“Troco de papa, mas não troco de carro”.
O que ficou da Jornada Mundial da
Juventude?
Das pessoas mais
velhas aprendi o seguinte provérbio: “Festa acabada, pé na estrada”. O que este
ditado pretende ressaltar é o fato de que, após a festa, se volta à vida real.
Isso porque, segundo a Antropologia, em praticamente todas as culturas de todas
as épocas e de todos os lugares a festa representa certo distanciamento da
realidade. Durante o período da festa os homens e as mulheres tentam esquecer
seus problemas, celebrando e se divertindo.
O antropólogo Mircea
Eliade na sua clássica obra O Sagrado e o Profano afirma que a festa é
uma forma de saída momentânea do temporal, isto é, da vida real, na qual os
humanos se tornam “contemporâneos dos deuses”. A festa é “um tempo fora do
tempo”! O antropólogo brasileiro Roberto DaMatta, num livro bem sugestivo,
intitulado O que faz do brasil, Brasil?, diz que isso vale sobretudo
para este que é o país do carnaval. Segundo DaMatta, embora as festas
brasileiras sejam festas “da ordem” (p. 81-91), ou seja, pensadas e organizadas
pelas elites religiosas e políticas para manter o status quo, elas
acontecem como “momentos neutros” onde o quotidiano é celebrado, mas através da
“abertura de todas as portas e de todas as muralhas e paredes” (p. 82). A festa
no Brasil acontece para que o povo esqueça o que está acontecendo!
Dentro desta
perspectiva quero analisar a festa da Jornada
Mundial da Juventude (JMJ), realizada no Brasil no mês de julho passado.
Antes de tudo é preciso dizer que a JMJ foi essencialmente uma festa do papa.
Por alguns dias os brasileiros, mesmo os não-católicos, estiveram com os olhos
fixos na mídia, acompanhando o que acontecia no Rio de Janeiro. Embora fosse um
evento que englobava várias outras atividades, como palestras e celebrações
diversas, o que ficou de verdade foram os gestos do papa Francisco. Mesmo
porque a mídia católica e não-católica decididamente e conscientemente fez
questão de ressaltar apenas esse aspecto. Era para ser a festa da juventude
católica mundial, mas quem acompanhou de perto a cobertura da mídia pode
constatar que essa realçou apenas a figura do papa. A única pessoa a destacar publicamente
a juventude e a dialogar em público com ela foi o papa. Os demais praticaram
certa papalatria, ou seja, certo culto à figura do papa. A Rede Globo,
por exemplo, que naqueles dias estava sendo acusada de sonegar centenas de
milhões de reais da Receita Federal, suspendeu sua programação normal para
mostrar o papa.
Não restam dúvidas de
que os inúmeros gestos do papa Francisco, durante sua visita ao Brasil, foram
gestos até certo ponto ousados e profundamente significativos. Através deles o
papa quis, creio que intencionalmente, comunicar uma mensagem significativa.
Começando pelo fato de recusar locomover-se num carro oficial e luxuoso,
preferindo um simples carro popular. O mais triste, porém, é que a mídia,
inclusive a mídia católica – salvo uma ou outra exceção –, deu destaque ao
espetacular, transformando os gestos do papa em fato midiático sensacionalista.
Não foi capaz de levar os católicos e as pessoas de boa vontade a uma reflexão
mais profunda. Ficou no periférico e no sensacionalista, realizando uma
cobertura superficial, tratando o episódio com banalidade.
Seguindo esse estilo,
a mídia em geral, e também a mídia católica, não comentou em profundidade os
pronunciamentos do papa Francisco. Passou de raspão sobre suas palavras e não
quis aprofundá-las. Tomo como exemplo a reflexão por ele dirigida aos bispos da
América Latina e Caribe, certamente o discurso eclesial oficial mais ousado do
papa Francisco até agora. Tentei, de propósito, acompanhar a mídia católica
naqueles dias para ver se o discurso seria retomado e aprofundado em alguns
programas. O que vi foram algumas referências superficiais que pareciam mais
esconder do que evidenciar a força transformadora das palavras do bispo de Roma
aos bispos de nosso continente.
Isso mostra que os católicos
“indignados” não podem se contentar com os gestos do papa Francisco. Eles são
muito importantes, mas podem ser facilmente transformados em mero espetáculo
midiático pelos que não querem uma Igreja renovada, libertada e libertadora.
Infelizmente a mídia em geral e a mídia católica (salvo um ou outro caso) estão
nas mãos de grupos conservadores que não querem mudanças significativas na
Igreja. A maioria absoluta dos bispos e dos padres, escolhidos e formados
dentro dos parâmetros conservadores, não vai se transformar em apoiadores e
multiplicadores das vozes proféticas do papa Francisco. Pelo contrário, fará de
tudo para minimizar e até para esconder o caráter profético de alguns gestos do
atual papa.
Um caso
que representa bem esta mentalidade aconteceu alguns dias atrás e me foi
narrado por um amigo. Aconteceu na região do Entorno do Distrito Federal. O
Entorno é formado pelos municípios do estado de Goiás e que estão em volta do
Distrito Federal. De um modo geral os habitantes dessa região são pessoas que
trabalham em Brasília e que foram propositadamente enxotadas para lá, a fim de
que ficassem bem distante da capital. A região é marcada por muita pobreza,
exclusão, sofrimento e violência. Porém, alguns padres que atuam por aqui (com
as devidas e honrosas exceções) são amantes do luxo e da boa vida. Os seus
carros são, em muito, superiores ao carro usado pelo papa Francisco em suas
locomoções durante a JMJ.
Pois bem,
segundo esse meu amigo, ele veio a se encontrar numa roda de padres que
trabalha na região do Entorno. Conversa vai e conversa vem, um deles
dirigindo-se a outro, perguntou-lhe em tom de ironia: “E aí, você vai seguir o
exemplo do papa Francisco e trocar seu carro por um menos luxuoso?”. Ao que o
outro respondeu: “Troco de papa, mas não troco de carro!”
Estou
convencido de que os gestos do papa Francisco não vão impactar a maioria
absoluta do clero, que continuará apegada aos vícios e a um modelo de Igreja
arcaica e anti-evangélica. O clero, na sua grande maioria, é conservador e não
vai querer mudar. Vai resistir o quanto puder. Haverá exceções, mas que
servirão apenas para confirmar a regra. A mudança só virá se o Povo de Deus
partir para a ação e começar a questionar insistentemente o seu clero,
respaldado pelo exemplo do papa Francisco, exigindo mudanças significativas.
Os
destaques da JMJ deveriam ter sido para os jovens. Mas com esse modelo de
Igreja que aí está há pouco o que fazer. O cardeal jesuíta Carlo Maria Martini,
falecido há pouco mais de um ano atrás, em sua última entrevista, publicada num
jornal italiano no dia 8 de agosto de 2012, afirmou categoricamente: se a
Igreja não quiser perder os jovens “deve reconhecer os próprios erros e deve
percorrer o caminho radical da mudança, começando pelo Papa e pelos bispos... A
Igreja está atrasada em pelo menos 200 anos”. Sem conversão, eventos como a JMJ
servem apenas como rota de turismo para alguns poucos jovens privilegiados, que
logo esquecerão o que o papa lhes disse. O clero conservador se encarregará de
tirar a palavra àqueles poucos mais ousados. Resta-nos, pois, a indignação e a rebeldia.
José Lisboa Moreira de
Oliveira
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