Façamos resplandecer a
boa vida do Evangelho.
(Eclo 31,15-17.20-22; Sl 33/34; 2Tm
4,6-8.16-18; Lc 18,9-14)
Há mais de 80 anos, a Igreja
católica do Brasil dedica o mês de outubro à oração pelas missões. Somos
convidados/as a celebrar a memória do Senhor e a ouvir sua Palavra sintonizando
o bater do coração, o ritmo dos passos e o olhar da fé com a missão. Que nossa
oração evite a presunção da superioridade e brote da humilde consciência de que,
infelizmente, o coração de nossas comunidades ainda não bate suficientemente
forte e alegre ao ritmo da missão. Mas, acima de tudo, confirmemos nosso
engajamento para que, como diz o Papa Francisco na sua mensagem para o Dia Mundia das Missões, resplandeça hoje
e urgentemente a vida boa do Evangelho, mediante o anúncio e o testemunho,
começando no interior da própria Igreja.
“O Senhor é um juiz que não faz discriminação de
pessoas.”
Por mais que se queira negar ou
maquiar, nosso mundo está estruturalmente dividido. Não é necessário viajar além-fronteiras
para perceber que, em termos gerais, os países do hemisfério Norte, outrora
denominados Primeiro Mundo, vivem na abundância de bens e oportunidades, enquanto
que os países do hemisfério Sul são condenados a digerir a miséria à qual a
secular expropriação os condenou. Esta divisão se mantém hoje através das
barreiras legais impostas aos migrantes que fogem do Sul, muitos dos quais
morrem no próprio caminho que os levaria a uma vida melhor.
Existem também divisões entre
pessoas e grupos sociais. Não se trata apenas de diferença – que é um valor e um direito a ser defendido – entre
pessoas, etnias e grupos, mas de divisão
que hierarquiza e exclui muita gente e muitas culturas e países. Basta lembrar
da primazia que a cultura e os meios de comunicação dão às pessoas e grupos ocidentais,
brancos, masculinos, cultos e ricos. É evidente que os orientais, os negros e
índios, as mulheres, os analfabetos e os pobres são tratados como inferiores.
Quando sublinhamos a evidência desta
divisão, vozes se levantam acusando-nos de filo-marxistas, tendenciosos e
interesseiros. Mas é preciso lembrar que a Palavra de Deus não põe panos
quentes nem faz olho grande frente a esta divisão. Ao contrário, a bíblia
inteira, especialmente os escritos proféticos e os evangelhos, mostram que Deus
denuncia essa divisão como inaceitável e toma partido em favor das pessoas e
grupos mais fracos: os escravos e estrangeiros, as viúvas e os órfãos, os
pobres e os excluídos.
“Dois homens subiram ao templo para rezar.”
Será que esta nefasta divisão existe
também no interior das nossas igrejas? Infelizmente, devemos responder dizendo
que sim. Para confirmar, basta dar uma olhada atenta à primazia conferida às
Igrejas européias – à teologia, ao direito e à liturgia por elas elaboradas –
no confronto com as Igrejas do (mal dito) Terceiro Mundo. Não obstante a
notável ajuda econômica que as primeiras versam nos cofres vazios das segundas,
não é raro ouvir ainda hoje de altos hierarcas que todos os cristãos devem
assimilar a fé na sua versão européia.
E tem mais. Não podemos esquecer
aquela profunda e dolorida divisão – que às vezes se transforma em oposição e
em condenação recíproca – entre as próprias comunidades cristãs: ortodoxos e
romanos, católicos e protestantes, igrejas clássicas (católicas e evangélicas)
e igrejas pentecostais, etc. Como pode ser agradável a Deus um culto no qual
membros desta ou daquela igreja se gloriam por não serem como os outros:
idólatras, mal-intencionados, interesseiros, exploradores da fé do povo?
A este propósito é impressionante o
testemunho do apóstolo Paulo. Ele combate com tenacidade a postura de
superioridade dos judeus e dos novos cristãos de origem judaica em relação aos
pagãos ou aos cristãos vindos do paganismo. Quando escreve, em forma de
testamento, que combateu o bom combate, completou a corrida e guardou a fé,
está se referindo à sua convição de que Cristo é nossa paz, pois de dois povos
fez um só povo, derrubando o muro da inimizade que os separava (cf. Ef 2,14).
“A prece do humilde atravessa as nuvens...”
No centro do evangelho deste domingo
está a questão da correta atitude de quem reza. Se, no último domingo, Jesus
nos pedia para não desistir de rezar, hoje ele nos pede atenção sobre como rezamos. Em forma de parábola,
Jesus confronta a postura de dois personagens bem conhecidos: o fariseu, cioso de sua superioridade e
perfeição, isolado das pessoas comuns, ostensiva e exteriormente piedoso; o publicano, cobrador de impostos,
colaborador do poder estrangeiro, impuro e execrável aos olhos dos judeus
nacionalistas, excluído da vida social e religiosa que gira em torno do templo.
Desejoso de ser visto e reconhecido,
o fariseu reza de pé e olha os demais
de cima para baixo. Sua oração é uma espécie de auto-elogio e, ao mesmo tempo,
desprezo e condenação dos demais. É como se o próprio Deus fosse obrigado a
agradecê-lo por ser tão bom e correto. O publicano
praticamente não entra no templo e, sem coragem mesmo de levantar os olhos,
bate no peito reconhecendo sua condição ambivalente e pedindo que Deus se
compadeça dele.
É bem possível que estas diferentes
posturas na oração não seja um problema somente do judaísmo. Se Lucas nos traz
esta questão é porque ela estava presente também nas comunidades cristãs. A
ostentação e a pretensão de superioridade, sempre acompanhadas de uma agressiva
discriminação, contaminaram também os cristãos e infelizmente resistem, como
erva daninha difícil de erradicar, até os nossos dias. E quase sempre vêm
revestidas com a atraente roupagem da piedade.
“O pobre clama
a Deus e ele escuta...”
Desde a parábola de Abel e Caim , sentimo-nos
incomodados diante da imagem de um Deus que não trata a todas as pessoas do
mesmo modo. Imaginamos um Deus com os olhos vedados, como a clássica imagem da
justiça. Como diante da lei todos seriam iguais, a justiça não poderia ter
preferências... Mas Deus não é assim. “Ele não
é parcial em prejuízo do pobres, mas escuta, sim, as súplicas dos
oprimidos; jamais despreza a súplica do órfão, nem da viúva, quando desabafa
suas mágoas.”
A humanidade que queremos única
começa a ser gerada exatamente quando, em nome de Deus, evitamos a parcialidade
que relega os fracos a um sofrimento contínuo e assumimos a luta pelos seus
direitos não reconhecidos ou não atendidos. A sonhada humanidade chamada a ser
única família não será uma realidade enquanto insistirmos numa igualdade apenas
formal das pessoas, uma igualdade negada descaradamente pelas escandalosas
desigualdades econômicas, sociais, culturais e religiosas.
Voltemos a Abel e Caim (cf. Gn
4,1-16). Abel é pastor, não tem terra, vive como migrante, numa insegurança
estruturalmente provocada. Caim é agricultor, administra uma propriedade, goza
de estabilidade. Não há porque estranhar quando o texto sagrado diz que “o
Senhor olhou para Abel e sua oferta, mas não deu atenção a Caim com sua
oferta”. O que Caim era realmente acaba vindo à tona logo em seguida: se mostra
absolutamente indiferente e mortalmente violento em relação ao seu irmão.
“Ele fez com que a mensagem fosse anunciada
integralmente...”
A humanidade tem como vocação ser
uma só família. A interdependência dos povos e nações é já um fato objetivo,
mas precisa se tornar um valor assimilado subjetivamente e garantido
estruturalmente. Sabemos que um acontecimento econômico relevante nos EUA
repercute em todo o globo, e que uma crise política no Oriente Médio agita todas
bolsas de valores e, interferindo na cotação do petróleo, penaliza os
produtores dos mais remotos rincões do mundo. A interdependência é um fato.
Mas o desafio – e nisso a missão dos
cristãos pode contribuir enormemente! – é transformar esta solidariedade objetiva
e estrutural num valor a ser positivamente buscado e assegurado em favor de
todos. A dignidade da pessoa humana independe de sua origem étnica, pertença
religiosa, nacionalidade, convicção política, identidade sexual ou grau de
instrução. Estas diferenças não dividem, nem hierarquizam; apenas distinguem,
complementam e enriquecem.
“Combati o bom
combate, completei a corrida...”
Deus Pai-Mãe, tu fazes a prece do humilde atravessar as nuvens. Despoja-nos
de todo orgulho arrogante e de toda competição infantil. Ajuda-nos a anunciar
teu Evangelho integralmente e a fazer resplandecer, pelo anúncio e pelo
testemunho, a boa notícia e a boa vida que ele nos traz. E isso até que a
humanidade seja de fato uma família, na qual todos os membros são queridos e
respeitados. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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