Tu és o meu filho amado, em ti
está o meu agrado (Lc 3,15-16.21-22)
A liturgia
deste final de semana propõe abrir-nos a Deus, da mesma forma como Jesus o fez
ao acolher o dom do Espírito enquanto estava em oração logo após o seu batismo.
Em Lucas, a
narrativa a respeito do batismo de Jesus vem depois do Evangelho da Infância.
Entre as narrativas da infância (Lucas 1-2) e o início da missão de Jesus
(Lucas 4,14 em diante), os autores deste Evangelho inserem o relato da
preparação do caminho do Senhor feita por João Batista (Lucas 3,1-20) e o
relato da preparação de Jesus para sua missão (Lucas 3,21-4,13). Como dobradiça
que liga as duas partes, está a narrativa a respeito do batismo de Jesus (Lucas
3,21-22). Temos, assim, um paralelo entre dois batismos: o de João com água e o
de Jesus com o Espírito e com o fogo.
João
aponta para o Messias
A comunidade
de Lucas faz questão de situar historicamente o início da atividade de João
(Lucas 3,1-2). Do ponto de vista político, foi no tempo de Tibério, imperador
romano de 14 a 37 d.C., e de Herodes Antipas, governador da Galileia desde 4
a.C. até 39 d.C. Do ponto de vista religioso, foi na administração do sumo
sacerdote Caifás (sumo pontífice no templo de 18 a 36 d.C.), genro de Anás
(6-15 d.C.), nomeado sumo sacerdote por Herodes Antipas em nome do imperador.
Por um lado,
João denuncia profeticamente o reino da opressão representado
por Tibério e por Herodes, em aliança com o templo de Jerusalém. Diante de
tanto sofrimento, o povo esperava ansiosamente a vinda de um libertador. João
Batista faz fortes críticas aos poderosos, anunciando um juízo severo para eles
(Lucas 3,17). Por isso, o povo começou a ver em João a esperança da vinda do
messias, o rei ungido por Deus que viria para libertar o seu povo.
Por outro
lado, João anuncia a vinda do Reino de Deus para
breve (Lucas 3,9.17), chamando à conversão, à mudança de mentalidade e de vida,
convocando à partilha e à vivência de relações fraternas (Lucas 3,11-14). Em
consequência dessa prática profética, ele foi preso e encarcerado pelos
poderosos de seu tempo (Lucas 3,19-20). Assim, João cumpriu sua missão como
profeta que faz a ponte entre a Aliança de Deus com Israel e a Aliança em Jesus
com toda humanidade.
Para Lucas, a
tarefa de João é fazer com que as pessoas se convertam e se abram ao Reino de
Deus presente no novo agir de Jesus. Lucas o apresenta mostrando para Jesus.
João não é o Messias, o Cristo, o Ungido. Seu batismo era somente com água, sinal de purificação e de conversão para acolher
Jesus de Nazaré, mais forte do que João. Sua atitude é de estar a serviço,
menor ainda que os servos, de quem também era tarefa desatar as sandálias
de seus senhores.
As sandálias
também lembram a lei do levirato (Deuteronômio 25,5-10). Segundo esta lei,
quando um marido morria sem deixar filhos, um parente próximo devia assumir a
viúva para gerar um herdeiro para o falecido. Assim, além de dar continuidade à
vida do falecido, resgatava sua terra, de modo que ela permanecesse no clã.
Quando o parente mais próximo se negava a assumir a tarefa do resgate para seu
irmão falecido, outro parente devia cumprir a lei. Era então que o parente mais
próximo dava uma de suas sandálias ao novo resgatador, o novo
"noivo". Era o sinal que este passava a ter o direito de resgate, de
gerar descendência para o falecido. Ao não desatar a correia das sandálias de
Jesus, João reconhece nele o resgatador, o messias libertador de todas as
formas de opressão. João é o último representante da Antiga Aliança. Jesus,
porém, é o noivo da Nova Aliança.
O
Messias assume a sua missão
Jesus é
batizado com água junto ao povo, em meio ao povo. Em seu batismo, Jesus é
investido para a sua missão, guiado pelo Espírito de Deus. É somente Lucas quem
faz referência à atitude orante de Jesus no seu batismo. E é esta atitude de
intimidade de Jesus com o Pai que faz com que o Espírito o transforme e o envie
para evangelizar os pobres (Lucas 4,18-19). Também para nós Jesus pediu que
tivéssemos essa atitude orante durante a vida toda, abrindo-nos ao Espírito de
Deus. Ele é fruto da oração, da acolhida, é dom (Lucas 11,13).
João batiza
Jesus com água. No entanto, Jesus batiza com o Espírito e
com o fogo. Por isso, o seu batismo é superior ao de João. É
no Espírito Santo, representado pelo fogo de
Pentecostes (Lucas 3,15-16; Atos 2,1-13). Neste Evangelho, ainda antes do
batismo de Jesus, há uma ênfase muito grande na apresentação de pessoas abertas
à ação do Espírito Santo. Lembramos João Batista, Maria, Zacarias e Simeão
(Lucas 1,15.41.67; 2,26-27). E o fogo recorda a presença de Deus no êxodo, na
libertação do povo oprimido pelo sistema faraônico (Êxodo 3,2-3; 13,21; 19,18).
É o mesmo fogo de Pentecostes, o dinamismo do Espírito, que entusiasma os
discípulos e as discípulas de Jesus para o anúncio e a vivência da boa-nova até
os confins da terra (Atos 1,8; 2,1-13).
Uma vez preso
João, Jesus dá um novo rumo à sua missão. Diferentemente do Precursor, que
anuncia a vinda do Reino de Deus para breve e como um juízo severo, Jesus vive
o Reino já presente no seu jeito de se relacionar especialmente com as pessoas
mais discriminadas, revelando a misericórdia do Pai (Lucas 7,22; 11,20;
17,20-21).
Lucas
apresenta o batismo de Jesus depois da prisão de João como o ato em que o Espírito de Deus vem confirmar o Nazareno enquanto
Messias, ungindo-o para a missão do serviço, da mesma forma como fora ungido o
servo de Deus em Isaías 42,1 e 61,1. Nesse momento, Jesus estava em oração, isto é, em íntima comunhão com a fonte da vida,
com o projeto do Reino. Tão íntima é essa comunhão que, em Jesus, Deus e a
humanidade se encontram. Esse é o significado da abertura do céu (Lucas 3,21), realizando a
esperança do povo (Isaías 63,19b). Em Jesus, céu e terra estão tão próximos que
é possível perceber a presença materializada ("em forma
corpórea") do Espírito de Deus nas atitudes de Jesus. Se em
Gênesis 8,8-11 a pomba foi a mensageira da vida
recriada depois de submersa pelas águas do dilúvio, agora a presença da pomba
anuncia que o Espírito de Deus impulsiona Jesus a realizar a nova criação,
mulheres e homens recriados a partir das águas do batismo. No batismo, morremos
com Cristo e ressuscitamos com ele para uma vida nova (Romanos 6,1-14). Viver
como pessoa renovada e ressuscitada é, portanto, missão de todos nós.
Ao lembrar a
entronização do rei que vem libertar o povo (Salmo 2,7: "Tu és o meu filho"), a comunidade de Lucas
apresenta Jesus como o verdadeiro Rei e Messias, que veio governar com justiça e no serviço ao povo. Por isso, lembra também a missão do servo em Isaías 42,1 ("em ti está o meu agrado"). No batismo de
Jesus, temos uma epifania, ou seja, uma manifestação do filho de Deus ao mundo, gerado
como o messias que vem libertar o povo.
No batismo,
Jesus assume publicamente o seu compromisso com as novas relações do Reino de
Deus já presente em seu agir. Batizar-se em seu nome, na linguagem paulina, é revestir-se de Cristo, ou seja, é agir como o próprio
Cristo agia, superando todas as formas de discriminação (Gálatas 3,27-28).
Ildo Bohn Gass