Sinais dos tempos: O fundamentalismo
Um outro sinal dos tempos com o qual devemos fazer as contas é o fundamentalismo.
Também neste caso, há uma estreita relação com a globalização e, mais em geral,
com os efeitos de uma sociedade em contínua transformação. Trata-se de uma tentativa particularmente vigorosa,
sedutora e perigosa, de retornar aos princípios do passado, verdadeiros ou
imaginários. Os agentes do fundamentalismo estão convictos de que se vivia
melhor no passado, quando a sociedade era engessada por um conjunto de normas e
pontos firmes que regulavam a vida das pessoas, quando se vivia sob a certeza
de uma autoridade e de uma verdade absolutas.
Qual é a origem da expressão “fundamentalismo”? Hoje, esta expressão é
usada profusamente, sobretudo pelos jornalistas, quase sempre referida a certos
movimentos religiosos no âmbito do mundo islâmico, mas se esquece que sua
origem se encontra historicamente numa corrente de pensamento que, no interior
da Igreja batista, procurava se opor ao modernismo e ao racionalismo teológico
que então se difundiam entre os fiéis evangélicos.
Na sua origem, o termo “fundamentalismo” não tinha o sentido negativo
que o envolve hoje. Estava ligado à publicação, em 1909, de uma coletânea de 12
volumes de ensaios, entitulada “The Fundamentals”. Os textos atacavam as atividades da filologia,
da história, da arqueologia e da crítica da escola exegética chamada “alta
crítica”. Reivindicavam, ao contrário, a vontade de reafirmar de modo dogmático
pontos irrenunciáveis da fé, definidos “fundamentals”,
fundamentos, e correspondem também à afirmação da necessidade de uma fé
facilmente compreensível ao indivíduo. Esta reivindicação tinha também
uma perspectiva político-social, com uma forte crítica que se pode definir como
“anti-intelectual” ou “anti-elites” (contra o perigo de uma sociedade ou de uma
moral de advogados e filósofos). Característica deste pensamento
fundamentalista era a reafirmação do
valor literal do texto da Bíblia.
Sucessivamente, no decurso do século XIX, a expressão “fundamentalismo”
se vulgarizou e adquiriu o sentido de todo ponto de vista – corrente de
pensamento e prática no âmbito religioso – que insiste sobre a interpretação literal dos textos sagrados
das grandes religiões, que apresenta marcas
de movimento anti-modernista. Observe-se que cada fundamentalismo
particular tem suas características específica e frequentemente está em aberto
conflito com os demais.
Diante de uma questão tão crucial, que aqui e acolá é iluminada por
relâmpagos sempre mais inquietantes, sobretudo depois do trágico acontecimento
do 11 de setembro (entre islamismo e
cristianismo), é importante esconjurar o
perigo de forçamentos ou banalizações indevidas. Como lembra Youssef M. Choueiri, em um ensaio sobre a
matriz islâmica deste fenômeno, o fundamentalismo “indica uma postura
intelectual que pretende deduzir princípios políticos de um texto considerado
sagrado”.
Em termos gerais podemos dizer que o
fundamentalista, por presunção ou ignorância, partindo da convicção de que a existência humana tem um único modelo de
referência, está fortemente convencido de que a sua visão de mundo deve ser
importa a todas as consciências. Nesta perspectiva, o fundamentalismo não
pode ser circunscrito ao mundo da Meia-Lua, pois está presente sob diversas
etiquetas e com diversas variações em muitos sistemas de crenças. As mortes
perpetradas no estado indiano de Orissa, assim como uma certa intransigência no
âmbito de algumas seitas cristãs, tendem
a uma concepção obtusa da existência, subjugando toda alteridade ao ponto de
sufocar totalmente, conscientemente ou não, qualquer dimensão que parta de
paradigmas diferentes. Portanto, é
necessário vigiar a linha de demarcação, tênue ou ambígua, de certa comunicação
que deseja sempre e em todos os modos simplificar realidades complexas mediante
a espetacularização ou a ênfase exagerada.
Felizmente, em toda tradição
religiosa existem crentes atentos e com uma visão ampla a quem devemos respeito
e estima. Amos Luzzato, por exemplo, ex-presidente da União das Comunidades Hebraicas Italianas, deu provas desta
liberdade de espírito e honestidade intelectual que deveria caracterizar o
diálogo inter-religioso, afirmando corajosamente: “Nem todos os muçulmanos são terroristas. Nem todos os norte-americanos
são imperialistas. Nem todos os secularizados desconhecem os princípios dos
outros. Nem todos os católicos impõem sua própria fé. Nem todos os judeus são
ricos ou mendigos, torturadores dos palestinos ou vítimas de bombas humanas.
Nem todos os palestinos são ocultos semeadores de morte”.
Sergio Zavoli, um dos mais célebres
jornalistas italianos, introduzindo este texto de Luzzato, como atento analista
do palco da história contemporânea, assinala como é importante esconjurar a
radicalização do confronto entre Oriente e Ocidente, afirmando que “abrir-se àquilo que pensam e sentem os
outros não é apenas desejável mas também necessário, se não queremos falar no
vazio, com sumariedade e arrogância recíproca”. E também porque, se não nos
comportarmos assim, como sublinha Luzzato, “terminaremos caindo no abismo que
estamos cavando com as nossas próprias mãos”.
Por outro lado, todos percebemos que
frequentemente os radicalismos estão a 360
graus e vão muito além da esfera religiosa, contaminando as próprias
civilizações e culturas através de atitudes impositivas que desejam a
homogenização a todo custo, contrariamente ao que se quer fazer acreditar. As
diferenças ainda podem conviver porque a acolhida do estrangeiro, como ensina o
Evangelho, se traduz na derrubada de toda barreira, muro ou divisão.
Mas infelizmente devemos tomar
consciência de que a desinformação é tal que, no imaginário coletivo, quando se
fala de muçulmano parace que todos são terroristas ou kamikase. Mas isso não é verdade! Quantos intelectuais do mundo
árabe foram os primeiros a se opor com coragem e pobreza de meios contra toda
forma de discriminação, postulando a necessidade de uma leitura crítica da
história muçulmana, em claro enfrentamento com os defensores da “jihad” e toda ditadura!
É emblemático, a propósito, o
pensamento do escritor egípcio Sayyed al-Qimani, que defendeu corajosamente o
racionalismo, afirmando que este é patrimônio da tradição islâmica – referindo-se,
por exemplo, ao pensamento de Averróis – mas que depois foi “silenciado” pelos
tradicionalistas, defensores da sharìa,
a lei islâmica. Outro intelectual que invocou a renovação do islamismo foi seu
conacional Khalil Abd al-Karim, que apresentou a própria leitura da história
como alternativa à visão fundamentalista dos extremistas. Sem falar dos fatos
cotidianos narrados pela literatura e pelo cinema egípcio: basta pensar no
romance “Karnak”, do prêmio Nobel Nagib Mahfuz, ou no filme “Somos aqueles do
ônibus”, sobre as acusações falsas por parte da polícia para encher as prisões.
Mais ou menos há cinquenta anos, o
pai do reformismo islâmico iraniano, Ali Shari’ati, dizia que o islã
contemporâneo está no seu século XIII ou XIV. Se olhamos a história européia
daquele tempo, descobriremos que, para o velho continente, não havia ainda
iniciada a reforma protestante. Segundo Shari’ati, para superar a Idade Média
islâmica, os muçulmanos não podem imaginar saltar de pés juntos cinco ou seis
séculos, chegando imediatamente à cultura moderna. “Devemos reformar o islã –
escrevia o intelectual iraniano – entregando a ele o volante da libertação das nossas sociedades
ainda fechadas em uma dimensão social e tribal, ou seja, à Idade Média do
Oriente, que hoje é o instrumento usado pelos reacionários para evitar o
progresso e o desenvolvimento social”.
As palavras e a vida de Shari’ati,
morto oficialmente por parada cardíaca na Inglaterra, em junho de 1977 – ainda
que sejam muitos os que pensam que foi eliminado pela polícia secreta do então
Xá da Pérsia – indicam claramente o percurso que é preciso seguir para
sustentar a plataforma democrática nos países da Meia-Lua. Uma responsabilidade
da qual deve fazer-se intérprete sobretudo a Europa, se deseja ser coerente com
os próprios princípios.
Contiuando a nossa reflexão sobre o
fundamentalismo e levando em conta sobretudo a finalidade desta reflexão, é
preciso lembrar que esta expressão é usada em sentido amplo também para indicar
uma atitude acrítica e dogmática diante
de textos ou teorias não necessariamente religiosas e os comportamentos que daí
derivam. Na economia, por exemplo, os críticos do capitalismo liberal às
vezes acusam de “fundamentalismo” os defensores de teorias segundo as quais o
mercado deveria ser, segundo eles, o único regulador da vida social,
subentendendo que este princípio seja afirmando de modo dogmático.
Na política, o neo-conservadorismo é uma reação às pavorosas incertezas do nosso tempo.
Ele sustenta uma visão maniqueísta da realidade: de um lado estão os bons, de
outra os maus. Por isso, os inimigos são perseguidos e expulsos, sobretudo se
defendem iniciativas antagônicas e violentas. No campo religioso, alguns grupos religiosos acusam de
“fundamentalismo laicista” as posições anticlericais dos adeversários,
considerando-os incapazes de aceitar excessões frente a uma visão tradicional
de laicidade.
A este propósito, outra forma de fundamentalismo a nível
científico e cultural é o cientificismo:
uma concepção do saber que considera válido somente o conhecimento científico,
que no século XIX serviu como suporte às ideologias evolucionistas e
materialistas, que depois confluíram na doutrina marxista do “socialismo real”.
Mas, ao mesmo tempo, e é bom lembrar, se desenvolveu no plano produtivo, com a
revolução industrial, e no plano econômico, com o capitalismo. Ingenuidade e presunção levaram o homem a
crer que o progresso da ciência, da técnica e, mais em geral, da razão,
poderiam resolver os problemas dos povos, a ponto de desprezar a religião,
considerada por alguns como uma simples opção ou quase uma superstição. É este
o pensamento secularista: não é mais
necessária nenhuma referência à Transcendência, pois tudo se resolve no plano
humano.
Porém, gradualmente, no transcurso do
Século XIX, esta visão foi sacudida tanto pelas duas guerras mundiais quanto
pela crescente distância entre ricos e pobres, patrocinada pelo advento da
globalização liberal. A queda do materialismo ideológico, aquele dos países
comunistas, e, depois, a crise do sistema capitalista que vivemos no início do
terceiro milênio, provocou um forte ceticismo em relação a quem ainda ousa
propor esquemas ideológicos para salvar o mundo.
E o que dizer da inversão dos
equilíbrios geo-estratégicos pela qual as velhas potências ocidentais foram
ameaçadas por países emergentes como a China? Este gigante conseguiu unir os
extremos, unificando a doutrina do livre mercado com um regime de governo
comunista. O que surgiu foi um sistema oligárquico, claramente anti-democrático
que, explorando a mão-de-obra a baixo custo, tem como objetivo o crescimento
esponencial da atividade produtiva.
Grande parte dos sociólogos afirma
que a estação que atravessamos pode ser definida como “pós-moderna” em relação à
modernidade caracterizada por uma forte industrialização da Europa e da América
do Norte. Mas sobre a “pós-modernidade” voltaremos mais adiante. No momento nos
limitamos a sublinhar que nesta última faixa da história, alguns componentes das grandes regiões, como o cristianismo e o islã,
em modos certamente diferentes, foram gradualmente se voltando a si mesmos,
afirmando lógicas fortemente identitárias. No caso das Igrejas cristãs,
algumas sofreram grande influência do secularismo, o que levou a uma consistente
perda de fiéis (que, não encontrando nelas respostas adequadas às necessidades
vitais, buscaram-nas alhures), ou se agarraram a uma autoridade absoluta, capaz
de oferecer verdades certas.
O
denominador comum que une estas duas tipologias é sempre a insegurança. “A
maior parte do povo – escreve Albert Nolan – vive em um estado de despero
reprimido, buscando um jeito de se distrair das duras realidades do nosso
tempo”. Compartilha o mesmo pensamento Joanna Macy, segundo a qual “o terror do
futuro está no umbral da consciência e é demasiadamente profundo para receber
um nome e demasiadamente assustador para ser efnrentado”.
Aqueles que dissolveram ou
abandonaram a religião saíram desesperadamente em busca de qualquer coisa
inebriante que, ao menos em parte, pudesse satisfazer suas demandas interiores
no plano emocional. Alguns recorreram ao álcool ou às drogas. Outros optaram
pelo suicídio. Outros ainda encontraram uma aparente segurança na riqueza e no
acúmulo de bens. Alguns, compreensivelmente, recorreram ao esporte, ao fitness, aos centros de bem-estar, às
experiências exotéricas típicas de culturas não ocidentais.
Uma
reação muito decidida às incertezas que a vida nos reserva neste nosso mundo é
a tentativa de voltar ao passado, o fundamentalismo. Se
mergulharmos no íntimo do sentimento fundamentalista, descobrimos que a verdadeira razão é a incapacidade do
indivíduo ou da comunidade de conjugar os ideais com a vida, o espírito com a
existência, os ideais com a história. Esta distância é tal que gera o
dualismo entre alma e corpo, um dualismo literalmente sem significado para as
pessoas do nosso tempo.
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