Ser testemunha é mais que olhar para o
céu e suspirar!
(At 1,1-11; Sl 46/47; Ef 1,17-23; Mc
16,15-20)
Ascensão lembra um movimento de
subida, de elevação, de distanciamento do nível cotidiano e comum às demais
criaturas. Seria isso que pretendemos dizer quando proclamamos a ascensão de
Jesus Cristo ao céu? Ele teria subido ao céu, afastado-se da terra e do comum
dos mortais? Mas a ascensão é uma imagem
que também expressa a idéia e a experiência de ser destacado, promovido, reconhecido,
reabilitado. Penso que é este o sentido original da boa notícia pregada pelos
cristãos a respeito de Jesus. A ascensão é mais uma forma de proclamar sua
ressurreição, de afirmar que a pedra rejeitada pelos construtores foi
considerada a pedra principal, que aquele que foi eliminado como subversivo e
maldito é a mais plena expressão de Deus. “Depois de falar com os discípulos, o
Senhor Jesus foi elevado ao céu e sentou-se à direita de Deus.”
“Que ele ilumine os olhos do vosso coração para que
conheçais a esperança à qual ele vos chama.”
Conhecemos pessoas que perderam a
esperança: repetem ritos e mais ritos, movidas pelo medo e desejosas de aplacar
a ira de um deus feito à imagem e semelhança dos ditadores sanguinários; somam
terços, novenas e missas, tentando fugir das armadilhas do mundo e ganhar a
eternidade; multiplicam rezas e devoções para evitar o risco de crer numa
libertação que se realiza na história, entre trancos e barrancos. Uma vida
assim desventurada pode ser chamada vida, de vida cristã?
Este Jesus Cristo no qual cremos e em nome do qual vivemos não é um espírito que se compraz em esvoaçar sobre o mundo. Ele compartilhou conosco a corporeidade e sentiu fome; experimentou conosco a busca e a sede; dividiu conosco a angústia e a ternura; provou, como nós, o mel do amor e o fel da traição; abriu conosco um caminho de vida no frio corredor da morte; espalhou sementes de liberdade nas terras infectadas pela erva daninha da indiferença.
Como discípulos/as, somos
chamados/as a ser membros do seu corpo, irmãos e irmãs na fraterna comunidade,
sacramentos da sua liberdade e sua profecia. Expressamos esta invejável e
comprometedora condição no batismo mas a vivemos prosseguindo seu caminho no
mundo, reinventando suas ações livres e libertadoras, multiplicando seus múltiplos
gestos de amor solidário, retalhos de uma vida que vence a morte.
“Por que ficais aqui parados, olhando para o céu?”
Não é verdade que a vida cristã se
resume na aceitação resignada de uma doutrina, na harmonia simples e sedutora
do cântico gregoriano, na beleza simbólica e profunda dos sacramentos, no
suspiro pelo descanso eterno depois de uma vida atribulada. A vida cristã é
muito mais que desejo ou contemplação extática da plenitude celeste. A
interrogação dos anjos ressoa hoje aos nossos ouvidos e espera uma resposta: “Por
que vocês estão aí parados, olhando para o céu?”
Os discípulos/as de Jesus Cristo não
podem resumir sua vida à simples contemplação de alguém que subiu ao céu, mesmo
que este alguém seja o próprio Jesus Cristo. Professando a fé sua ascensão a
comunidade cristã quer ressaltar mais uma vez que aquele corpo humano e marcado
pelo trabalho, aquele homem constestado e condenado, aquela criatura torturada
e riscada da terra dos vivos é assumida e reconhecida pelo próprio Deus como a
expressão mais plena do seu Ser.
Além disso, a ascensão não é algo
que tem a ver apenas com Jesus de Nazaré. Ele é o primogênito de muitos irmãos
e irmãs. Ele é a cabeça de um corpo composto de muitos e variados membros. À
glorificação do primogênito segue-se a honra dos seus irmãos e irmãs, começando
pelos considerados menores. À elevação da cabeça segue-se o reconhecimento da
dignidade daqueles/as que realizam sua vontade na história. E isso não vale só
para um futuro incerto: é fato e convicção já agora.
“Recebereis o poder do Espírito Santo para serdes
minhas testemunhas...”
A ascensão de Jesus Cristo não
significa o fim da sua presença no meio de nós. Ao contrário, assinala o início
da missão em seu nome, sob a guia do seu Espírito. “Vão pelo mundo inteiro e
anunciem a boa para todas as pessoas”. A liturgia da ascensão está inteiramente
focada nesta responsabilidade intransferível da comunidade cristã. Convictos de
que o Crucificado foi exaltado, os cristãos vencem o medo e se tornam
testemunhas de Jesus Cristo no coração do mundo e nos pulmões da história.
Sendo uma forma de manter viva a
memória de Jesus de Nazaré, este testemunho tem força de transformação.
Testemunhar é trazer no corpo as marcas de Jesus Cristo: sentir o que ele
sentiu; amar como ele amou; sonhar como ele sonhou; viver como ele viveu;
servir os últimos e desafiar os poderes como ele fez. Ser testemunha é defender
Jesus Cristo e aqueles/as por quem ele deu a vida, é atestar a veracidade do
seu caminho e a consistência do seu projeto de vida.
Mas este testemunho não é apenas uma
questão de vontade ou decisão. “O Espírito Santo descerá sobre vocês, e dele
receberão força para serem as minhas testemunhas...” Trata-se do Espírito que
cria tudo a partir da massa informe e vazia, transforma um monte de ossos secos
num povo que caminha e luta, gera vida no ventre virgem de uma mulher, une num
mesmo objetivo os diferentes membros do corpo, suscita a profecia num grupo de
medrosos e torna adulta e livre uma comunidade dependente.
A Igreja é constituída testemunha,
enquanto comunidade de irmãos e irmãs, “em Jerusalém, na Judéia, na Samaria e até os
confins do mundo”. Ou seja, aqui, em todos os cantos da terra, em todas as
dimensões da vida. A missão não tem fronteiras, o testemunho não conhece
limites. Ser testemunha e missionário/a é sair de si, apenas sair de si, sempre
sair de si. E isso supõe deixar de pensar que somos maiores e melhores que os
outros, ou que nada temos a ver com os outros.
A referência da missão não somos nós
mesmos e nem mesmo a Igreja. Somente em Jesus Cristo repousa a autoridade no céu e na
terra, e diante dele todos/as dobramos os joelhos. É dele que recebemos a ordem
de ir ao mundo como ovelhas entre os lobos, como discípulos/as e
missionários/as, como embaixadores/as de um novo céu e uma nova terra, como
parteiros/as de uma nova humanidade ainda em gestação. E ele se faz caminho e
modelo desta missão descendo, fazendo-se próximo, servindo.
A palavra de Deus atesta que a
ascensão de Jesus Cristo não é um movimento de distanciamento em relação aos seus
discípulos e discípulas, ou uma fuga do mundo e suas tensões. Antes, é sua
identificação plena com Deus, sua inserção plena no mundo. “Os discípulos então
saíram e pregaram por toda a parte...” No templo e nas praças, nas casas e nas
estradas, até que este mundo, graças à ação suscitada e sustentada pelo
Espírito Santo, dê lugar a um outro mundo.
“Aclamem a Deus com gritos de alegria!”
Que o Espírito Santo nos ajude a
conhecer Deus em profundidade e nos liberte da tentação de reduzi-lo à pequena
dimensão dos nossos medos e interesses. Movidos por ele, aclamemos com alegria
jubilosa a manifestação de Deus na humanidade de Jesus de Nazaré e nas pessoas
que vivem em seu nome. Que ele nos ajude a conhecer a esperança à qual somos
chamados/as e a herança preciosa que nos deixa. Que ele ensine a Igreja a
descobrir-se corpo de Cristo, obediente a ele, comprometida com sua missão.
Jesus de Nazaré, sacramento do abraço entre o céu e a terra, profeta de
um mundo sem senhores e sem escravos: depois de termos acompanhado passo a
passo, domingo a domingo, tua discreta manifestação aos discípulos/as e a
missão que confias a quem te segue, queremos hoje contemplar tua ascensão, que
é teu pleno reconhecimento pelo Pai. Ajuda-nos a entender que é porque abriste
mão de todo e qualquer privilégio ou título para te fazeres humano e igual à
menor das criaturas que teu nome é incomparável e diante de ti se dobram todos
os joelhos. E ajuda-nos a compreender que é descendo, amando e servindo nossos/as
irmãos/ãs que seremos tuas testemunhas e daremos uma contribuição efetiva para
a construção do teu Reino. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani
msf
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