido tem
esse dia no qual lembramos as pessoas queridas que partiram deixando marcas e
vazios na nossa carne, uma jornada na qual meditamos sobre o que nos espera, ou
sobre o que podemos esperar com honradez?
“Deus os transferiu para outro lugar...”
Não é muito comum lamentar a morte
das pessoas que consideramos más, ou que não tiveram uma influência positiva
sobre nós. Conhecemos gente que se dispõe a antecipar o fim da vida de pessoas
a quem consideram inimigas, e até da própria vida, quando lhe parece difícil,
triste, sem sentido e sem futuro. Nestes casos, a morte não tem sabor de perda,
mas de vitória e de liberdade. Mas tudo muda de figura quando se trata de uma
vida plena de sentido, de uma pessoa que queremos bem e nos é preciosa. A morte
da pessoa considerada justa e a morte precoce das pessoas que nos são caras
abrem as portas da crise e nos impulsiona na busca de sentido.
Tanto o sábio da primeira leitura
como Marta, a irmã de Maria e de Lázaro, no Evangelho de João, cada qual do seu
jeito e com os recursos culturais que tem à mão, procuram um sentido para a
morte da pessoa justa, boa e querida, a morte que ceifa a vida antes do tempo.
A sabedoria popular do judaísmo encontra consolo afirmando que o sentido da
vida não está no grande número dos anos, nem na sobrevivência neste mundo mau.
“Ainda que morra prematuramente, o justo encontrará descanso... Deus o
transferiu para um outro lugar... Tendo alcançado em pouco tempo a perfeição,
completou uma longa carreira...” Ou seja: a morte é o ponto de chegada de uma
vida plenamente realizada.
“Todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá
jamais.”
A resposta oferecida por Jesus é
mais complexa e radical. O ponto de partida é o lamento de Marta, com sabor de
advertência e de reclamação à insensibilidade de Jesus: “Se tivesses estado
aqui, meu irmão não teria morrido...” Afinal, Jesus tinha sido informado da
enfermidade do amigo Lázaro, como nós não cansamos de lembrar a ele a doença e
as necessidades das pessoas que queremos bem. Afinal, nada mais normal do que o
desejo de prolongar e tornar menos difícil a vida das pessoas que amamos. Mas
aqui o risco é reduzir a figura de Jesus a um curador, a um médico onisciente e
onipotente.
Depois de cobrar a ausência de
Jesus, Marta expressa confiança no seu poder de forçar Deus a anular a morte e
prolongar a vida dor irmão querido. Jesus começa dizendo que Lázaro
ressuscitará, mas Marta não consegue ir além da fé tradicional na ressurreição
no final dos tempos, e essa crença lhe parece sem dinamismo e desprovida de
significado no preciso momento em que seu irmão foi tragado pela morte. Mas
Jesus lhe propõe algo absolutamente novo: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem
crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em
mim, não morrerá jamais.”
Por trás do diálogo tenso entre
Jesus e Marta está uma questão muito importante e atual: o que esperamos de
Jesus: cura, prolongamento da vida, reestabelecimento de uma situação do
passado, ou vida plena, vida com uma densidade e uma força que nenhuma forma de
morte pode estancar? Porque é Vida e caminho de amor e compaixão que a ela
conduz, Jesus é ressurreição. Com seu modo de ser e de agir, com sua proposta
de vida, ele suscita vita e, por isso, também a res-suscita. Para ele, e para
aqueles/as que acreditam nele, o que importa não é uma vida sem enfermidade e
sem limites, mas uma vida que tenha força de produzir e multiplicar vida.
“Crês nisso?”
Quem adere a Jesus Cristo, quem
refaz o seu caminho, quem vive sob impulso do seu Espírito e por ele se deixa
guiar, mesmo que tenha morrido, continua suscitando vida, e, nessa medida,
vive. A vida de tais pessoas é mais que uma história a ser recordada, louvada
ou lamentada: é percurso que continua aberto, travessia ainda em curso, beleza
que continua atraindo, dinamismo que continua movendo e sustentando outras vidas
de outras. E isso sem entrar na complicada questão de uma existência
pós-histórica, em moldes semelhantes à nossa vida presente.
Mas Jesus afirma também que quem vive e crê nele, jamais morrerá. E
isso tem sentido, porque nós morremos antes da morte – deixamos de gerar vida!
– por causa do pecado, do fechamento em nós mesmos/as, do medo de perder a vida
no despojamento e no serviço por amor. Aderir a Jesus Cristo significa assumir
o último lugar, o lugar de quem serve por amor; significa perder o medo de morrer,
acreditando que ele derrotou o poder assustador e destruidor da morte, e que a
nossa vida está escondida com ele, em Deus. Quem vive em Jesus Cristo e nele
acredita vence antecipadamente a morte, de modo que quando ela chega, é
recebida como irmã, e não como ameaça.
A afirmação e a pergunta que Jesus
dirigiu a Marta é dirigida também a nós. “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem
crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em
mim, não morrerá jamais. Crês nisso?”
Marta dá sua resposta pessoal, no horizonte cultural do seu tempo, com a fé
embrionária que a movia. “Sim, eu creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho
de Deus, aquele que deve vir ao mundo.” Teria ela compreendido que, mais
importante que ter de volta o irmão falecido, é que o Messias de Deus venha
permanentemente para reerguer as pessoas subjugadas pelas sombras da morte e
dirigir os nossos passos nos caminhos da paz? Aderindo a ele, perdemos tudo, recebemos
tudo, e não temos necessidade de garantir nada.
“Enquanto moramos no corpo, somos peregrinos...”
Escrevendo aos coríntios, o apóstolo
Paulo nos convida a compreender bem o sentido da existência em Cristo, e, nela,
o sentido da morte. Ele reflete sobre a nossa vida histórica comparando-a a uma
tenda, à habitação provisória de quem sabe que está aqui só de passagem.
Enquanto habitamos nessa tenda, continuamos peregrinos, caminho para Deus,
mesmo sabendo que em Jesus Cristo ele já veio definitivamente ao nosso encontro
e o Reino de Deus já começou e está entre nós. Por isso, caminhamos cheios de
confiança, e não lamentamos deixar essa tenda em vista do lar definitivo.
Não podemos cair no simplismo de ler
estas palavras num horizonte dualista, opondo ou colocando lado a lado um certo
mundo material e um suposto mundo espiritual, uma vida corporal e uma vida
espiritual. Como cristãos, cremos que a vida humana, e todas as expressões da
vida, é pascal, ou seja: é Travessia, Passagem, Caminho. A história – nas suas
dimensões de passado, presente e futuro – e o corpo – nas suas dimensões de
interioridade e exterioridade – são a paisagem, o chão e a expressão da vida,
mas não a esgotam, nem a detém. Quem desiste de peregrinar rumo ao outro mundo
possível, renega a fé em Jesus Cristo e morre definitivamente, mesmo que
continue biologicamente vivo/a.
Tudo isso parece muito complicado,
mas o testemunho de tantas pessoas amadas que nos já deixaram proclama essa fé
de modo simples e eloquente. E aqui não é preciso recorrer às grandes figuras
do passado, nomes que pontilham de vida nosso calendário santoral. Todos temos
a alegria de conservar ‘no lado esquerdo do peito’ o nome e a imagem sagrada de
pessoas, às vezes muito sofridas e cheias de limites, que viveram a vida como Travessia,
caminhando cheias de confiança em Jesus Cristo, levando quase nada na bagagem,
deixando tudo como sal que conserva e dá gosto, como fermento que faz crescer,
como semente que germina e floresce. Essas pessoas jamais morrerão!
“Como a erva são os dias do homem...”
Jesus de Nazaré, Unigido do Pai para suscitar e ressuscitar a vida! Também
tu viveste a fragilidade da vida humana e a amaste desmedidamente. Como a tua,
também nossa existência é pó que o vento leva, é erva que o vento seca.
Ajuda-nos a vivê-la em ti, no teu espírito, no dinamismo da tua compaixão
humanamente divina e sem medo do nada da morte, pois a bondade tua e do teu e
nosso Pai vêm desde sempre e dura para sempre. Ensina-nos a cumprir com alegre
confiança e generosa compaixão a apaixonante Travessia do nosso viver. E que a
saudosa lembrança daqueles/as cuja tenda corporal foi desfeita e entraram na
morada definitiva ilumine, anime e perfume nossa estrada. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
Um artigo do Pe. Ceolin
Para
começar o mês dedicado às missões, publiqueicom prazer e emoção um texto do Pe.
Ceolin. Com a mesma satisfação, encerro este mês oferecendo mais uma das suas
oportunas e sábias meditações. Trata-se de um artigo que ele escreveu por
ocasião do Centenário da Páscoa do Fundador,
e que foi publicado em O Bertheriano (Ano XXVI, n° 102,
Agosto/2009, p. 7. Como sempre, os destaques são dele).Boa leitura e bom
proveito!
O bom
exemplo
Nós,
Missionários da Sagrada Família, estamos atualmente debruçados sobre a figura
do Servo de Deus, Pe. João Berthier. A celebração da sua páscoa para a vida
definitiva, ocorrida há cem anos, vem oportunizando deveras um ‘ano da graça’
para nossa família religiosa. Os eventos celebrativos, o uso pessoal e
comunitário da coletânea “O legado do
Padre Berthier” vêm contribuindo para clarear nossa idendidade de
Missionários da Sagrada Família e confirmar nossa pertença ao grupo dos
discípulos do Pe. Berthier.
Nosso
venerável Fundador passa a ser admirado não somente como incansável pioneiro e
empreendedor de inúmeras obras. Ele passa a ser visto e desponta acima de tudo
como modelo
de vida. Ele mesmo não se apresenta assim. Propôs à nossa imitação o
modelo da Sagrada Família. Mas estou convicto de que o Pe. Berthier poderia nos
ter deixado o seguinte legado: “Sejam meus imitadores, como eu o sou de Cristo
e da Sagrada Família!” (cf. 1Cor 11,1).
Contemplando
a vida do nosso Fundador, sua inteira trajetória – na família, no seminário, na
montanha da Salette, no ministério, etc. – percebemos que ele é digno de ser
imitado. Sobretudo em Grave, ele nos encanta com seu modo de ser. Creio que ele
poderia ter nos deixado mais essa recomendação: “Eu lhes dei um exemplo: vocês
devem fazer a mesma coisa que eu fiz!... Mesmo sendo o mestre e superior de
vocês, fiz-me tudo para todos...” (cf. Jo 13,15).
Temos
conhecimento de que alguns vocacionados, chegando a Grave, ficavam boquiabertos
ao verem tamanha pobreza da casa e dos arredores. Alguns simplesmente davam
meia-volta e retornavam à casa dos pais. Para outros, porém, a péssima
impressão inicial causada pela velha caserna era desfeita depois de terem
conhecido o Padre Berthier e experimentado sua grande bondade, sua cordialidade
e simpatia. O contato com a pessoa do Fundador os animava a aceitar
e abraçar a realidade, que alguns consideravam horripilante.
Hoje estamos
nos perguntando a respeito do futuro da Congregação, e eu aceno para a resposta
que temos no Diretório Geral: “Pelo
exemplo e por uma vida merecedora de fé (ou seja, merecedora de crédito) e pelo
entusiasmo no cumprimento da tarefa missionária, queremos estimular a
comunidade dos fiéis... e preparar terreno propício ao florescimento
de vocações...” (DG, 07).
Por vezes
fico a perguntar-me: em vista da formação que tenho, da minha idade avançada,
do fato de ser religioso e presbítero, venho
servindo de bom exemplo para os fiéis e meus coirmãos? Dou-me conta de que
não sou como deveria sê-lo, de que devo ter sempre em mente que eles
têm o direito de esperar e de me cobrar postura de vida condizente à
minha identidade. A mim cabe o dever de esforçar-me em servir de bom
exemplo. Reconheço também que, vindo eu a ser motivo de escândalo e
pedra de tropeço para os fiéis e coirmãos, a vergonha não será apenas minha:
recairá também sobre toda a família e a instituição à qual pertenço.
Permita
Deus que eu seja menos moralizador e supere a tendência em viver apontando os
defeitos alheios sem aperceber-me dos meus. Que o bom Mestre não precise
desmascarar-me com estas palavras: “Hipócrita, tire primeiro a trave do seu
próprio olho, e então você exergará bem como tirar o cisco do olho do seu
irmão!...” (Mt 7,5).
Pe.
Rodolpho Ceolin msf
Os padres e o luxo
O escandaloso esbanjamento de eclesiásticos
Correu o
mundo a notícia de que o Vaticano afastou do exercício do ministério episcopal
o bispo Franz-Peter Tebartz-van da diocese de Limburg na Alemanha, por causa do
seu esbanjamento ao construir sua residência. O bispo teria gasto 31 milhões de
euros na construção de sua “modesta casinha” de pastor. Soma que convertida em
reais, segundo a cotação do euro no dia em que comecei a escrever este artigo,
seria igual a R$ 79.360.000,00.
A notícia
causou impacto na grande mídia (sempre à procura de fofocas) e nas pessoas mais
simples e honestas que ainda esperam dos ministros ordenados um testemunho de
simplicidade e de pobreza, a exemplo de Jesus que “não tinha onde reclinar a
cabeça” (Mt 8,20). Porém, para observadores atentos, o luxo, a ostentação e o
esbanjamento de muitos padres e bispos é uma constante. Se analisarmos
cuidadosamente o caso do Brasil, vamos ver que, nas devidas proporções, muitos
aqui não ficam longe do bispo alemão. A seguir alguns exemplos ilustrativos.
Há quase dez
anos, quando eu era professor de teologia no Instituto de Teologia de Ilhéus
(BA), visitei uma comunidade de periferia na cidade de Itabuna (BA). Lá me
deparei com o caso de um seminarista diácono, meu aluno, que estava para ser
ordenado presbítero. O seminarista havia exigido daquela comunidade pobre, como
presente de ordenação, uma casula no valor de três mil reais. Valor esse
exorbitante para a época e para as pessoas daquele bairro pobre de periferia...
Tempos atrás
um bispo auxiliar de uma grande arquidiocese, hoje arcebispo na região Sudeste
do nosso país, costumava exibir publicamente seus esbanjamentos. Entre esses
esbanjamentos estava o fato de que ele morava num condomínio de luxo da
capital, cuja taxa de condomínio naquela ocasião era de dois mil reais. Outro
bispo, de uma simples diocese do Centro-Oeste, esnobava nas reuniões da CNBB
que havia gasto trezentos mil reais apenas com a construção e decoração do
presbitério da nova catedral...
Uma
arquidiocese está para construir uma nova catedral, cujo orçamento ultrapassa
os cem milhões de reais. Recentemente o bispo de uma diocese do Nordeste
brasileiro, encravada no polígono da seca, decidiu construir um luxuoso
seminário para seus seminaristas, fora da própria diocese, onde os mesmos
estudam filosofia e teologia. Para pagar as dívidas da construção decretou que
cada paróquia deveria contribuir com determinada quantia. Passei na ocasião por
algumas dessas paróquias e pude perceber o sofrimento do povo que, além dos
problemas angustiantes provocados pela seca, tinha que se virar para arrecadar
a quantia exigida pelo bispo.
Falando
sinceramente, diante de todas essas extravagâncias praticadas num país pobre
como o nosso, os gastos do bispo alemão não passa de simples “fichinha”. O que
causa estranheza é o fato de que tudo isso aconteça após a realização do
Concílio Vaticano II, o qual pediu que os ministros da Igreja, especialmente os
bispos e padres, primassem pela simplicidade e pela pobreza, seguindo o exemplo
de Jesus (PO, 17). Causa mais surpresa ainda saber que os esbanjadores
eclesiásticos são ministros relativamente jovens, formados após o Vaticano II.
O bispo de Limburg, afastado pelo Vaticano, tem 53 anos. Isso revela que a
formação nos seminários e a formação permanente não estão conseguindo ajudar os
pastores a viverem segundo o modelo de Cristo Pastor.
No caso do
Brasil, as pesquisas apontam que a maioria absoluta dos seminaristas é
originária de famílias pobres da zona rural ou das periferias das grandes
cidades. No atual momento há uma prevalência de seminaristas provenientes das
periferias urbanas. E talvez aqui esteja o motivo da tendência ao esbanjamento,
ao luxo e à ostentação. Por serem oriundos de situações de extrema pobreza, os
candidatos tudo fazem para sair da situação de miséria. Isso é uma coisa até
certo ponto normal. Qualquer ser humano que tenha passado por uma situação de
privação, ao ter uma oportunidade de sair dela, fará isso normalmente. Os
seminaristas não são exceção à regra.
O que se
deve questionar é a incapacidade do processo formativo de educar esses
candidatos para uma vida simples e pobre. Os seminários e a formação permanente
deveriam ser capazes de contribuir para que o seminarista pobre permanecesse
pobre, mesmo depois de padre. Deveria ser capaz de ajudar o seminarista a
entender que antes ele era pobre porque o sistema social e econômico injusto o
impedia de ter o necessário para viver dignamente. Agora, como seminarista ou
como padre, ele será ou permanecerá pobre por opção vocacional: para seguir
Jesus Cristo pobre, o qual, ao assumir a condição humana se fez pobre para nos
enriquecer com a sua pobreza (2Cor 8,9). A formação deveria ser capaz de ajudar
o futuro ministro ordenado a não ter medo de permanecer pobre; de, por opção
vocacional, voltar a passar por situações de privação vividas anteriormente.
Mas não é
isso que vem acontecendo. A formação nos seminários aburguesa. Os seminaristas
recebem tudo de graça, não precisam trabalhar para se manter. Têm à disposição
deles casa, comida, roupa lavada, transporte, médico, remédio, estudos, livros
etc. Em muitos seminários os seminaristas nem sequer colaboram com a limpeza
dos pratos nos quais comem e da casa onde moram. São raros os seminários onde
isso acontece.
Conheço
seminários onde os seminaristas, depois do almoço, dormem a tarde toda e nem
sequer leem os textos indicados pelos seus professores. Isso aconteceu muitas
vezes com alunos meus. Eles não precisam se preocupar, pois há funcionários
pagos pela diocese para trabalhar para eles. Pagos por um povo de bobos e de
ingênuos, o qual ainda acredita piamente que ele tem obrigação de sustentar a
mordomia de certos seminaristas, padres e bispos. Enquanto isso, a dona Maria e
o seu José, funcionários do seminário, não conseguem tratar a saúde dos filhos
e, menos ainda, pagar uma faculdade para eles, pois o salário minguado que
recebem da diocese não é suficiente.
A medida
drástica tomada pelo Vaticano contra o bispo alemão foi necessária, mas convém
ressaltar que isso não resolverá o problema. É preciso, com urgência, mexer na
estrutura eclesial viciada. Estrutura essa que trata os ministros ordenados
como verdadeiros “príncipes da Igreja”, os quais se acham no direito de exigir
do povo que sustente suas mordomias. É preciso rever todo o processo formativo,
tornando-o mais leve, menos custoso e menos aburguesado. Sem desprezar o
princípio bíblico de que o evangelizador tem direito a um salário digno (Mt
10,10), a Igreja precisa educar seus ministros ordenados a, como o apóstolo
Paulo, trabalharem com as próprias mãos para o próprio sustento (At 18,3; 1Cor
9,13-15) e a se contentarem com aquilo que a comunidade pode oferecer para a
manutenção deles (Lc 10,7-8).
Mas para se
chegar a isso é fundamental romper com todo o esquema eclesiástico atual,
pautado no amor ao dinheiro. Sem ruptura, continuaremos a pôr remendos e a
colocar vinho novo em potes velhos (Mc 2,21-22). Os escândalos continuarão a
acontecer, uma vez que “a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (1Tm
6,10).
José
Lisboa Moreira de Oliveira
terça-feira, 29 de outubro de 2013
Solenidade de Todos os Santos e Santas
Todos os homens e
mulheres são chamados à santidade.
(Ap 7,2-4.9-14; Sl 23/24; 1Jo 3,1-3; Mt
5,1-12)
O primeiro dia (ou o primeiro domingo) do mês de
outubro, a Igreja católica o dedica à festa de todos os santos e santas. Como
esquecer que a verdadeira santidade é aquela que se manifesta na vida das pessoas
que ousam sair do estreito limite dos próprios interesses e se aproximam solidariamente
dos últimos; que tecem pacientemente os fios que fazem do mundo inteiro uma
única família; que vão aos rincões mais distantes ou exigentes para levar a
bandeira da paz; que são movidos por uma insaciável sede de justiça; que choram
as dores dos povos de todas as cores e provam o fel da violência da
perseguição; que transformam a terra pela mansidão?... Celebremos e festejemos
a alegria de participar de uma imensa caravana de homens e mulheres de todas as
raças, nações e línguas que nos precedem, nos acompanham e nos seguem. E
renovemos o desejo e o compromisso de levar em nosso corpo as marcas de Jesus
Cristo.
“Gente
de todas as nações, tribos, povos e línguas...”
No último dia 30 recordávamos os 34 anos do
assassinato de Santo Dias da Silva, líder cristão e operário, e 466 anos da
páscoa de Martinho Lutero, religioso católico e reformador da Igreja. Dois
homens sensíveis ao próprio tempo que, em diferentes lugares e circunstâncias,
e também com métodos diversos, sonharam e lutaram por uma sociedade mais justa
e uma Igreja mais fiel a Jesus Cristo. Dois cristãos que tinham fome e sede de
justiça e sofreram perseguição. Será que eles não fazem parte da imensa
multidão de servos de Deus, cujas frontes foram marcadas com o sinal do
Cordeiro?
A festa de todos os santos e santas faz memória dos/as
santos/as esquecidos/as, daqueles/as que não têm um dia especial e um nome conhecido;
daqueles/as que gastaram a vida no anonimato e cujos milagres não podem ser
contabilizados pelas regras canônicas; de gente como Sepé Tiarajú, Padre
Cícero, Dom Romero, e Ir. Adelaide, e mesmo de gente quem não rezou pelo nosso
catecismo, como Lutero, Luther King, Gandhi e tantos outros; celebra a memória
daqueles/a que nos antecederam na fé e cujo testemunho mantém a Igreja no
caminho certo, apesar das suas resistências e ambivalências.
“Desde
agora já somos filhos de Deus...”
Mas a celebração de todos os santos e santas não olha
somente para o passado. Ela é oportunidade e provocação para refletir sobre a
vocação fundamental de todos os/as cristãos. Sendo verdade que a santidade é um
caminho estreito e uma vocação exigente, isso não significa que seja reservada
a alguns grupos especiais de cristãos. Há mais de quarenta anos o Concílio
Vaticano II proclamava de forma clara e contundente, contra a idéia
predominante, que a santidade não é privilégio dos sacerdotes e religiosos/as.
Muito antes, a história já havia comprovado o que então era proclamado
solenemente.
Na passagem do milênio, o saudoso João Paulo II
provocava os cristãos a não se contentarem com pequenas medidas, com vôos
rasantes, com ideais nanicos, e pedia que aspirassemos nada menos e nada mais
que à santidade. A vocação de todos precisa se transformar em desejo pessoal e
em decisões e ações concretas. Como diz São João, nós somos chamados filhos/as
de Deus e já o somos desde agora, mas o desafio é crescer na identificação com
Jesus Cristo, gravar no corpo e na mente as marcas de Jesus Cristo. “Seremos
semelhantes a ele...” E isso deve ser mais que um simples sentimento.
“Felizes
os pobres no espírito...”
Jesus Cristo é o verdadeiro e perfeito santo de Deus
e, ao mesmo tempo, o caminho para a santidade. Não há santidade à margem do seguimento de Jesus Cristo, mesmo que tal
seguimento seja implícito. Trata-se então de refazer o caminho prático
trilhado por Jesus: “amar como Jesus amou; sonhar como Jesus sonhou; pensar
como Jesus pensou; viver como Jesus viveu; sentir como Jesus sentia...” Este é
o caminho para que, no meio ou no fim do dia e no no meio ou no fim da vida,
sejamos felizes. No ‘sermão da montanha’, Jesus nos propõe o caminho de
santidade que ele mesmo percorreu.
A bela mensagem de Jesus que denominamos bem-aventuranças apresenta as diversas
setas que indicam claramente o caminho da santidade. Ele não fala propriamente de
oito grupos específicos de pessoas, mas de oito características daqueles/as que
percorrem este caminho. O caminho começa com a pobreza e termina com a
perseguição, mas isso não é obstáculo, pois o Reino de Deus é antes de tudo – e
no presente! – dos pobres e dos perseguidos. A consolação para os aflitos, a
herança para os mansos, a saciedade para os famintos, a misericórdia para os
compassivos, a visão de Deus para os puros e a filiação divina para os
promotores da paz, são promessas para o futuro, mas a alegria sem fim do Reino
é experiência concreta dos pobres em espírito e dos perseguidos já no tempo presente.
A santidade à qual todos/as somos chamados/as tem fisionomia
de discípulado, de despojamento solidário; o coração dos/as que se afligem e
choram compassivamente as dores dos outros; o ritmo inquieto dos/as que anseiam
e pela justiça plena e universal; o olhar terno da misericórdia; a
transparência de quem evita a duplicidade e as segundas intenções; a ousadia
daqueles/as que promovem a paz; a indestrutível alegria de quem assume os custos
de ser livre e libertador.
“Felizes
os que têm fome e sede de justiça...”
Embora o conceito não goze de muita estima entre nós,
os/as santos/as são chamados de beatos/as. Isso quer dizer que o caminho da santidade e o caminho para a felicidade coincidem. Santidade
não rima com tristeza ou com fechamento em si mesmo, mas com felicidade e
abertura aos outros. O caminho de Jesus Cristo, assim como a vida e a
espiritualidade cristãs, são propostas de uma felicidade que coincide com a
realização da mais profunda vocação humana, que, por isso, é duradoura.
O caminho que nos conduz à santidade feliz e à
felicidade santa está longe de ter as características da passividade ou do
afastamento do mundo. Pelo contrário, passa pelo empenhativo distanciamento dos
interesses individuais ou de pequenos grupos; pela partilha da dor e da humilhação
dos outros; pela mortificante e vivificante fome e sede de justiça; pela
prática perseverante da atenção aos mais frágeis; pela superação das palavras e
ações ambíguas; pela ativa semeadura da paz em todas as relações; pela firmeza
serena nas perseguições.
Está longe do Evangelho uma santidade que se resuma em
práticas de piedade. Está distante da essência humana uma felicidade baseada no
sucesso pessoal e na indiferença em relação à sorte dos semelhantes. Aqueles/as
que se vestem de branco e trazem palmas nas mãos são os/as vieram da grande
tribulação, que lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro, que recriaram sua
ação libertadora, que encarnaram o Evangelho no mundo e na própria vida.
Felicidade não significa ausência de dificuldades, mas realização plena e
profunda da vocação humana. Mais que perfeição, santidade é perseverança no
amor e no serviço.
“Seremos
semelhantes a ele...”
Jesus é o verdadeiro santo. A ele devemos o louvor, a
glória, a sabedoria, a honra, o poder, a força e a ação de graças. A santidade
que brilha no rosto, que atua nas mãos e pulsa no coração da multidão
incontável que nos antecede e nos rodeia é fruto do Espírito de santidade e de
verdade que Jesus Cristo derrama sobre a comunidade daqueles/as que o seguem.
Se somos filhos/as e herdeiros/as, o somos por adoção e graça, e não por mérito
pessoal ou direito adquirido.
A provocação pessoal de Jesus Cristo e o estímulo
dessa multidão de vestes brancas que caminha alegre e jubilosa nos coloca e nos
mantém no caminho da santidade. Que nossas roupas de marca, que diferenciam
hierarquizam, sujas pela impureza do nosso pensar e pela ambigüidade do nosso
agir, se assemelhem às roupas do Cordeiro no talhe, na cor e no uso. Que nossas
roupas sejam o hábito de quem serve, sejam como as vestes de Jesus de Nazaré.
Jesus de Nazaré,
Santo de Deus e testemunha fiel! Pedimos-te a graça de permanecer de pé diante
de ti, que és o Cordeiro imolado, rodeados pela nuvem de testemunhas anônimas de todas as
nações, tribos, raças e línguas. Ajuda-nos a superar a doce tentação de
separar, catalogar e hierarquizar católicos e evangélicos, cristãos e
não-cristãos. Fica conosco e caminha à nossa frente, para que estejamos sempre prontos/as
para a travessia e para a luta. Que a nossa incrível capacidade de sofrer e
nossa inexplicável alegria em meio às intermináveis lutas sejam nossas armas e
nosso triunfo. E então estaremos viverendo em comunhão com os santos e santas
que te rodeiam e te louvam no céu. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
A Palavra na vida
(Lc 13,18-21) O Reino de Deus é como uma semente de mostarda, como o fermento que,
misturado à farinha, faz a massa crescer. Ou seja: o Reino é pouca coisa, nem
mesmo se faz notar, desaparece na terra, se esconde na farinha. Pequeno, mas
cheio de energia própria, o Reino cresce sem que percebamos, transforma as
consciências, fecunda as sociedades, plasma novos modos de pensar. Pequeno mas
eficaz, presente mas não invasivo, capaz de mudar e transfigurar tudo. Mas se é
assim, por que nós estamos tão preocupados com os números e estatísticas? Por
que contamos as pessoas que vêm às missas ou às reuniões e lamentamos a escarsa
participação? Por que às vezes damos a péssima impressão de querer que toda a
massa seja fermento, de desejar infestar o mundo com a nossa semente em vez de
ser uma presença minoritária mas significativa? Talvez os duríssimos tempos que
estamos vivendo nos chamem exatamente a esta verdade: não importa quantos/as somos, importa quem somos e como anunciamos o
Evangelho: com quanta coerência, com quanta luz, com quanto amor. Deixemos os
resultados ao Senhor, a ele que vê o coração e não as estatísticas. Não importa
quantos cristãos vivem no seu bairro,
mas o quanto somos cristãos. (Paolo
Curtaz, Parola & Preghiera, outubro/2013, p. 188)
segunda-feira, 28 de outubro de 2013
Catequese inculturada
“A boa nova das culturas indígenas
acolhe a boa nova de Jesus.”
Foi com esse lema que a Diocese de São Gabriel da
Cachoeira (AM) realizou, de 22 a 25 de
outubro, um encontro de estudos sobre a
relação entre a ação evangelizadora da Igreja através da catequese e o respeito
e diálogo com as tradições indígenas do
Rio Negro. O encontro aconteceu como um desdobramento do I Seminário sobre a Catequese indígena
inculturada, que ocorreu na Diocese de 1º a 4 de maio de 2013,
assessorado pelo Pe. Eleazar Lopez Hernandez, do México.
As dez paróquias, com seus párocos e a
representação de quatro catequistas, foram motivadas pela leitura de um texto
elaborado pelo padre salesiano indígena Justino Rezende. O texto serviu de base
para pensar valores da cultura nativa que poderiam servir de ponto de
referência para os conteúdos da catequese tradicional.
O objetivo do encontro foi estabelecer os conteúdos
e a metodologia própria para o ministério catequético, realizado com tanto
afinco e esperança por inúmeros catequistas nas mais distantes comunidades
ribeirinhas, aldeias indígenas e nas três cidades que compõem a diocese. A missionária leiga, Maria Soares de Camargo,
enviada pelas Igrejas do Regional Sul I da CNBB para trabalhar três anos na
Diocese, participou e colaborou no evento.
Dia após dia, verificou-se um comprometimento
bastante significativo do grupo em produzir e partilhar os frutos dos trabalhos
realizados nas paróquias, além de grande esforço em buscar elementos para
avançar rumo ao ideal almejado.
Como resultado desse trabalho, a Diocese colheu a
sistematização de sete encontros refletidos e preparados durante a semana de
estudos, e ainda restaram outros sete temas a serem elaborados nas paróquias
até o próximo dia 01 de dezembro. No início de fevereiro, após a celebração da
ordenação presbiteral do indígena Gaudêncio Gomes Campos, um grupo se reunirá
para retrabalhar os roteiros, que serão aplicados experimentalmente nas diferentes
comunidades durante o ano de 2014.
Foram agendados também para o ano de 2014 encontros
de formação intensiva, com a duração de uma semana, em cada uma das paróquias
da diocese. Para tanto, a equipe diocesana de catequese, acompanhada
pessoalmente pelo bispo Dom Edson Damian, visitará cada sede paroquial,
procurando ajudar as comunidades a avançar ainda mais a composição do diálogo
entre fé cristã e cultura indígena.
No último dia de trabalhos do Encontro, além do
planejamento das próximas atividades e composição da equipe diocesana de
formação catequética, o encontro contou também com uma exposição acerca de ações
do Papa Francisco e a leitura e discussão de sua reveladora entrevista dada à
Revista Civittá Católica, publicada
em 19 de setembro último.
Os participantes foram unânimes em agradecer a Deus
e às equipes pelo árduo trabalho, que,
fecundado pelo Espírito, levou a atingir
e mesmo a superar os objetivos propostos para concretizar o principio norteador
da catequese inculturada: “ A boa nova
das culturas indígenas acolhe a Boa Nova de Jesus”.
(Texto enviado por e-mail Dom Edson Damian, Bispo de S. Gabriel da Cachoeira)
domingo, 27 de outubro de 2013
A Palavra na vida
(Lc 18,9-14) Os fareiseus eram devotos da lei, crentes empenhados no combate contra
o relaxamento religioso do povo de Israel e na observância escrupulosa até das
mais minuciosas ordens ou mandamentos atribuídos a Deus. O elenco de virtudes
que o fariseu apresenta diante de Deus é aparentemente correto: observante zeloso,
o fariseu paga, como todos os demais fiéis, o dízimo das suas rendas, mas vai
além e dá ao templo o dízimo até dos temperos que cultiva e colhe na própria
horta! Então, qual é o problema do fariseu? Muito simples: ele está de tal modo
seguro de sua identidade espiritual, tão orgulhoso da própria bravura, tão
cheio do próprio ego (do ego espiritual, que é o mais difícil de vencer), que
Deus não encontra um cantinho onde possa se abrigar. E, o pior: ao invés de se
confrontar com o projeto que Deus tem sobre ele, o fariseu se compara com quem,
no seu ponto de vista, é pior que ele, no caso, com aquele publicano que, parado
lá no fundo, não deveria nem mesmo ousar entrar no templo... Esse é o miolo da
questão: sendo verdade que nos colocamos, com sinceridade, à procura de Deus, às
vezes não conseguimos criar um espaço interior suficientemente aberto para que
ele possa se manifestar. Com a cabeça e o coração entulhados de preocupações,
desejos, pensamentos, invejas, méritos e comparações com os outros, não
conseguimos abrir um espaço para acolher Deus. (Paolo Curtaz, Parola & Preghiera, outubro/2013, p.
176)
Testemunho sobre o Pe. Ceolin msf
Quem foi o Pe. Ceolin?
É
difícil estabelecer o valor da vida de uma pessoa. Alguns dizem que este valor
é determinado por aqueles que ficaram para trás. Outros crêem que seja
determinado pela fé, ou pelo amor. Há também aqueles que dizem que a vida não tem
nenhum significado. Particularmente acreditamos que o valor da vida de uma
pessoa seja determinado pela quantidade e qualidade daqueles que a admiram. Pe.
Rodolpho Ceolin viveu intensamente sua vida e, no final, mais intensamente do
que a maioria o consegue durante uma vida inteira. Sabemos que o Ceolin, ao
morrer, fechou os olhos, mas seu coração e sua alma permaneceram abertos, e
assim estarão por toda a eternidade.
Não
podemos nem queremos perder de vista o contingente de coirmãos Missionários da
Sagrada Família que partiram nos últimos anos. A dedicação à Congregação e à
Igreja e virtudes pessoais de todos eles também fazem jus a homenagens e
consideração. No entanto, dedicamos ao Pe. Ceolin especial admiração e
reconhecimento, considerando as excepcionais oportunidades de tê-lo tido como
Superior Provincial, orientador, mestre de noviços e coirmão. Essas
circunstâncias nos ofereceram afinidade apurada, amizade duradoura e exemplo de
pessoa, sobretudo nos pontos que vamos descrever.
“Quem foi o Pe. Rodolpho Ceolin?” é a pergunta que tentamos
responder nesta data que lembra os trinta dias de sua passagem para o “outro
lado”, como ele mesmo dizia, ao findar seus dias “neste lado”. Sinceramente, a primeira impressão que nos vem à
mente é que todo o grande homem já nasce propenso a tal. Ou seja: a grandeza da
alma, do caráter e o temperamento que coordenam as atitudes, acrescidos sempre
de uma história dedicada ao bem, à honestidade, a abnegação, tfaz pensar em
algo congênito. E, no caso do Pe. Ceolin – sem dúvida, um grande homem – o
acréscimo de uma vida dedicada à Igreja, à Congregação, à AMISAFA, às pessoas,
completaram a magnífica arte que o esculpiu como um ser humano precioso e incomum.
Para
aferir o valor e a grandeza de uma pessoa é importante ouvir o que os outros dizem
a respeito dela ainda enquanto está viva. Sim, pois após a morte, todos, até os
seres mais insignificantes, viram pessoas “santas” aos olhos daqueles que aqui
permanecem. Ao Pe. Ceolin, ainda enquanto vivia, as
pessoas se referiam reiteradamente com sentimentos de apreço, respeito e
admiração. Muitos
consideravam-no como pessoa admirável, tranquila, serena, segura,
que
vivia e agia com cautela, equilíbrio e bom senso nas mais diversas
circunstâncias.
Pe. Ceolin foi um
homem de humildade e simplicidade evangélicas. Ele nunca teve como meta
o poder, o lucro ou a posse, mas o serviço e a doação em prol de quem estivesse
próximo. Seu alvo sempre foi servir. Ele sabia discernir com clareza o
que é verdadeiramente importante à vida, e viveu em conformidade com os valores
duradouros, sempre receptivo e acolhedor, indistintamente.
Todo o grande homem é silenciosamente bom, e o Pe. Ceolin
o foi. Foi genial sem sentir a necessidade de exibir sua genialidade. Foi poderoso
em inteligência e sabedoria, eloquente no falar, altaneiro no postar-se,
exuberante na ação, mas nunca se elevou sobre seus súditos. Sua grandeza se refletia na vida cotidiana,
trabalhando por uma causa, ocupado com as pessoas. Aliás, a ninguém
tratava como súdito, senão como igual, amigo, irmão a quem sempre voltava seu
olhar fraterno. Seus dons e seu poder foram colocados a serviço dos outros.
Como homem verdadeiramente sábio, o Pe.
Ceolin não dizia tudo que pensava, mas pensava tudo quanto dizia. Sábio sim,
pois seu método “não-diretivo” de se relacionar e de orientar o levava mais a
perguntar do que responder. E suas considerações finais sempre eram sinceras,
objetivas, carregadas de amor e compreensão. Estas atitudes e este método o Pe.
Ceolin as teve como sacerdote, como Superior Provincial, como mestre de
noviços, como orientador educacional. Ele sabia responder quando perguntado, mas
a perspicácia de suas perguntas surpreendiam pela profundidade e sapiência. Como orientador, pautou sua missão com uma
postura ponderada e sensata. Soube encarar os desafios, transpor os obstáculos
e guiar a todos os que nele buscaram orientação e aconselhamento com equilíbrio
e peculiar serenidade, sempre acenando e alertando para o mais adequado, para o
certo, para o ético, para o que é de Deus.
O
Pe. Ceolin foi uma pessoa continuamente ocupada em expandir sua mente e suas
capacidades. Uma pessoa aberta ao novo, conhecedora profunda de si
própria e dos mecanismo da mente do ser humano. Foi um investigatigador dos
traumas causadores de comportamentos mesquinhos e desequilíbrios. Orientava-se
com humildade, consciente dos próprios entraves, contra os quais lutava com o
intuito de tornar-se um homem “liberto e novo.” Foi uma pessoa sempre vigilante
em relação aos próprios sentimentos e emoções, preocupações e deficiências, corajoso
no reconhecimento e confessão das próprias falhas e limitações. Foi um homem que,
mesmo diante dos limites da vida pessoal, soube ter humildade suficiente para
admitir seus erros, desperto o bastante para tirar proveito deles e forte o
suficiente para corrigi-los, ajustar suas condutas e dirigir sua vida e sua vocação
com sentido altruísta.
O
Pe. Ceolin relacionava-se com equilíbrio e profundo respeito ao ser do outro,
conduzindo as relações com confiança e segurança, mantendo a humildade e, por
vezes, disseminando senso de humor inteligente, deixando à vontade quem nele
buscava orientação. Por isso, foi um grande amigo, um coirmão autêntico,
fidedigno, companheiro de verdade, com infinita capacidade de amar e
compreender, de espírito fraterno, capaz de estabelecer relações humanas de
qualidade. Cultivava suas amizades através de visitas, telefonemas, cartas,
bilhetes, mensagens, cartões de aniversário...
O Pe. Ceolin empreendeu uma jornada
extraordinária. Foi um ser humano admirável, um homem de fé e oração. Profundo, um
poço de sabedoria! Dava a impressão
de possuir o dom de estar aqui e no além ao mesmo tempo, tamanha era a
serenidade que transluzia no conversar, no orar e no trabalhar. Foi um missionário autêntico,
com a mística do Fundador João Berthier, que com sua obra propiciou o
surgimento de vocações divinas, dentre as quais o Pe. Rodopho Ceolin.
Muito mais do que
isso! O Pe. Ceolin foi um bertheriano que imitou seu Fundador no amor a Sagrada Família e na devoção a Nossa
Senhora da Salete. Homem de fé e oração, soube
como poucos, inspirar-se na Sagrada Família e Nossa Senhora da Salette,
pregando a boa notícia do Evangelho. Soube dinamizar
e motivar o carisma missionário nos coirmãos, a quem se referia sempre com
espírito fraterno. Isso tudo ele viveu intensamente como religioso, formador,
superior, orientador espiritual e sacerdote, consagrando a vida à Congregação e
à Igreja.
Foto de 1980: Pe. Ceolin (ao alto,o primeiro à esquerda) e Antonio Luiz Mariani (ao alto, o quarto da esquerda para a direita) |
Assim foi o Pe. Ceolin! E dizê-lo faz-se
necessário para assegurar o assentamento das suas virtudes às gerações vindouras,
pois todos os que o conhecemos e convivemos com ele, sem dúvida, intimamo-nos
como testemunhas e sentimo-nos privilegiados por termos sido companheiros de
viagem de um homem tão precioso quanto o foi Pe. Ceolin na concisa mas completa
passagem por este mundo. Para um homem assim extraordinário, a morte não é mais
do que a completa recompensa, a passagem à paz, “o descanso pleno do bravo
guerreiro, após a épica batalha vencida com muita glória”.
Se pudéssemos falar
pessoalmente a ele, diríamos: “Pe. Ceolin! Após teres cumprido com brilhantismo
e vivacidade tua nobre missão, partiste para o merecido repouso, “para o outro lado”, como tu mesmo dizias,
para te juntares à Sagrada Família e aos coirmãos que te precederam. Partiste
para desfrutar com eles do descanso e da merecida felicidade, no aguardo dos
que aqui permanecemos. Concluíste tua vida discorrendo sobre a vida. Agora
estás “do lado de lá”, na presença dEle – Começo, Meio, Razão e Fim! – mas
estás concomitantemente conosco, “do lado de cá”, onde a vida continua bela
como sempre foi.
Antônio Luiz e Terezinha A. Mariani
(Colaboradores da AMISAFA, ex-prefeito de Anchieta –
SC)
sábado, 26 de outubro de 2013
A tragédia de Lampedusa
Prá não esquecer a tragédia
de Lampedusa
O grupo
dos promotores de Justiça, Paz e
Intregridade da Criação (JPIC), ligado às Uniões dos Superiores Gerais, promove,
na última sexta-feira de dada mês, um encontro de oração em torno de uma
situação concreta de violação da justiça, da paz e da integridade da criação.
Estes encontros são realizados na igreja São Marcelo, no centro de Roma.
Ontem o
encontro fez memória e clamor do trágico destino dos migrantes que tentam
entrar na Europa, recordando especialmente o terrível naufrágio que vitimou 400
dos mais de 500 refugiados provindos da Eritréia e da Somália, no último 3 de
outubro. A igreja estava lotada, especialmente de religiosas, mas o número era
dezenas de vezes menor que multidão de religiosos/as que dominicalmente vai à
Praça de São Pedro participar da oração do Angelus...
Como
sabemos, uma frágil embarcação, manobrada por aproveitadores e criminosos que
exploram o desespero humano, transportava mais de 500 homens, mulheres e
crianças, migrantes desesperados que fizeram uma viagem de mais de 4.000
quilômetros, fugindo da guerra na Somália ou da opressão na Eritréia. Mas os
números desta tragédia não são novidade, pois fatos como este se repetem todos
os dias e não recebem mais que algumas linhas nos jornais.
Faz tempo
que a Europa fechou suas portas aos imigrantes “ilegais”. E continua dizendo
claramente que eles não são bem vistos nem bem vindos. Recusando os pedidos de
visto na origem, os governos fizeram uma espécie de acordo informal com os
estados do Norte de África: a estes compete fazer o trabalho sujo, fazendo de
tudo para que os navios não cheguem às costas da Europa. Assim, milhares de africanos
subsaarianos giram sem rumo pelas cidades costeiras de países como Marrocos e
Argélia, depois de terem percorrido milhares de quilômetros, perdido as raízes
e gasto tudo...
A União
Européia investe milhões de euros num dispositivo quase militar para vigiar
suas fronteiras e evitar o que chama de “invasão de migrantes”. Através da
agência Frontex, a Europa intercepta os migrantes nas fronteiras terrestres ou
marítimas e os devolve aos países de origem por via aérea. E parece pouco se
importar com os direitos humanos, como o direito de asilo, a um tratamento
digno e à integridade física. Tudo ocorre como se os imigrantes pertencessem a
uma classe inferior de cidadãos...
Depois de
terem arriscado a vida numa travessia incerta, os imigrantes que conseguem
chegar às fronteiras européias acabam detidos por meses e meses por causa de
problemas burocráticos, sem direitos essenciais, como, por exemplo, assistência
sanitária. São publicamente difamados e acusados de roubar o trabalho dos
cidadãos europeus e de ameçar seus bons hábitos. Na Grécia, na Holanda e na Noruega
existem partidos políticos que se opõem de forma aberta e violenta aos
imigrantes. Tudo isso, dizem, para proteger o estado de bem-estar, como se o
bem-estar de alguns devesse ser pago pelos outros...
Estas
multidões, “indecisoes cordões” vivem à beira do desespero, pois arriscaram e perderam
tudo. Se houvesse a possibilidade de pedir asilo político nos países de destino
nas embaixadas de um terceiro país, os imigrantes não seriam forçados a longas
e perigosas viagens, diminuiria o risco de caírem nas mãos de grupos mafiosos e
se evitaria a necessidade de chegarem via marítima a um lugar que garanta
proteção internacional.
A
desgraça de Lampedusa (03.10.2013) provocou uma inesperada e estranha explosão
de demonstrações de luto por parte da comunidade internacional e dos governos
de vários países europeus. Entretanto os países membros da União Européia
mantém com outros países acordos sobre a migração que contradizem as
condolências expressas publicamente. Não é uma questão de impotência ou falta
de recursos, mas de cinismo e de prepotência.
Este
cinismo chegou ao grau máximo quando o governo italiano anunciou que todas as
vítimas fatais do naufrágio do dia 3 de outubro obteriam a cidadania italiana.
Mas no mesmo dia, o Ministério Público de Agrigento (Sicília), acusava os 144
sobreviventes de terem cometido crime de imigração clandestina, que pode ser
punido com multa de até cinco mil euros e expulsão do território italiano... Imigrante
bom é imigrante morto?
Itacir Brassiani msf
A Palavra na vida
(Lc 13,1-9) A dor do inocente é a única verdadeira objeção que se pode levantar à
bondade de Deus. Mas, neste caso, a Bíblia não oferece soluções fáceis ou
atalhos atraentes: o sofrimento permanece um mistério incompreensível. Uma das
respostas a este enigma – muito comum ainda hoje! – consiste em atribuir o
sofrimento humano à vontade punitiva (ou ao menos à permissão) de Deus: quem
peca deve descontar sua culpa. Mesmo que o livro de Jó tivesse já desmontado
radicalmente esta suposição – Jó sofre mesmo sendo santo! – no tempo de Jesus
muita gente estava convencida de que as desgraças eram consequência dos pecados
das próprias vítimas. Mas Jesus insiste que não é assim! A culpa pela morte dos
dezoito judeus sepultados sob os escombros da torre de Siloé não deve ser
atribuída a eles mesmos, nem a Deus, mas à imperícia do engenheiro e à
irresponsabilidade dos construtores. Da mesma forma, a morte violenta dos
devotos assassinados pelos romanos na área do templo deve ser debitada na conta
de Pilatos e ao seu modo de exercer o poder, e não aos supostos pecados deles
mesmos. Portanto, diante dos acontecimentos difíceis, não descarreguemos a
responsabilidade sobre Deus. Consideremos estes fatos como uma oportunidade de
reflexão e de conversão, como uma ocasião a mais para produzir frutos. Como se
os imprevistos fossem o adubo que nos ajuda a ir ao essencial... (Paolo Curtaz,
Parola & Preghiera, outubro/2013,
p. 170)
sexta-feira, 25 de outubro de 2013
30° Domingo do Tempo Comum
Façamos resplandecer a
boa vida do Evangelho.
(Eclo 31,15-17.20-22; Sl 33/34; 2Tm
4,6-8.16-18; Lc 18,9-14)
Há mais de 80 anos, a Igreja
católica do Brasil dedica o mês de outubro à oração pelas missões. Somos
convidados/as a celebrar a memória do Senhor e a ouvir sua Palavra sintonizando
o bater do coração, o ritmo dos passos e o olhar da fé com a missão. Que nossa
oração evite a presunção da superioridade e brote da humilde consciência de que,
infelizmente, o coração de nossas comunidades ainda não bate suficientemente
forte e alegre ao ritmo da missão. Mas, acima de tudo, confirmemos nosso
engajamento para que, como diz o Papa Francisco na sua mensagem para o Dia Mundia das Missões, resplandeça hoje
e urgentemente a vida boa do Evangelho, mediante o anúncio e o testemunho,
começando no interior da própria Igreja.
“O Senhor é um juiz que não faz discriminação de
pessoas.”
Por mais que se queira negar ou
maquiar, nosso mundo está estruturalmente dividido. Não é necessário viajar além-fronteiras
para perceber que, em termos gerais, os países do hemisfério Norte, outrora
denominados Primeiro Mundo, vivem na abundância de bens e oportunidades, enquanto
que os países do hemisfério Sul são condenados a digerir a miséria à qual a
secular expropriação os condenou. Esta divisão se mantém hoje através das
barreiras legais impostas aos migrantes que fogem do Sul, muitos dos quais
morrem no próprio caminho que os levaria a uma vida melhor.
Existem também divisões entre
pessoas e grupos sociais. Não se trata apenas de diferença – que é um valor e um direito a ser defendido – entre
pessoas, etnias e grupos, mas de divisão
que hierarquiza e exclui muita gente e muitas culturas e países. Basta lembrar
da primazia que a cultura e os meios de comunicação dão às pessoas e grupos ocidentais,
brancos, masculinos, cultos e ricos. É evidente que os orientais, os negros e
índios, as mulheres, os analfabetos e os pobres são tratados como inferiores.
Quando sublinhamos a evidência desta
divisão, vozes se levantam acusando-nos de filo-marxistas, tendenciosos e
interesseiros. Mas é preciso lembrar que a Palavra de Deus não põe panos
quentes nem faz olho grande frente a esta divisão. Ao contrário, a bíblia
inteira, especialmente os escritos proféticos e os evangelhos, mostram que Deus
denuncia essa divisão como inaceitável e toma partido em favor das pessoas e
grupos mais fracos: os escravos e estrangeiros, as viúvas e os órfãos, os
pobres e os excluídos.
“Dois homens subiram ao templo para rezar.”
Será que esta nefasta divisão existe
também no interior das nossas igrejas? Infelizmente, devemos responder dizendo
que sim. Para confirmar, basta dar uma olhada atenta à primazia conferida às
Igrejas européias – à teologia, ao direito e à liturgia por elas elaboradas –
no confronto com as Igrejas do (mal dito) Terceiro Mundo. Não obstante a
notável ajuda econômica que as primeiras versam nos cofres vazios das segundas,
não é raro ouvir ainda hoje de altos hierarcas que todos os cristãos devem
assimilar a fé na sua versão européia.
E tem mais. Não podemos esquecer
aquela profunda e dolorida divisão – que às vezes se transforma em oposição e
em condenação recíproca – entre as próprias comunidades cristãs: ortodoxos e
romanos, católicos e protestantes, igrejas clássicas (católicas e evangélicas)
e igrejas pentecostais, etc. Como pode ser agradável a Deus um culto no qual
membros desta ou daquela igreja se gloriam por não serem como os outros:
idólatras, mal-intencionados, interesseiros, exploradores da fé do povo?
A este propósito é impressionante o
testemunho do apóstolo Paulo. Ele combate com tenacidade a postura de
superioridade dos judeus e dos novos cristãos de origem judaica em relação aos
pagãos ou aos cristãos vindos do paganismo. Quando escreve, em forma de
testamento, que combateu o bom combate, completou a corrida e guardou a fé,
está se referindo à sua convição de que Cristo é nossa paz, pois de dois povos
fez um só povo, derrubando o muro da inimizade que os separava (cf. Ef 2,14).
“A prece do humilde atravessa as nuvens...”
No centro do evangelho deste domingo
está a questão da correta atitude de quem reza. Se, no último domingo, Jesus
nos pedia para não desistir de rezar, hoje ele nos pede atenção sobre como rezamos. Em forma de parábola,
Jesus confronta a postura de dois personagens bem conhecidos: o fariseu, cioso de sua superioridade e
perfeição, isolado das pessoas comuns, ostensiva e exteriormente piedoso; o publicano, cobrador de impostos,
colaborador do poder estrangeiro, impuro e execrável aos olhos dos judeus
nacionalistas, excluído da vida social e religiosa que gira em torno do templo.
Desejoso de ser visto e reconhecido,
o fariseu reza de pé e olha os demais
de cima para baixo. Sua oração é uma espécie de auto-elogio e, ao mesmo tempo,
desprezo e condenação dos demais. É como se o próprio Deus fosse obrigado a
agradecê-lo por ser tão bom e correto. O publicano
praticamente não entra no templo e, sem coragem mesmo de levantar os olhos,
bate no peito reconhecendo sua condição ambivalente e pedindo que Deus se
compadeça dele.
É bem possível que estas diferentes
posturas na oração não seja um problema somente do judaísmo. Se Lucas nos traz
esta questão é porque ela estava presente também nas comunidades cristãs. A
ostentação e a pretensão de superioridade, sempre acompanhadas de uma agressiva
discriminação, contaminaram também os cristãos e infelizmente resistem, como
erva daninha difícil de erradicar, até os nossos dias. E quase sempre vêm
revestidas com a atraente roupagem da piedade.
“O pobre clama
a Deus e ele escuta...”
Desde a parábola de Abel e Caim , sentimo-nos
incomodados diante da imagem de um Deus que não trata a todas as pessoas do
mesmo modo. Imaginamos um Deus com os olhos vedados, como a clássica imagem da
justiça. Como diante da lei todos seriam iguais, a justiça não poderia ter
preferências... Mas Deus não é assim. “Ele não
é parcial em prejuízo do pobres, mas escuta, sim, as súplicas dos
oprimidos; jamais despreza a súplica do órfão, nem da viúva, quando desabafa
suas mágoas.”
A humanidade que queremos única
começa a ser gerada exatamente quando, em nome de Deus, evitamos a parcialidade
que relega os fracos a um sofrimento contínuo e assumimos a luta pelos seus
direitos não reconhecidos ou não atendidos. A sonhada humanidade chamada a ser
única família não será uma realidade enquanto insistirmos numa igualdade apenas
formal das pessoas, uma igualdade negada descaradamente pelas escandalosas
desigualdades econômicas, sociais, culturais e religiosas.
Voltemos a Abel e Caim (cf. Gn
4,1-16). Abel é pastor, não tem terra, vive como migrante, numa insegurança
estruturalmente provocada. Caim é agricultor, administra uma propriedade, goza
de estabilidade. Não há porque estranhar quando o texto sagrado diz que “o
Senhor olhou para Abel e sua oferta, mas não deu atenção a Caim com sua
oferta”. O que Caim era realmente acaba vindo à tona logo em seguida: se mostra
absolutamente indiferente e mortalmente violento em relação ao seu irmão.
“Ele fez com que a mensagem fosse anunciada
integralmente...”
A humanidade tem como vocação ser
uma só família. A interdependência dos povos e nações é já um fato objetivo,
mas precisa se tornar um valor assimilado subjetivamente e garantido
estruturalmente. Sabemos que um acontecimento econômico relevante nos EUA
repercute em todo o globo, e que uma crise política no Oriente Médio agita todas
bolsas de valores e, interferindo na cotação do petróleo, penaliza os
produtores dos mais remotos rincões do mundo. A interdependência é um fato.
Mas o desafio – e nisso a missão dos
cristãos pode contribuir enormemente! – é transformar esta solidariedade objetiva
e estrutural num valor a ser positivamente buscado e assegurado em favor de
todos. A dignidade da pessoa humana independe de sua origem étnica, pertença
religiosa, nacionalidade, convicção política, identidade sexual ou grau de
instrução. Estas diferenças não dividem, nem hierarquizam; apenas distinguem,
complementam e enriquecem.
“Combati o bom
combate, completei a corrida...”
Deus Pai-Mãe, tu fazes a prece do humilde atravessar as nuvens. Despoja-nos
de todo orgulho arrogante e de toda competição infantil. Ajuda-nos a anunciar
teu Evangelho integralmente e a fazer resplandecer, pelo anúncio e pelo
testemunho, a boa notícia e a boa vida que ele nos traz. E isso até que a
humanidade seja de fato uma família, na qual todos os membros são queridos e
respeitados. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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