A morte não têm poder sobre a vida de quem ama.
(Sb 4,7-15; Sl 102/103; 2Cor 5,1.6-10; Jo
11,17-27)
É possível celebrar a morte, o fim sem
volta da existência humana? Não seria ela sempre uma tragédia, ou, ao menos,
uma perda irreparável? É verdade que sempre procuramos desesperadamente
construir pontes – com os tijolos das palavras, dos ritos, dos símbolos, do
amor saboreado, da esperança utópica, da fé teimosa – sobre o abismo que separa
os que estamos aqui e os que se foram. Mas a morte seria mesmo apemas um abismo
entre duas terras firmes, o aqui e o além, ou o fim obscuro e lamentável da
nossa bela, apesar de tudo, mas sempre precária existência? Que sentido tem
esse dia no qual lembramos as pessoas queridas que partiram deixando marcas e
vazios na nossa carne, uma jornada na qual meditamos sobre o que nos espera, ou
sobre o que podemos esperar com honradez?
“Deus os transferiu para outro lugar...”
Não é muito comum lamentar a morte
das pessoas que consideramos más, ou que não tiveram uma influência positiva
sobre nós. Conhecemos gente que se dispõe a antecipar o fim da vida de pessoas
a quem consideram inimigas, e até da própria vida, quando lhe parece difícil,
triste, sem sentido e sem futuro. Nestes casos, a morte não tem sabor de perda,
mas de vitória e de liberdade. Mas tudo muda de figura quando se trata de uma
vida plena de sentido, de uma pessoa que queremos bem e nos é preciosa. A morte
da pessoa considerada justa e a morte precoce das pessoas que nos são caras
abrem as portas da crise e nos impulsiona na busca de sentido.
Tanto o sábio da primeira leitura
como Marta, a irmã de Maria e de Lázaro, no Evangelho de João, cada qual do seu
jeito e com os recursos culturais que tem à mão, procuram um sentido para a
morte da pessoa justa, boa e querida, a morte que ceifa a vida antes do tempo.
A sabedoria popular do judaísmo encontra consolo afirmando que o sentido da
vida não está no grande número dos anos, nem na sobrevivência neste mundo mau.
“Ainda que morra prematuramente, o justo encontrará descanso... Deus o
transferiu para um outro lugar... Tendo alcançado em pouco tempo a perfeição,
completou uma longa carreira...” Ou seja: a morte é o ponto de chegada de uma
vida plenamente realizada.
“Todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá
jamais.”
A resposta oferecida por Jesus é
mais complexa e radical. O ponto de partida é o lamento de Marta, com sabor de
advertência e de reclamação à insensibilidade de Jesus: “Se tivesses estado
aqui, meu irmão não teria morrido...” Afinal, Jesus tinha sido informado da
enfermidade do amigo Lázaro, como nós não cansamos de lembrar a ele a doença e
as necessidades das pessoas que queremos bem. Afinal, nada mais normal do que o
desejo de prolongar e tornar menos difícil a vida das pessoas que amamos. Mas
aqui o risco é reduzir a figura de Jesus a um curador, a um médico onisciente e
onipotente.
Depois de cobrar a ausência de
Jesus, Marta expressa confiança no seu poder de forçar Deus a anular a morte e
prolongar a vida dor irmão querido. Jesus começa dizendo que Lázaro
ressuscitará, mas Marta não consegue ir além da fé tradicional na ressurreição
no final dos tempos, e essa crença lhe parece sem dinamismo e desprovida de
significado no preciso momento em que seu irmão foi tragado pela morte. Mas
Jesus lhe propõe algo absolutamente novo: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem
crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em
mim, não morrerá jamais.”
Por trás do diálogo tenso entre
Jesus e Marta está uma questão muito importante e atual: o que esperamos de
Jesus: cura, prolongamento da vida, reestabelecimento de uma situação do
passado, ou vida plena, vida com uma densidade e uma força que nenhuma forma de
morte pode estancar? Porque é Vida e caminho de amor e compaixão que a ela
conduz, Jesus é ressurreição. Com seu modo de ser e de agir, com sua proposta
de vida, ele suscita vita e, por isso, também a res-suscita. Para ele, e para
aqueles/as que acreditam nele, o que importa não é uma vida sem enfermidade e
sem limites, mas uma vida que tenha força de produzir e multiplicar vida.
“Crês nisso?”
Quem adere a Jesus Cristo, quem
refaz o seu caminho, quem vive sob impulso do seu Espírito e por ele se deixa
guiar, mesmo que tenha morrido, continua suscitando vida, e, nessa medida,
vive. A vida de tais pessoas é mais que uma história a ser recordada, louvada
ou lamentada: é percurso que continua aberto, travessia ainda em curso, beleza
que continua atraindo, dinamismo que continua movendo e sustentando outras vidas
de outras. E isso sem entrar na complicada questão de uma existência
pós-histórica, em moldes semelhantes à nossa vida presente.
Mas Jesus afirma também que quem vive e crê nele, jamais morrerá. E
isso tem sentido, porque nós morremos antes da morte – deixamos de gerar vida!
– por causa do pecado, do fechamento em nós mesmos/as, do medo de perder a vida
no despojamento e no serviço por amor. Aderir a Jesus Cristo significa assumir
o último lugar, o lugar de quem serve por amor; significa perder o medo de morrer,
acreditando que ele derrotou o poder assustador e destruidor da morte, e que a
nossa vida está escondida com ele, em Deus. Quem vive em Jesus Cristo e nele
acredita vence antecipadamente a morte, de modo que quando ela chega, é
recebida como irmã, e não como ameaça.
A afirmação e a pergunta que Jesus
dirigiu a Marta é dirigida também a nós. “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem
crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em
mim, não morrerá jamais. Crês nisso?”
Marta dá sua resposta pessoal, no horizonte cultural do seu tempo, com a fé
embrionária que a movia. “Sim, eu creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho
de Deus, aquele que deve vir ao mundo.” Teria ela compreendido que, mais
importante que ter de volta o irmão falecido, é que o Messias de Deus venha
permanentemente para reerguer as pessoas subjugadas pelas sombras da morte e
dirigir os nossos passos nos caminhos da paz? Aderindo a ele, perdemos tudo, recebemos
tudo, e não temos necessidade de garantir nada.
“Enquanto moramos no corpo, somos peregrinos...”
Escrevendo aos coríntios, o apóstolo
Paulo nos convida a compreender bem o sentido da existência em Cristo, e, nela,
o sentido da morte. Ele reflete sobre a nossa vida histórica comparando-a a uma
tenda, à habitação provisória de quem sabe que está aqui só de passagem.
Enquanto habitamos nessa tenda, continuamos peregrinos, caminho para Deus,
mesmo sabendo que em Jesus Cristo ele já veio definitivamente ao nosso encontro
e o Reino de Deus já começou e está entre nós. Por isso, caminhamos cheios de
confiança, e não lamentamos deixar essa tenda em vista do lar definitivo.
Não podemos cair no simplismo de ler
estas palavras num horizonte dualista, opondo ou colocando lado a lado um certo
mundo material e um suposto mundo espiritual, uma vida corporal e uma vida
espiritual. Como cristãos, cremos que a vida humana, e todas as expressões da
vida, é pascal, ou seja: é Travessia, Passagem, Caminho. A história – nas suas
dimensões de passado, presente e futuro – e o corpo – nas suas dimensões de
interioridade e exterioridade – são a paisagem, o chão e a expressão da vida,
mas não a esgotam, nem a detém. Quem desiste de peregrinar rumo ao outro mundo
possível, renega a fé em Jesus Cristo e morre definitivamente, mesmo que
continue biologicamente vivo/a.
Tudo isso parece muito complicado,
mas o testemunho de tantas pessoas amadas que nos já deixaram proclama essa fé
de modo simples e eloquente. E aqui não é preciso recorrer às grandes figuras
do passado, nomes que pontilham de vida nosso calendário santoral. Todos temos
a alegria de conservar ‘no lado esquerdo do peito’ o nome e a imagem sagrada de
pessoas, às vezes muito sofridas e cheias de limites, que viveram a vida como Travessia,
caminhando cheias de confiança em Jesus Cristo, levando quase nada na bagagem,
deixando tudo como sal que conserva e dá gosto, como fermento que faz crescer,
como semente que germina e floresce. Essas pessoas jamais morrerão!
“Como a erva são os dias do homem...”
Jesus de Nazaré, Unigido do Pai para suscitar e ressuscitar a vida! Também
tu viveste a fragilidade da vida humana e a amaste desmedidamente. Como a tua,
também nossa existência é pó que o vento leva, é erva que o vento seca.
Ajuda-nos a vivê-la em ti, no teu espírito, no dinamismo da tua compaixão
humanamente divina e sem medo do nada da morte, pois a bondade tua e do teu e
nosso Pai vêm desde sempre e dura para sempre. Ensina-nos a cumprir com alegre
confiança e generosa compaixão a apaixonante Travessia do nosso viver. E que a
saudosa lembrança daqueles/as cuja tenda corporal foi desfeita e entraram na
morada definitiva ilumine, anime e perfume nossa estrada. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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