Todos os homens e
mulheres são chamados à santidade.
(Ap 7,2-4.9-14; Sl 23/24; 1Jo 3,1-3; Mt
5,1-12)
O primeiro dia (ou o primeiro domingo) do mês de
outubro, a Igreja católica o dedica à festa de todos os santos e santas. Como
esquecer que a verdadeira santidade é aquela que se manifesta na vida das pessoas
que ousam sair do estreito limite dos próprios interesses e se aproximam solidariamente
dos últimos; que tecem pacientemente os fios que fazem do mundo inteiro uma
única família; que vão aos rincões mais distantes ou exigentes para levar a
bandeira da paz; que são movidos por uma insaciável sede de justiça; que choram
as dores dos povos de todas as cores e provam o fel da violência da
perseguição; que transformam a terra pela mansidão?... Celebremos e festejemos
a alegria de participar de uma imensa caravana de homens e mulheres de todas as
raças, nações e línguas que nos precedem, nos acompanham e nos seguem. E
renovemos o desejo e o compromisso de levar em nosso corpo as marcas de Jesus
Cristo.
“Gente
de todas as nações, tribos, povos e línguas...”
No último dia 30 recordávamos os 34 anos do
assassinato de Santo Dias da Silva, líder cristão e operário, e 466 anos da
páscoa de Martinho Lutero, religioso católico e reformador da Igreja. Dois
homens sensíveis ao próprio tempo que, em diferentes lugares e circunstâncias,
e também com métodos diversos, sonharam e lutaram por uma sociedade mais justa
e uma Igreja mais fiel a Jesus Cristo. Dois cristãos que tinham fome e sede de
justiça e sofreram perseguição. Será que eles não fazem parte da imensa
multidão de servos de Deus, cujas frontes foram marcadas com o sinal do
Cordeiro?
A festa de todos os santos e santas faz memória dos/as
santos/as esquecidos/as, daqueles/as que não têm um dia especial e um nome conhecido;
daqueles/as que gastaram a vida no anonimato e cujos milagres não podem ser
contabilizados pelas regras canônicas; de gente como Sepé Tiarajú, Padre
Cícero, Dom Romero, e Ir. Adelaide, e mesmo de gente quem não rezou pelo nosso
catecismo, como Lutero, Luther King, Gandhi e tantos outros; celebra a memória
daqueles/a que nos antecederam na fé e cujo testemunho mantém a Igreja no
caminho certo, apesar das suas resistências e ambivalências.
“Desde
agora já somos filhos de Deus...”
Mas a celebração de todos os santos e santas não olha
somente para o passado. Ela é oportunidade e provocação para refletir sobre a
vocação fundamental de todos os/as cristãos. Sendo verdade que a santidade é um
caminho estreito e uma vocação exigente, isso não significa que seja reservada
a alguns grupos especiais de cristãos. Há mais de quarenta anos o Concílio
Vaticano II proclamava de forma clara e contundente, contra a idéia
predominante, que a santidade não é privilégio dos sacerdotes e religiosos/as.
Muito antes, a história já havia comprovado o que então era proclamado
solenemente.
Na passagem do milênio, o saudoso João Paulo II
provocava os cristãos a não se contentarem com pequenas medidas, com vôos
rasantes, com ideais nanicos, e pedia que aspirassemos nada menos e nada mais
que à santidade. A vocação de todos precisa se transformar em desejo pessoal e
em decisões e ações concretas. Como diz São João, nós somos chamados filhos/as
de Deus e já o somos desde agora, mas o desafio é crescer na identificação com
Jesus Cristo, gravar no corpo e na mente as marcas de Jesus Cristo. “Seremos
semelhantes a ele...” E isso deve ser mais que um simples sentimento.
“Felizes
os pobres no espírito...”
Jesus Cristo é o verdadeiro e perfeito santo de Deus
e, ao mesmo tempo, o caminho para a santidade. Não há santidade à margem do seguimento de Jesus Cristo, mesmo que tal
seguimento seja implícito. Trata-se então de refazer o caminho prático
trilhado por Jesus: “amar como Jesus amou; sonhar como Jesus sonhou; pensar
como Jesus pensou; viver como Jesus viveu; sentir como Jesus sentia...” Este é
o caminho para que, no meio ou no fim do dia e no no meio ou no fim da vida,
sejamos felizes. No ‘sermão da montanha’, Jesus nos propõe o caminho de
santidade que ele mesmo percorreu.
A bela mensagem de Jesus que denominamos bem-aventuranças apresenta as diversas
setas que indicam claramente o caminho da santidade. Ele não fala propriamente de
oito grupos específicos de pessoas, mas de oito características daqueles/as que
percorrem este caminho. O caminho começa com a pobreza e termina com a
perseguição, mas isso não é obstáculo, pois o Reino de Deus é antes de tudo – e
no presente! – dos pobres e dos perseguidos. A consolação para os aflitos, a
herança para os mansos, a saciedade para os famintos, a misericórdia para os
compassivos, a visão de Deus para os puros e a filiação divina para os
promotores da paz, são promessas para o futuro, mas a alegria sem fim do Reino
é experiência concreta dos pobres em espírito e dos perseguidos já no tempo presente.
A santidade à qual todos/as somos chamados/as tem fisionomia
de discípulado, de despojamento solidário; o coração dos/as que se afligem e
choram compassivamente as dores dos outros; o ritmo inquieto dos/as que anseiam
e pela justiça plena e universal; o olhar terno da misericórdia; a
transparência de quem evita a duplicidade e as segundas intenções; a ousadia
daqueles/as que promovem a paz; a indestrutível alegria de quem assume os custos
de ser livre e libertador.
“Felizes
os que têm fome e sede de justiça...”
Embora o conceito não goze de muita estima entre nós,
os/as santos/as são chamados de beatos/as. Isso quer dizer que o caminho da santidade e o caminho para a felicidade coincidem. Santidade
não rima com tristeza ou com fechamento em si mesmo, mas com felicidade e
abertura aos outros. O caminho de Jesus Cristo, assim como a vida e a
espiritualidade cristãs, são propostas de uma felicidade que coincide com a
realização da mais profunda vocação humana, que, por isso, é duradoura.
O caminho que nos conduz à santidade feliz e à
felicidade santa está longe de ter as características da passividade ou do
afastamento do mundo. Pelo contrário, passa pelo empenhativo distanciamento dos
interesses individuais ou de pequenos grupos; pela partilha da dor e da humilhação
dos outros; pela mortificante e vivificante fome e sede de justiça; pela
prática perseverante da atenção aos mais frágeis; pela superação das palavras e
ações ambíguas; pela ativa semeadura da paz em todas as relações; pela firmeza
serena nas perseguições.
Está longe do Evangelho uma santidade que se resuma em
práticas de piedade. Está distante da essência humana uma felicidade baseada no
sucesso pessoal e na indiferença em relação à sorte dos semelhantes. Aqueles/as
que se vestem de branco e trazem palmas nas mãos são os/as vieram da grande
tribulação, que lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro, que recriaram sua
ação libertadora, que encarnaram o Evangelho no mundo e na própria vida.
Felicidade não significa ausência de dificuldades, mas realização plena e
profunda da vocação humana. Mais que perfeição, santidade é perseverança no
amor e no serviço.
“Seremos
semelhantes a ele...”
Jesus é o verdadeiro santo. A ele devemos o louvor, a
glória, a sabedoria, a honra, o poder, a força e a ação de graças. A santidade
que brilha no rosto, que atua nas mãos e pulsa no coração da multidão
incontável que nos antecede e nos rodeia é fruto do Espírito de santidade e de
verdade que Jesus Cristo derrama sobre a comunidade daqueles/as que o seguem.
Se somos filhos/as e herdeiros/as, o somos por adoção e graça, e não por mérito
pessoal ou direito adquirido.
A provocação pessoal de Jesus Cristo e o estímulo
dessa multidão de vestes brancas que caminha alegre e jubilosa nos coloca e nos
mantém no caminho da santidade. Que nossas roupas de marca, que diferenciam
hierarquizam, sujas pela impureza do nosso pensar e pela ambigüidade do nosso
agir, se assemelhem às roupas do Cordeiro no talhe, na cor e no uso. Que nossas
roupas sejam o hábito de quem serve, sejam como as vestes de Jesus de Nazaré.
Jesus de Nazaré,
Santo de Deus e testemunha fiel! Pedimos-te a graça de permanecer de pé diante
de ti, que és o Cordeiro imolado, rodeados pela nuvem de testemunhas anônimas de todas as
nações, tribos, raças e línguas. Ajuda-nos a superar a doce tentação de
separar, catalogar e hierarquizar católicos e evangélicos, cristãos e
não-cristãos. Fica conosco e caminha à nossa frente, para que estejamos sempre prontos/as
para a travessia e para a luta. Que a nossa incrível capacidade de sofrer e
nossa inexplicável alegria em meio às intermináveis lutas sejam nossas armas e
nosso triunfo. E então estaremos viverendo em comunhão com os santos e santas
que te rodeiam e te louvam no céu. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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