Cristianismos nada cristãos
Li há pouco tempo atrás em uma revista científica
que os humanos estão utilizando cada vez menos o cérebro. Um dos cientistas
entrevistados dizia que isso pode levar ao atrofiamento deste órgão, visto que,
segundo uma das leis da evolução natural, um órgão de um corpo vivente que não
é constantemente utilizado tende a desaparecer com o tempo. A diminuição da
utilização do cérebro humano vem acontecendo por conta da cultura da imagem, da
tecnologia e da informática que nos impedem de fazer operações que o estimulem.
Dentre as operações menos realizadas está a imaginação, ou seja, a capacidade
de fantasiar, de criar, de inventar, de projetar, de traçar etc.
Creio, porém, que você que está lendo este texto
comigo ainda não renunciou à utilização de seu cérebro e muito menos à
capacidade de imaginar. Por essa razão convido-lhe agora a fazermos juntos uma
viagem, com a ajuda de nossa fantasia.
Vamos ao litoral paulista. É um fim de semana e um
pastor evangélico, conhecido por suas excrescências religiosas, vê duas meninas
que, segundo dizem, se beijavam publicamente. Manda chamar a guarda policial e
prender as meninas. Os guardas as agridem, as machucam e as maltratam, sem o
menor respeito por aquelas pessoas humanas.
Depois de imaginar a cena que você não presenciou,
entremos no “túnel do tempo” e vamos até Jerusalém de dois mil anos atrás (Jo
8,1-11). Está amanhecendo, Jesus acaba de voltar ao templo, depois de passar a
noite em oração no Monte das Oliveiras, e senta-se para ensinar. De repente, um
grupo de fariseus e escribas moralistas apresenta-lhe uma mulher surpreendida
em adultério. Todos estão com pedras na mão para apedrejá-la. Provocam o Mestre
e ele os desafia: “Aquele dentre vocês que nunca pecou atire-lhe a primeira
pedra”. O final da história nós conhecemos: “eles se retiraram um após outro, a
começar pelos mais velhos”. Jesus ficou sozinho com a mulher e não a condenou, mas
a mandou embora em paz.
Voltemos agora a uma cena recente acontecida em uma
cidade do sudoeste da Bahia. Uma mulher grávida participa de um grupo de
“discípulos” de um vidente de Nossa Senhora. O vidente exige que seus sequazes
jejuem vários dias por semana, inclusive aquela mulher que está grávida. Por
causa disso a mulher tem complicações, quase morre e quase perde o bebê, que
nasceu raquítico e teve que ficar vários dias na UTI neonatal para se
recuperar. O marido, furioso com a atitude da mulher, quase pede o divórcio.
Da Bahia vamos de novo a Palestina e mais
precisamente à beira de um lago chamado “mar da Galiléia”. Aqui os discípulos
de João Batista questionam a prática dos seguidores de Jesus que não jejuavam.
Jesus responde taxativamente dizendo que o seu seguimento é um tempo de
núpcias, de festa, de banquete e que não tem lógica ficar jejuando (Mc
2,18-20).
Retornemos agora ao Brasil. Vamos até a uma
comunidade de periferia de uma capital do Sudeste brasileiro. Aqui uma mulher
separada, que vive com outro homem, se apresenta ao padre manifestando o desejo
de participar da eucaristia e de batizar seus filhos. O padre, conhecido na
comunidade por suas aventuras sexuais com rapazes, não só não atende ao pedido
da mulher como a escorraça da igreja, proibindo-a de entrar em qualquer grupo
ou pastoral.
Imagino que seu cérebro já deve estar fervilhando,
mas vamos voltar à Palestina de dois mil anos atrás. Jesus está atravessando a
Samaria, terra de gente “herética”, e pára cansado à beira de um poço. Aqui
dirige a palavra a uma mulher e mulher samaritana, para escândalo dela e de
seus discípulos. Entra em diálogo com essa mulher e descobre que ela já tivera
cinco maridos e estava convivendo de maneira irregular com um sexto homem (Jo
4,4-42). Acolhe essa mulher e a transforma numa catequista, numa
evangelizadora, sem exigir dela que abrisse mão daquela união irregular. Esta
mulher amasiada, amigada, se torna uma excelente animadora de comunidade:
mobiliza a cidade inteira e a conduz a Jesus. A partir do seu trabalho as
pessoas da cidade fazem a maior confissão de fé de todos os tempos. Declaram
que Jesus “é verdadeiramente o Salvador do mundo” (Jo 4,42).
A este ponto de nossa reflexão você pode deixar o
seu cérebro continuar trabalhando, imaginando outras cenas de hoje de que você
tem conhecimento e relacionando-as com cenas que envolveram Jesus de Nazaré. Se
preferir, páre aqui a leitura deste texto e comece a fantasiar. Você notou os
absurdos de certos cristianismos de hoje? Percebeu como se distanciaram por
completo de Jesus de Nazaré, de sua prática e de seus ensinamentos? Percebeu
que esses tais de cristianismos não têm nada de cristão, mas são uma verdadeira
aberração, uma verdadeira negação da proposta do Evangelho?
Foi esse tipo de cristianismo que, no passado, pela
Inquisição, levou muitas pessoas inocentes à fogueira. Foi esse tipo de
cristianismo que promoveu as Cruzadas, as guerras santas e matou milhares de
pessoas. Foi esse cristianismo que queimou várias mulheres, acusando-as de
serem bruxas, de terem pacto com o diabo. Foi esse tipo de cristianismo que
chegou ao absurdo de acusar essas pobres mulheres de terem relações sexuais com
o demônio.
Tenho muito medo desse tipo de cristianismo que,
infelizmente, está voltando em muitas partes do mundo e sendo aplaudido por
várias pessoas, inclusive por algumas que dizem ainda ter cérebro e que se
apresentam como seres pensantes. Tenho medo porque ele pode voltar a fazer
estragos enormes na humanidade e a obscurecer ainda mais a mensagem de Jesus, hoje
bastante debilitada pela falta de amor e de testemunho de compaixão dos
cristãos. Um cristianismo assim nada tem a ver com Jesus, com o seu seguimento.
É uma aberração, uma excrescência. Esse cristianismo no dizer de Umberto
Galimberti apresenta “um Deus contabilista, um Deus jurídico, um Deus incapaz
de graça” (Rastros do Sagrado, Paulus, 2003, p. 31).
Esse cristianismo é pura invenção dos homens e
contrasta inclusive com a mais genuína tradição religiosa. O filósofo
pré-socrático Heráclito de Éfeso, que viveu quase quinhentos anos antes de
Cristo já afirmava que esse tipo de religião é obra dos humanos: “O homem toma
por justas umas coisas e por injustas outras; para o deus, tudo é belo, bom e
justo”.
Não podemos, pois, assistir inertes e indiferentes
a esse tipo de cristianismo que ousa se impor a ferro e fogo, completamente
estranho à prática de Jesus e em nítido contraste com os ensinamentos do
Evangelho. Precisamos reagir, denunciando tais coisas e participando de
projetos permanentes de catequese que sejam capazes de revelar o rosto genuíno
de Jesus, sacramento do Pai de ternura e de bondade. Tal catequese deve ser
capaz de mostrar que “não se pode comprimir o juízo de Deus nas regras com que
os homens organizaram a sua razão e elaboraram as suas morais. Deus está além
do verdadeiro e do falso, e igualmente do bem e do mal” (GALIMBERTI, p. 31). A
nós cristãos cabe apenas anunciar a boa notícia de que as prostitutas, os
pecadores e todas as pessoas que a religião oficial estigmatizou como de “má fama”
serão as primeiras no Reino de Deus (Mt 21,31-32).
José
Lisboa Moreira de Oliveira
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