NATAL de jesus VERSUS DEUS DO MERCADO
Cedo
aprendemos que o Menino Jesus nasceu em Belém, na manjedoura de uma gruta, pois,
segundo os relatos evangélicos, “não havia lugar para eles dentro de casa” (Lc
2,7). Desde a infância, fascina-nos a alegria e o canto dos anjos e dos
pastores que, no meio da noite, partem para adorar o recém-nascido, envolto em
faixas e deitado entre os animais. Mais tarde, guiados por uma estrela,
chegarão também os reis magos com seus presentes de ouro, incenso e mirra,
provenientes do oriente, ajoelhando-se diante do Senhor dos senhores.
O
tradicional presépio familiar, ou aquele montado na comunidade ou Igreja,
trazia imagens gravadas com o toque de dedos mágicos em nossa memória mais
remota, imagens que o vento não consegue varrer ao longo de toda a existência.
Mais tarde, ao lado de Maria e do carpinteiro José, Jesus vive e cresce “em
sabedoria, estatura e graça diante de Deus e diante dos homens” na humilde casa
de Nazaré (Lc 2,52). Essas eram as peças que compunham o cenário de uma noite
grandiosa, iluminada por um evento inusitado, envolvendo sombras e estrelas, a
atmosfera ao mesmo tempo mística e poética do Natal. Deus irrompe no palco da
história humana para abrir-lhe novos horizontes!
Hoje o
Menino Jesus nasce, em primeiro lugar e com meses de antecedência, nos
supermercados, nas lojas dos grandes centros comerciais e até nas agências
bancárias ou repartições do poder público. Divide espaço com outros elementos,
tais como a árvore recheada com os mais diversos enfeites, os presentes cuidadosamente
embalados e uma série de símbolos que expressam desejos, promessas e esperanças
de todo tipo. Mas, de forma particular, vem crescendo progressivamente a
importância de outro personagem natalino, o simpático e ao mesmo tempo astuto Papai
Noel. Embora tenha surgido bem mais tarde no curso dos tempos, atualmente ambos
entram em concorrência pela compra e venda de mercadorias, como também pela
atenção das pessoas, especialmente das crianças. Além disso, concentram e disputam
os holofotes e anúncios da publicidade que precede as festividades natalinas.
Com o
passar dos anos, porém, o segundo personagem ganhou espaço sobre o primeiro: o
velhindo de cabelos e barbas brancas, exoticamente vestido e sempre sorridente
e bonachão, com a expectativa dos brinquedos, deixa o recém-nascido na sombra.
Este aparece em cena como que escanteado e meio evergonhado, diante de tantas
luzes e cores, música e movimento. Ambos estão envoltos nos apelos e no fascício
extraordinários do entusiasmo natalício, mas, no grande teatro da festa, os
papéis dos atores parecem inverter-se: o coadjuvante toma o lugar do
protagonista e viceversa.
O
índolo do comércio sobrepõe-se ao Deus menino – nu, pobre e frágil – “Verbo que
se fez carne e armou sua tenda entre nós” (Jo 1,14). Os valores humano-divinos
que este representa, bem como sua chamada à conversão e à mudança de vida
anunciadas por seu precursor João Batista (Lc 3,1-20), se folclorizam e se
neutralizam diante do império, da sedução e da força do mercado. Como se o
Natal representasse, nos dias atuais, um mero pretexto para aumentar as oportunidades
de novos empregos, a desova de estoques e os ganhos fabulosos. Os shopping-centers em especial representam
as grandes catedrais do novo deus mercado/capital.
O que
mudou ao longo dos tempos? Por quê as atenções se deslocam do relato original neotestamentário
para se concentrarem em seus dados
secundários? Por quê a criança enfaixada na manjedoura comparece para logo
desaparecer na penumbra de um afã que, ano a ano, esquenta as vendas e os
lucros, conferindo bom humor às bolsas de valores e ao ídolo mercado”?
Ocorre
que o mundo contemporâneo, materialista e de economia globalizada, move-se
sobre outro pano de fundo. O volume de vendas e dos ganhos, a oportunidade de
acumular mais capital, a ânsia febril das novidades, a velocidade da produção, da
comercialização e do consumo... Tudo isso toma o lugar e o sabor misterioso do
clima natalino. O segredo se desfaz, desnuda-se-lhe a magia e o encanto, perde
seu revestimento humano-divino. O marketing
e a propaganda, sempre apelativos e estridentes, encarregam-se de apresentá-lo
com nova roupagem.
O
mistério da encarnação ganha vestes modernas ou pós-modernas, onde a
simplicidade da gruta de Belém e da casa de Nazaré vem substituída pela
parafernália de objetos, luzes e sons da revolução eletrônica e informática. Os
enfeites da árvore de Natal e a eloquência do “bom velhinho” encobrem a nudez
incômoda e interpeladora de um Deus que se faz homem, quando os homens buscam a
todo custo ignorá-lo ou substitui-lo.
Como
conviver com semelhante transformação? Ou melhor, como conciliar essas duas
concepções do Natal – a magia do presépio e a euforia do comércio, a visão
religiosa e a visão laica? O Menino Jesus e o Papai Noel constituem figuras
opostas, ou podem caminhar de mãos dadas? Não se trata, evidentemente, de
colocar uma contra a outra, como que opondo a tradição sólida ao oportunismo imediato,
ou o verdadeiro ao falso. Teoricamente a tradição natalina não se opõe às
revoluções e ao progresso da humanidade. Em termos teológicos, o mistério da
encarnação não diminui em nada a liberdade humana. Ao contrário, Deus nos
visita e vem caminhar conosco no deserto, no êxodo e no exílio para assumir as
opções e a obra da humanidade em seu conjunto. Obra em que a razão, a ciência e
a tecnologia, com todos os seus avanços, evolições e descobertas, desempenham
um papel decisivo. Deus entra a fazer
parte da trajetória humana não para inaugurar uma outra história – paralela,
acima ou superior – e sim para legitimar e sacrementar nossa travessia pessoal
e coletiva com sua graça e sua benção. Faz da cidade a sua tenda, para usar a
expressão do Livro do Apocalipse (Ap 21,1-8), divinizando a obra por escelência
da inteligência humana.
O mais
importante, em meio à correria costumeira nas proximidades do Natal, é não
perder de vista a centralidade do nascimento de Jesus, o mistério de sua
encarnação concretizada na vida e palavras, gestos e obras do Galileu
itinerante. Está em jogo o significado mais profundo de um Deus “que não se
apega à sua condição divina”, mas “humilha-se a si mesmo, tornando-se obediente
até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,6-11). Pelo nascimento em Belém, vem
caminhar conosco, trazendo-nos a Boa Nova do Reino de Deus e da salvação. É Ele
o personagem central da festa, assumindo e revestindo a trajetória humana com o
seu amor infinito e incondicional.
Talvez
o termômetro mais vivo dessa centralidade esteja na forma de realizar a ceia de
Natal. Que é ela no cotidiano de nossa existência? Ou em que se tornou nos dias
atuais? Um encontro para celebrar o nascimento de Menino Deus, reunindo e
reforçando os laços familiares; ou um momento para troca de presentes e para
saborear as iguarias inéditas do banquete natalino? Uma celebração rica de
significado ou uma festa a mais, entre as tantas que promovemos? Até que ponto
mantém uma memória viva e ativa no coração do cristianismo? Até que ponto
encontra-se banalizada diante de uma infinidade de atrações que o Natal
oferece?
As
duas coisas não se excluem. Covém não esquecer que “assim como a fé absolutizada,
também a racionalidade absolutizada desencadeia energias destrutivas”, como
afirma Hans Kung. É possível, sem dúvida, relembrar o Natal do Senhor,
aproveitando ao mesmo tempo para re-unir a família e os amigos ao redor de uma
mesa farta, antecipação e anúncio do banquete do Reino. Não raro, e com
frequência crescente, o centro dos festejos se desloca do acontecimento
primordial para o exagero do consumo, da comida e da bebida. Isso para sequer
falar das tensões e conflitos, da violência, divisão e discórdia que, no
limite, esse deslocamento pode representar.
A fé
religiosa, longe de se opor, contempla a dimensão da festa. Vale aqui o retorno
às fontes, à imagem poética da infância, à simplicidade do presépio franciscano
– como motivações para retomar e aprofundar o sentido do Natal, brasa viva e
vivificante muitas vezes escondida sob as cinzas das paixões, impulsos e
desejos e imediatos, dos bens materiais e perecíveis. Resulta que a celebração
do Natal foi, é e continua a ser uma oportunidade sem igual para “buscar as
coisas do alto onde a traça e a ferrugem não corroem, nem os ladrões podem
roubar” (Mt 6,20). Oportunidade e desafio, também, para ampliar o leque da
justiça, da solidariedade e da paz, frente às assimetrias e desequilíbrios que
marcam tão fortemente a sociedade contemporânea. Natal é tempo kairológico para abrir o coração ao
outro, ao pobre, a Deus que vem e a si mesmo.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
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