Celibato forçado
Há poucos dias o papa Francisco concedeu uma entrevista ao jornal
italiano La Repubblica, na qual
afirmava que a Igreja é “vaticanocêntrica”. Salvo engano, com tal afirmação o
papa queria falar de uma Igreja voltada totalmente para si mesma, sem
suficiente abertura para a missão e para os sinais dos tempos. Queria também
falar da máquina burocrática vaticana que emperra tudo; que tudo concentra e
não responde às urgências do momento. Vivendo para si mesma a Igreja se
distancia do Evangelho e da proposta de Jesus. Transformada em uma burocracia,
a Igreja deixa de ser sensível aos apelos de Deus, que se apresentam em tantas
questões que esperam por soluções urgentes. E tais soluções não devem ser
tomadas por uma questão de modismo, ou porque existem reivindicações em muitas
partes do mundo. Devem ser tomadas para que a Igreja cumpra mais fielmente a
sua missão no momento atual.
Entre os tantos problemas que exigem uma solução urgentíssima está o celibato forçado para os padres
diocesanos da Igreja Católica Apostólica Romana de rito latino. Na Igreja
Católica Romana de rito oriental esse problema não existe: os padres podem se
casar. O que prova que a hierarquia da Igreja Romana usa de dois pesos e de
suas medidas. É injusta com os padres de rito latino.
Sabemos que até o século XII existiam padres casados na Igreja Católica
de rito latino, os quais conviviam tranquilamente com os colegas que livremente
tinham optado pelo celibato. Na Igreja do Novo Testamento temos o testemunho de
que existiam ministros casados e ministros celibatários. Pedro, considerado
pela Igreja Católica o primeiro papa, era casado (Mc 1,29-31). É verdade que
inventaram uma história de que ele era viúvo, mas isso não tem nenhum
fundamento bíblico e histórico. Pelo contrário, segundo um depoimento do
apóstolo Paulo (1Cor 9,5), tudo indica que Pedro e os demais apóstolos levavam
suas esposas em suas viagens missionárias. Tentaram minimizar esse dado,
dizendo que se tratava de mulheres cristãs que seguiam os apóstolos. Mas nada
nos impede de pensar que as mulheres mencionadas por Paulo eram as esposas dos
apóstolos. A única exigência encontrada no Novo Testamento é que o ministro
ordenado, inclusive o bispo, seja “marido de uma só mulher” (1Tm 3,2).
O padre e psicólogo norte-americano Donald Cozzens, em seu livro Liberar o celibato (Loyola, 2008), nos
traz uma longa lista de papas e bispos famosos que eram casados. O papa Sisto
era filho de um padre; o papa Dâmaso I era filho de um bispo. O papa Inocêncio
I era filho do papa Santo Anastásio. O papa Hormisdas teve um filho que se
tornou papa e santo: São Silvério. O último papa casado foi Adriano II que
governou a Igreja entre os anos 867-872. Convém chamar a atenção para o fato de
que esses papas e bispos eram casados e tiveram filhos não porque tenham
violado a lei do celibato ou porque eram viúvos. Simplesmente porque naquele
período era normal o casamento de ministros ordenados.
O celibato forçado para todos os padres da Igreja Católica se tornou
obrigatório a partir do Segundo Concílio de Latrão (1139). As pesquisas revelam
que o motivo dominante que levou a exigir dos padres o celibato forçado foi a pureza ritual. A síntese dessas
pesquisas, com farta documentação, se encontra no livro Por uma Igreja mais humana (Paulus, 1989) de Edward Schillebeeckx.
A chamada lex continentiae (lei de
continência), que já aparece no final do século IV, exigia que o padre não
mantivesse relações sexuais com a sua mulher na noite do sábado para o domingo,
ou seja, na noite que precedia o dia da celebração eucarística. A razão era a
mais absurda possível: por influência do maniqueísmo, a relação sexual era
considerada impura e indigna de quem iria “tocar” no Corpo do Senhor, a
Eucaristia. Quando no século XII a missa passou a ser diária, e não apenas no
domingo, o dia do Senhor, e o padre obrigado a celebrá-la todos os dias, a lei
da continência perpétua tornou-se obrigatória para todos os padres do rito
latino.
Schillebeeckx nota que ao fazer isso a Igreja Católica simplesmente
adotou um costume pagão, uma vez que esse tipo de pureza ritual – a abstenção
da relação sexual – era obrigatório para os sacerdotes pagãos das religiões dos
povos do Mediterrâneo. O autor fala também do sofrimento das mulheres dos
padres de então que, após a determinação do Concílio de Latrão II, se viram
impedidas de conviver com seus maridos padres e, por isso, mandas embora de
seus lares.
Após a determinação do segundo concílio de Latrão passou a vigorar o
princípio absoluto de que “omnis coitus immundus est”, ou seja, “todo coito é
imundo”. A relação sexual passa a ser vista como uma coisa suja, intolerável
para um padre. A relação sexual e o prazer sexual já tinham sido “satanizados” havia
muito tempo e alguns autores cristãos – lamentavelmente considerados santos
pela Igreja – chegaram a propor que a lei da continência fosse obrigatória para
toda pessoa batizada. A coisa não foi adiante pelo simples fato de que era
preciso continuar com a procriação da espécie humana. E como a procriação
naquela época não podia ser feita de outra maneira, concordou-se em “tolerar” o
matrimônio e dentro dele a relação sexual.
Fica, então, bem evidente que o celibato forçado para os padres da
Igreja Católica possui uma motivação inicial absurda, que não pode ser mais
aceita no mundo de hoje. Por trás do celibato obrigatório está uma visão
maniqueísta do sexo e da relação sexual. Como vimos antes, na origem do
celibato obrigatório não está um princípio evangélico, mas um costume pagão
ligado ao ideal estóico da “ataraxia” (ausência de perturbação). Segundo tal
concepção, a relação sexual era tida como uma espécie de “pequena epilepsia”
que tirava do homem (varão) os sentidos e, por isso, não era racional e digna
do sábio. É claro que, após a introdução da lei da continência obrigatória para
os padres, centenas de milhares de páginas foram escritas para “espiritualizar”
e justificar o celibato imposto, inclusive apresentando razões idiotas como,
por exemplo, o fato de que o padre casado colocaria em perigo os bens da Igreja.
Tentou-se justificar tal imposição pelo fato de que Jesus não era casado. O
padre, para ser um “alter Christus”, um “outro Cristo”, para agir “in persona
Christi”, no “lugar de Cristo”, deveria necessariamente ser celibatário. Porém,
a história eclesial feita com seriedade e honestidade comprova que tal
“espiritualização” é estúpida e não tem o menor sentido. A razão verdadeira da
manutenção até hoje do celibato obrigatório é maniqueísta, pagã e absurda. Sem
nenhum fundamento bíblico e na contramão da praxe da Igreja do primeiro
milênio.
Existem, pois, razões teológicas muito sérias para se abolir o quanto
antes esta lei absurda da continência obrigatória para os padres. A principal
delas é o fato de que a manutenção dessa lei impede que homens chamados por
Deus tanto para o casamento como para o ministério possam servir à Igreja como
ministros ordenados. Veja-se o absurdo a que chegamos: esta Igreja
“vaticanocêntrica” impede, com suas leis, que se realize a vontade e o projeto
de Deus. Deus chama homens casados, ou homens que querem se casar, para o
presbiterado e o episcopado. Mas a Igreja Católica impede que o chamado de Deus
se realize. Cabe aqui a pergunta pertinente do padre Cozzens: “Será que devemos
concluir que, na ocasião da celebração dos dois concílios de Latrão, Deus
decidiu não mais inspirar a vocação sacerdotal às pessoas a quem ele tinha
inspirado a vocação ao matrimônio, à exceção apenas dos candidatos ao sacerdócio
nas Igrejas orientais?” (Liberar o
celibato, p. 47). Se não fosse algo tão triste e sofrido, até pareceria uma
piada!
Aceitar padres casados não significa desvalorizar o celibato. O
celibato, como opção livre “pelo Reino” (Mt 19,12), continuará tendo todo o seu
valor e deverá ser estimulado, estimado e amado, inclusive pelos padres
casados. Aqueles que movidos por um carisma do Espírito querem permanecer
celibatários, não só poderão como deverão viver nessa condição. Não haverá nenhum
problema que convivam num mesmo presbitério diocesano padres celibatários e
padres casados. Provavelmente surgirão novos desafios para essa convivência na
diversidade dos dons do Espírito. Mas a Igreja não pode continuar mantendo uma
disciplina absurda e anti-evangélica apenas por medo de problemas. Isso seria
covardia, frouxidão e uma explícita tentativa de extinguir o Espírito de Deus.
Portanto, esta medida absurda deixa a Igreja atrasada em quase mil anos. Um
tempo longo demais e no qual a Igreja Católica Romana colocou um empecilho
jurídico à liberdade divina de chamar homens casados para o presbiterado e para
o episcopado. Não podemos continuar extinguindo o Espírito de Deus. É urgente
mudar para nos conformarmos com os desígnios divinos e com o Evangelho de Jesus.
José Lisboa Moreira de Oliveira
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