Missão não é
proselitismo, mas testemunho de vida.
(Ex 17,8-13; Sl 120/121; 2Tm 3,14-4,2;
Lc 18,1-8)
Vivemos um tempo no qual o mundo
aparece praticamente inteiro e ao vivo diante dos nossos olhos. Temos a
impressão de que não precisamos mais sair do nosso lugar, pois tudo vem ao
nosso encontro, onde quer que estejamos. Nesta perspectiva, parece que sair em missão é uma expressão que não
faz mais sentido. Mas será mesmo assim? Ou será que, tanto do ponto de vista
pessoal como comunitário, precisamos superar um olhar limitado e mesquinho,
incapaz de ver além dos muros dos próprios interesses e do tempo presente? O
Papa Francisco, na mensagem para o Dia
Mundial das Missões, nos lembra que
a missão da Igreja não pode se identificar com proselitismo, mas “testemunho de
vida que ilumina o caminho, que traz esperança e amor”. Lutar pela erradicação
da pobreza, pelo direito à alimentação e pelo desarmamento do mundo, como
propunha a ONU nesta semana, não seria um testemunho credível da nossa fé e uma
clara renúncia ao proselitismo?
“Eu levanto os meus olhos para os montes: de onde pode
vir o meu socorro?”
Quando falamos sobre a oração, é bom
não esconder as amargas experiências de pedidos não atendidos. Cada um/a de nós
tem uma lista mais ou menos longa de preces que caíram no vazio, apesar de
terem sido feitas com ardor e até com temor. Como somos vistos como pessoas de
fé e não queremos escandalizar outros que não alcançaram uma fé madura,
silenciamos estas experiências frustradas. Mas uma reflexão sobre o significado
e a força da oração não pode menosprezá-las!
Algumas destas experiências têm uma
raíz claramente ambígua e pouco consistente. Basta lembrar da oração ferverosa
dos torcedores das equipes que se enfrentam numa partida de futebol: geralmente
a prece de um dos lados não é atendida. E há também aquela prece nacionalista
de dois povos em guerra, ambos pedindo a graça de vencer. Mais perto do nosso
cotidiano, quem não mantém na memória duras experiências da ineficácia da
oração por um parente ou amigo/a gravemente enfermo/a?
“Jesus ontou uma parábola para mostrar a necessidade
de rezar sempre e nunca desistir.”
Retomemos o evangelho de hoje nesta
perspectiva. O primeiro aspcto a ser ressaltado é que Jesus não insiste
propriamente na oração ininterrupta, mas na oração
perseverante. Não se trata apenas de ‘rezar sempre’, mas de ‘nunca desistir’. O próprio Jesus não foi
uma espécie de monje dedicado exclusivamente à oração, e os discípulos que
deram prosseguimento à sua missão, conjugaram equilibradamente o anúncio do
Evangelho com a prática da caridade e a oração.
Para entender a parábola proposta hoje
por Jesus é preciso dar um passo atrás e verificar o contexto literário no qual
está situada. Assim percebemos que vários versículos são dedicados à questão da
vinda do Reino de Deus (cf. Lc 17,20-37). Misturando a linguagem direta com a
linguagem apocalíptica, Jesus ensina que o
Reino de Deus não aparece de forma ostensiva e espetacular, mas é uma surpresa
que se esconde em todas as ações e movimentos de solidariedade entre os seres
humanos.
Ora, o conteúdo da súplica da viúva
da parábola se liga implicitamente à vinda do Reino de Deus. O que é o pedido
da viúva para que se faça justiça senão a súplica para que “venha o teu Reino”,
como Jesus mesmo ensinara? (cf. Lc 11,2) E a espera ativa que sustenta a insistência
da viúva não é mesma que traduzimos hoje como a espera e a luta por “um outro
mundo possível e necessário”? Esta é uma primeira lição importante: Jesus pede que sejamos perseverantes na
espera ativa do Reino de Deus.
“E Deus, não fará justiça aos seus escolhidos?”
Na Bíblia, a viúva é o protótipo do pobre que não tem com quem contar e está no
limite da sobrevivência. E Deus não pode ser indiferente ao clamor de quem
dia e noite suplica diante dele. Quem clama
são sempre os oprimidos e os pobres; os poderosos e ricos apenas reclamam. A passagem paradigmática
continua sendo aquela do livro do Êxodo: “Os israelitas continuavam gemendo e
clamando sob dura escravidão. E os gritos de socorro devidos à escravidão subiram
até Deus” (Ex 2,23).
Começamos a entender que o foco de Jesus não é propriamente a questão
da oração contínua e perseverante, e nem apenas o seu conteúdo. A parábola
está focalizada na eficácia do clamor que pede perseverantemente a intervenção
de Deus. Fazendo referência ao juiz que, mesmo não tendo fé, atende ao clamor
da viúva, Jesus nos interroga: “E Deus, não fará justiça aos seus escolhidos,
que dia e noite gritam por ele? Será que vai fazê-los esperar?”
O próprio Jesus responde à pergunta:
“Eu vos digo que Deus lhes fará justiça bem
depressa.” Jesus é pessoalmente a mediação da socorro de Deus, mas não é o
único. Lembremos novamente da experiência do êxodo: “Eu vi a opressão de meu
povo no Egito, ouvi os gritos de aflição diante dos opressores e tomei
conhecimento de seus sofrimentos. Desci para libertá-los das mãos dos
egípcios...” Mas a bola é passada aos pés de Moisés: “E agora vai! Eu te envio ao faraó para que faças sair o meu povo...”
(Ex 3,7.10).
“Deus te guarda na partida e na chegada.”
Todos/as os/as que cremos em Deus
somos mediadores/as da sua resposta aos clamores pela vinda do seu Reino. Mesmo
que muitas vezes nós mesmos/as estejamos entre aqueles/as que clamam quase
desesperadamente, desde que aderimos a
Jesus Cristo somos responsáveis também pela resposta de Deus aos clamores dos
outros. Continuamos a pedir “venha o teu Reino”, mas não podemos enterrar
os talentos que recebemos. Ele nos propõe a figura do samaritano e diz: “Vai e
faze tu a mesma coisa.”
Essencialmente, a oração cristã –
tanto aquela feita individualmente como as celebrações comunitárias dos
sacramentos – é um espaço e um exercício de ruptura com o fechamento e a
confiança absoluta em nós mesmos/as, uma abertura radical à vontade de Deus,
que é sempre e ao mesmo tempo, surpreendente e libertadora. É um exercício que
aproxima a nossa vontade da vontade de Deus, desloca o centro em torno do qual
gira a nossa vida de nós mesmos para o Reino de Deus.
Assim, eficácia da oração se mostra claramente no alargamento e no aprofundamento
da nossa consciência, do nosso modo de ver as coisas. A oração nos ajuda a
tomar consciência da ação de Deus que está em curso na história e das
possibilidades escondidas nela e em nós mesmos/as. Mas também nos eleva como
que no alto da cruz para que, assumindo
uma perspectiva essencialmente cristã, sintonizemos com todas as criaturas que
clamam por uma libertação que ainda não se realizou.
“Proclama a Palavra, insiste oportuna e
inoportunamente...”
É neste horizonte que compreendo o
chamado a alargar o nosso olhar e contemplar os imensos espaços da missão. Não
se trata mais apenas de pensar os espaços de missão como os territórios e povos
que não conhecem Jesus Cristo, nem de rezar piedosamente pelos padres e
religiosos que deixam a pátria e arriscam a vida em terras inóspitas e entre
povos incultos e violentos. Os espaços, os agentes e as ações propriamente
missionárias hoje são outras, e passam necessariamente pelo testemunho de vida.
Há quase 20 anos o Papa João Paulo
II insistia que a missão não tem
fronteiras, e se concretiza em vários
âmbitos. O primeiro é o âmbito
territorial, e compreende os espaços onde o Evangelho não chegou ou onde a
vida cristã ainda não amadureceu ou já perdeu sua força. O segundo é o âmbito social, e diz respeito aos grandes
centros urbanos, ao mundo da pobreza, dos migrantes, dos jovens, dos idosos,
etc. O terceiro é o âmbito cultural:
o mundo das comunicações, da pesquisa científica, da luta pelos direitos
humanos, da defesa das minorias e da promoção da paz, etc. (cf. RMi 37).
Nosso clamor e nosso labor como
cristãos do século XXI deve ser para que estes mundos e seus projetos sejam iluminados
e transfigurados à luz do Reino de Deus. Caminhos e projetos existem, e muitos,
e não precisam ser necessariamente carimbados pelo cristianismo. Precisamos
ampliar o horizonte do nosso olhar, do nosso rezar e do nosso agir para além do
recôndito familiar, das ilhas religiosas que são nossas comunidades, e dos
guetos culturais e nacionais que gostamos de formar.
“Será que o filho do homem, quando vier, vai encontrar
fé sobre a terra?”
Dai-nos, Jesus,
missionário do Pai, a confiança e a perseverança daquela viúva que não tinha
com quem contar. Ajuda-nos e pedir sem cansar que venha o teu Reino. Envia
irmãos e irmãs que sustentem nossos braços cansados. Leva-nos até o alto da tua
cruz para que, sintonizados com todos os clamores, desçamos aos caminhos da
história para iluminá-los com o nosso testemunho. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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