domingo, 8 de setembro de 2013

Desassossegos

Desassossegos
Na música “Desassossegos”, o poeta e compositor uruguaianense João Chagas Leite nos brindou uma das mais belas canções da tradição gaúcha. Recentemente, a Companhia Brasileira do Cinema homenageou o compositor com um clip de rara sensibilidade, beleza e simplicidade, interpretado por Antônio Bernardi e editado por Adir Antônio de Lima (https://www.youtube.com/watch?v=y3fRP3e2aEY).

Não há como não se emocionar assistindo esse clip simples e breve. A imaginação voa longe, para o passado e para o futuro. Recordamos cenas muito concretas, cujas cores, odores e temores conhecemos bem. Também acordamos medos em relação ao nosso próprio futuro. Mas a humana sensibilidade nos faz próximos de todos aqueles/as que vivem um dolorido desassossego, qualquer que seja.

Meus desassossegos sentam na varanda, pra matear saudades nesta solidão. Cada por de sol, dói feito uma brasa, queimando lembranças, no meu coração. Vem a noite aos poucos, alumiar o rancho, com estrelas frias, que se vão depois. Nada é mais triste, neste mundo louco, que matear com a ausência, de quem já se foi.”

O olhar distante do personagem avançado em anos, os passos lentos, a dificuldade de caminhar, a casa velha e vazia, a calmaria do rio e a exuberância da natureza circundante, são de uma beleza e de uma verdade profundamente melancólicas. Sentado na varanda, ele mateia saudades numa profunda solidão. As estrelas frias da noite iluminam mas desaparecem. “Nada é mais triste neste mundo louco que matear com a ausência de quem já se foi...”

Quem ainda não experimentou isso? O mate cevado de lembranças doloridas, a sensação de que os dias se arrastam como se fossem anos, a dura percepção de não ser capaz de viver sozinho, a insônia que atravessa as madrugadas e obscurece as manhãs... E então a água do chimarrão não é apenas amarga, mas queima como brasa e machuca a garganta, como se tivesse se transformado em pedras ou farpas de madeira...

Que desgosto o mate, cevado de mágoas, pra quem não se basta, pra viver tão só. A insônia no catre, vara a madrugada, neste fim de mundo, que nem Deus tem dó. Então me pergunto neste desatino, se este é meu destino, ou Deus se enganou. Todo desencanto para um só campeiro que de tanto amor se desconsolou...”

O poema tem como sitz leben original a solidão de quem perdeu a companheira e, vendo-se idoso e fraco, contempla um passado rico e distante, vislumbra um futuro obscuro e ameaçadoramente próximo, mas não vê ninguém por perto. No entanto, este enraizamento da canção no ambiente familiar e afetivo não impede que façamos estas imagens e versos ressoar em outros contextos marcados pelo desencanto, pelo desconsolo, pela solidão, por perdas e ausências, pela experiência de fragilidade e de fim.

Confesso que, assisntindo o clip, pensei na solidão e no desassossego que podem experimentar nossos coirmãos religiosos/as e padres. Depois de décadas e décadas de serviço incansável e de liderança e de competência valorizadas; depois de incontáveis cursos, seminários e encontros, recheados de discussões e coroados em projetos inovadores; depois de tudo isso e muito mais, o mundo deles se reduz às quatro paredes de um quarto, longe daqueles que os aplaudiam, um pouco esquecidos até pelos coirmãos, sempre ocupados com muito o que fazer. Os pés cambalenates já não levam para onde o coração deseja e a cabeça decide. Tudo ao redor pode estar em plena exuberância primaveril, mas o inverno toma conta da alma... O mate perde o sabor por falta de companhia e até a oração pode se tornar árida por falta de afeto. E o paraíso proposto como o único desejável é temino como um soco na boca do estômago... Quem os ajudará a preparar o belo pacote do dom absolo de si mesmos, sem outra segurança que aquela da fé?

Deus não permita que eu viva tal desassossego! Não o quero para mim, nem para ninguém! Este não pode ser o nosso destino, e Deus também não pode ter se enganado... Mas o que fazer para que ele não seja o nosso futuro, ou ao menos, para que seja menos intenso? O muito amor que damos não pode se tornar desconsolo. Se não nos bastamos para viver tão sós, precisamos ter e ser companheiros, de verdade, desde já e sempre. Não em palavras e idéias, mas em gestos e fatos. Mas, e se este desassossego vier?


Itacir Brassiani msf

Nenhum comentário: