Cadáveres insepultos
Prossegue inexorável o desfile de
estatísticas, imagens, notícias, comentários, observações, entrevistas e
análises sobre a tragédia recente dos refugiados no Mediterrâneo. De acordo com
o Corriere della sera, (04/outubro/2013),
um dos principais jornais italianos, por exemplo, o número dos imigrantes
mortos nas águas do mar, ao sul da Itália, nos últimos anos já alcança a
espantosa cifra de 19.142. Mas a tragédia de 3 de outubro/2013, por suas
proporções inusitadas, parece ter sacudido a Europa e o mundo para o drama dos
migrantes e refugiados: um barco com cerca de 500 africanos em fuga, entre eles
muitas mulheres e crianças, sofreu um incêndio e naufragou ao tentar aportar nas
costas do sul da Itália, perto da ilha de Lampedusa. Sobreviveram ao naufrágio
apenas cerca de 150 pessoas. Os demais foram engolidos pelas ondas, às vistas
dos habitantes, na maioria pescadores, impotentes e desesperados. Ao final, os
corpos inermes e sem vida formavam uma grande macha na superfície azul do mar. Restou
a imagem macabra, pungente e dramática dos negros sacos de plásticos estendidos
ao longo da praia, imagem que desfilou tragicamente pela mídia escrita e
televisiva. Sem falar do sensacionalismo de alguns meios de comunicação que
aproveitam de tais números e imagens para considerações que beiram o
preconceito e a discrminação, o racismo e a xenofobia.
Numa visão nua e crua dos fatos, as
rotas dos deslocamentos humanos de massa, por toda parte, encontram-se quase
sempre pontilhadas de cruzes, tristes e solitários sinais de morte, apesar de
unidos por um trágico destino. As multidões que perdem a vida tentanto
atravessar as águas do Mediterrâneo e do Mar do Caribe ou as areais do deserto
entre México e Estados Unidos e no norte da África, bem como de outras
fronteiras particularmente ao sul e ao leste do planeta, vêem crescendo de
forma assustadora. Sobem progressivamente às dezenas, às centenas e aos
milhares... Ao mesmo tempo, assiste-se à “globalização da indiferença”, como
afirma o Papa Francisco diante de tais fatos com suas imagens traumáticas. “Uma
vergonha” – disse o Pontífice a respeito dos últimos mortos de Lampedusa, o
qual, quando de sua visita à mesma ilha, já havia declarado que “os migrantes e
refugiados não são peões na tabuleiro de xadrez da humanidade”. Sonhos de
liberdade e de vida melhor que se convertem em pesadelos!
As autoridades italianas, por sua vez,
fazem seguidos apelos à Comunidade Europeia, no sentido de buscar uma solução
unificada, uma Lei de Imigração para todos os países do continente. A costa
meridional do Metiterrâeno – dizem – não é somente a fronteira da Itália com os
países da África (Eritreia, Etiópia, Tunísia, Egito...) e do Oriente Médio
(Síria, Libano...), mas a fronteira com a Europa no seu conjunto. Daí a
necessidade do envolvimento de todos. Mas a Alemanha, a França, a Ingleterra, a
Espanha e demais países fazem “ouvidos moucos” aos apenos da península
italiana. Ao lado de vãs e vagas promessas ou de oportunísticas palavras de
solidariedade, prevalece o silêncio e a indiferença geral, como se a gravidade
do “problema” se limita-se ao sul do velho continente. Enquanto isso, os fatos
trágicos vão se acumulando, sem qualquer previsão de um fim a curto ou médio
prazo.
Não seria exagero falar de “cadáveres
insepultos”, uma vez que, na quase
totalidade dos casos, sequer lhes são concedidos os costumes fúnebres dos
parentes e de sua cultura original. Privados em vida de terra e trabalho, teto
e pão, condições mínimas de sobrevovência; privados, mesmo depois da morte, de
um velório, uma flor, a luz de uma vela ou uma prece que os assista e conforte
os familiares; privados, do berço ao túmulo, do respeito mínimo à dignidade
humana. Verdadeiros mártires anônimos do mundo contemporânea, ceifados na flor
da idade e das energias na luta por uma vida digna. Por “mares nunca dantes
navegados”, como diria o poeta português Camões, a esperança, tragado pelas
águas, se desfaz nos ventos da adversidade. Pior ainda quando nos damos conta
que por trás de cada um desses números encontra-se não somente o rosto de uma
pessoa humana, mas quase sempre de toda uma família, orfã e perdida, como fruto
de uma “viagem” pressionada pela situação de completo abandono.
Para estes refugiados, a via da
migração tem mão única. Não há qualquer possibilidade de retorno. Para trás, em
muitos casos, ficaram as imagens sangretas da guerra civil, as ruínas da
própria casa, os escombros da cidade em chamas, as marcas dos disparos
espalhadas pelas paredes, os brutais assassinatos ou estupros de pais, mães,
irmãos, irmãs, filhos, filhas, familiares em geral... Para trás, em outros
casos, ficaram a pobreza e a miséria, a fome cruelmente estampada nos olhos, no
rosto desfigurado e no corpo esquelético de filhos órfãos de pais vivos, os
quais, embora jovens e fortes, se vêem impossibilitados de encontrar o alimento
diário para a família... Para trás ficaram as cinzas de uma cidadania abortada,
negada, onde a exploração e a violência gera, ao mesmo tempo, concentração de
riqueza e exclusão social... Para trás ficaram as marcas da morte precoce,
disseminados pelas regiões e países pobres, periféricos, subdesenvolvidos que,
depois de colonizados e saqueados, foram abandonados à próprio sorte.
Diante da impossibilidade de retorno,
resta como única tentativa de sobrevivência caminhar sempre para frente. Não
importa se o horizonte se apresenta incerto, nebuloso e sombrio, é preciso
enfrentar os perigos do incógnito, do desconhecido. Resta, em outras palavras,
o risco de migrar a qualquer preço, de correr em busca em busca de trabalho e
liberdade, seguindo as pegadas do desenvolvimento e do capital. Nesse projeto
de fuga, os desterrados investem todo o dinheiro que seja possível arrumar,
vendendo os últimos pertences familiares. Cegos pelo desespero, atiram-se sobre
aos atropelos sobre velhas barcaças ou vagões de trens enferrujados, na
esperança de chegar ao outro lado do mar ou do deserto para recomeçar a vida...
Por outro lado, acabam alimentando os atravessadores (gatos) e todo crime
organizado, convertendo-se em uma espécie de moderno “mercado de carne humana”,
como denunciava Dom João Batista Scalabrini, bispo de Piacenza, Itália, referindo-se
aos emigrados europeus no final do século XIX.
Como ponto final, levanta-se, ainda
desta vez, uma tríplice interpelação: os cadáveres insepultos dos migrantes e
refugiados, gritando por justiça e cidadania; a de Scalabrini, considerado “pai
e apóstolo dos migrantes”, com a máxima de que “para os migrantes, a pátria é a
terra que lhes dá o pão”; e a do Papa Francisco, chamando a atenção para a
dignidade e a paz de toda a pessoa humana, como linha mestra da Doutrina Social
da Igreja, independetemente de credo e religião, raça e cor da pele, língua,
povo ou nação. Nada mais e nada menos do que os princípios básicos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(1948).
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
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